*Por Brunna Condini
Alitta, ex-Blackyva, é a primeira atriz trans negra a ser indicada ao Prêmio Shell de Teatro, nesta última edição, a 34º, que aconteceu em março. A multi-artista, cria da Rocinha, maior favela da América Latina, foi indicada por sua atuação no espetáculo ‘Chega de Saudade‘, dando vida a ninguém menos que Nara Leão (1942-1989). A indicação de Alitta, de 27 anos, além de ser o reconhecimento de uma trajetória profissional de quase 10 anos, também aponta a ampliação dos caminhos de representatividade artística. “Do funk ao Prêmio Shell, eu me sinto honrada e admito que, por um momento, entrei em crise, porque é uma baita de uma responsabilidade. Não sou só eu que estou ali, e apesar de ser a primeira trans negra indicada nesta categoria de melhor atriz, outras vieram antes, abrindo caminho para que eu pudesse estar lá de forma digna e respeitosa. A arte foi uma ferramenta essencial para que meus caminhos fossem completamente opostos aos de colegas da minha infância que acabaram entrando para o mundo do crime e já não estão mais aqui entre nós, e assim poderia ter acontecido comigo também”, diz, a também cantora e performer.
No decorrer do papo, surgiu um dos assuntos do momento, a vitória de Davi Brito no Big Brother Brasil 24, jovem negro e periférico como ela, mas do bairro de Cajazeiras, em Salvador (BA). Ao falar de Davi, Alitta desvia de polêmicas criadas sobre a vida do rapaz e se atém ao que está contido na conquista do baiano. “A vitória do Davi vai para além de um prêmio em um reality show. Ele traz consigo um discurso e uma consciência sobre o valor do estudo, da transformação que pode haver na sua jornada ao estudar. Isso é uma inspiração não só para jovens periféricos, mas para todos oriundos de comunidades que desistiram ou não concluíram os estudos porque precisavam trabalhar para sobreviver ou por outras questões”.
Apesar de reconhecer a importância do alcance da história de Davi em um reality show como o BBB, ela não participaria. “Não gosto de competição, mas se fosse para entrar em algum reality aqui no Brasil, seria em um daqueles que é só festa, beijo na boca e praia. Para aproveitar toda a experiência sem precisar sair traumatizada e para me divertir também. Mesmo que não valesse prêmio em dinheiro”. Para Alitta, sonho mesmo seria interpretar a primeira Helena trans em uma novela inédita de Manoel Carlos, que se afastou da teledramaturgia desde 2014, quando fez ‘Em Família’. Ou ainda, por isso mesmo, fazer a personagem em uma releitura de alguma obra sua:
A Helena do Manoel Carlos é uma Medeia contemporânea, com toda uma complexidade familiar e as decisões que precisa tomar diante das próprias questões paradoxais internas. Sei que é um desejo ousado, mas amaria ser a mocinha de uma novela das 21h, ter o Cauã Reymond como par romântico e contracenar com a Tais Araújo – Alitta
É a primeira vez que uma grande emissora como a Globo tem atrizes trans em todas as novelas, visando ampliar a diversidade de gênero também na teledramaturgia. O que isso representa em totalidade? “Acredito que portas estão sendo abertas, dando um novo início e que assim permaneça, não só com uma ou três, mas com várias mulheres trans e vários homens trans também, para que traga a visibilidade e a desmistificação da nossa comunidade que ainda vive à margem, muitas vezes invisível. A televisão é um portal de comunicação muito poderoso”.
É lindo ver pessoas trans sendo protagonistas ou contando outras histórias cujo o arco principal não seja apenas sobre a descoberta de gênero enquanto pessoa trans ou que a grande questão é se deve usar o banheiro masculino ou feminino ou o lugar da piada. Por isso é importante que nossa imagem esteja em um lugar que nos humanize e que em breve nossa etnia ou gênero não seja mais necessário ser anunciado – Alitta
Reconhecimento
Quando viveu Nara Leão em ‘Chega de Saudade‘, da Aquela Cia de Teatro, espetáculo que rendeu sua indicação ao Shell, Alitta ainda usava o nome Blackyva (Black e diva + Eva negra), que nasceu do seu desejo de expressar o que sentia através da música, lançando os singles ‘Diligência‘, ‘Nega da Quebrada‘, ‘Patfudyda’ e ‘Pancala‘. “Por meio da música e do teatro, eu consegui entender mais de mim para além daquilo que os moldes da sociedade nos ensinam. Do mesmo modo que através da arte eu me descobri uma pessoa trans, também entendi mais a fundo questões raciais”. Agora ela se despede de sua persona Blackyva e assume a identidade Alitta (“aquela que vem da nobreza”). “Blackyva foi um ciclo muito importante na minha vida, mas eu sempre tive a completa noção de que esse não seria o meu nome social. Encerrei essa jornada, que apesar de curta, foi intensa, em 2023 com o meu primeiro e último álbum, enquanto Blackyva, chamado ‘Opinião’. Blackyva se foi para dar lugar há algo novo, assim como um dia William se foi para dar lugar a Blackyva”.
Escolhi a arte porque acreditei que, de alguma forma, eu poderia transformar a realidade ao meu redor. E consegui. Desistir teria sido o caminho mais fácil, contudo lutei! Lutei pelo respeito, lutei para ter trabalho e ganhar de forma digna, lutei para trabalhar, tendo que estar em mil lugares para fazer a gira girar. Foram noites sem dormir, chorando por desacreditar em mim, criando loucamente –Alitta
A artista já está com um novo projeto para o segundo semestre, com elenco formado apenas de mulheres, ao lado de Jéssica Barbosa, Manuela Llerena. As atrizes abordam o mito de Medéia em ‘Raiva’, espetáculo idealizado por Martha Ribeiro e dirigido por Pedro Kosovski. Para 2025, Alitta também estreia como diretora na sequência de filmes ‘The Face Of Ball‘, que irá percorrer uma história de amor tendo como cenário a favela, e em ‘Baile Funk Carioca‘, com uma mulher trans como protagonista.
“Do lugar de onde venho, a verdade é que ainda pouco se pode sonhar, e por isso, muitos vão para um caminho sem saber que na vida existem outras possibilidades. Sou da Rocinha e me orgulho de ser uma travesti preta de lá, ainda mais cria também de projetos sociais que me fizeram ter contato com a arte, enquanto minha mãe, Marinete, trabalhava incansavelmente como babá, faxineira, entre outras milhares de funções. Tudo isso para pagar as contas e criar eu e meu irmão, Gustavo“, conta. “Não vejo essa história como de tristeza ou de superação, enxergo com toda dignidade possível, porque não existe trabalho melhor ou pior quando a necessidade bate em nossa geladeira. Eu facilmente poderia ter ido por um outro caminho. Muitos não estão mais aqui para contar essas histórias, meu pai é um deles”.
Celebro e agradeço a todos que me ajudaram, principalmente minha mãe. Uma porta se abriu e que sejamos regras e não mais exceções no teatro, no cinema e em premiações, que mais portas se abram para que travestis pretas e homens trans pretos estejam em cena contando outras histórias que não sejam de dor e mostrando com maestria suas atuações em cima de um palco – Alitta
Alitta diz que “dentro do leque de possibilidades de ser uma mulher, a travestilidade é uma delas”. “Podemos compreender que mulher e homem são uma construção social, onde para ambos há toda uma lista de como devem agir. Quando essas normas são rachadas por homens de vagina e mulheres de pau, como fica essa configuração do que é ser homem e mulher na sociedade? Nunca me assumi enquanto um homem gay, porque desde que me entendo por gente, nunca me senti homem, mas também não sabia dizer quem eu era exatamente. Quando fui me autoconhecendo, a palavra travesti ainda era um nome não dito. Ao mesmo tempo, tinha um lugar dentro de mim, de quando eu me apresentava ou me apresentavam enquanto uma mulher trans, que eu não me encaixava (ainda que eu seja uma mulher trans)”, relata.
E acrescenta: “Contudo, no decorrer do tempo, fui deixando de ter medo de falar que sou uma travesti, mesmo que muitas pessoas ainda nos chamem no masculino ou nos vejam como piada ou até mesmo nos olhem fixamente com desdém ou enojadas. E isso é o mesmo processo, de quando no passado pessoas negras de pele um pouco mais claras, se consideravam pardas. Eu, inclusive, era uma que não me enxergava enquanto uma pessoa negra, ainda que passasse por toda a violência e dor que o racismo causa. Assim é conosco, travestis. Por isso, digo que é importante como o audiovisual nos retrata, e que as oportunidades de trabalho sejam mais oferecidas pra gente, seja em qual área for. Travesti é uma palavra brasileira, não tem tradução. E nós não somos modernas, somos muito mais antigas do que imaginam”.
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