* Por Carlos Lima Costa
Na questão de representação, Aline Deluna, 31 anos, que teve destaque recentemente no especial global Falas Negras, sentiu pela primeira vez de forma absoluta quando descobriu a atriz, dançarina e cantora norte-americana, naturalizada francesa Josephine Baker (1906-1975), grande estrela das artes que fez parte da resistência francesa contra o nazismo e lutou contra o racismo. Aline multiartista está em Paris e foi convidada pelo Consulado francês para encenar a peça em versão pocket Josephine Baker – La Vénus Noir, dia 28, no Chez George, neste que é o Mês da Consciência Negra. A data é especialíssima por conta de uma programação na qual vai estar presente, na capital francesa. No dia 30, os restos mortais de Josephine, que estavam em Mônaco e foram levados para a França, vão ganhar um lugar no Pantheon de Paris, onde estão sepultadas personalidades francesas como os filósofos Voltaire (1694-1778) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), e os escritores Victor Hugo (1802-1885) e Alexandre Dumas (1802-1870). Será a primeira mulher negra a ter um lugar no Pantheon francês.
Foi realizando uma pesquisa sobre referências, que Aline conheceu a história de Josephine. E teve uma identificação imediata ao se deparar com vídeos dela dançando. “Eu me apaixonei pela figura, até porque enquanto semblante e silhueta somos muito parecidas. Eu sempre me achava com braços e pernas muito compridos, o rosto, as feições. Fiquei encantada quando a vi. E falei: ‘quero interpretá-la, montar um espetáculo’, porque era uma história profunda. Josephine foi aquela menina pobre sem nenhuma perspectiva de nada que vira bailarina, atriz de cinema, vai morar em um castelo, trabalha como espiã francesa contra o nazismo e se torna ativista”, pontua. E assim foi criada a peça Josephine Baker – A Vênus Negra, sob a direção de Otávio Müller.
Aline comenta questões que estiveram presentes na vida de Josephine, mesmo quando já havia se tornado uma estrela. “O racismo tem níveis de acordo com o tom da pele. A Josephine não tinha o tom de pele retinta, ela era negra da pele mais clara. Assim, por muito tempo ela passou por essa cobrança dos brancos quererem embranquecer a imagem dela nas fotos e cartazes, e dos negros quererem que ela fosse mais negra, tanto que chegou em um ponto que ela falou: ‘Essa é a minha cor, não vou tentar mudar. Se me acharem branca ou negra demais, vivam com isso’”, relembra.
Em seus 31 anos, Aline explica mesma viveu situações preconceituosas. “O racismo tem níveis de acordo com o tom da pele. Sou uma mulher negra, mas a cor da minha pele é mais clara. Então, o racismo que chega em mim, não é igual ao que sofre uma mulher de pele retinta. Mas, por exemplo, quando criança, a gente está muito mais suscetível, buscando entender como o mundo nos enxerga. E quando eu era criança entendia que o mundo me enxergava em um lugar diferente. Estudei em colégio particular, onde eu e outra menina da sala éramos as únicas meninas negras. Todas aos outras eram brancas, tinham cabelos longos, lisos, esvoaçantes. Na época, era difícil entender o motivo pelo qual éramos olhadas de maneira diferente. O primeiro pensamento que vinha é que a gente precisava corrigir algo, então, passei por todo esse processo que a maioria das meninas negras passa que é alisar cabelo, tentar se embranquecer de alguma forma até entender que não tem nada errado, nada que deva ser corrigido. Hoje, a minha escolha de interpretar Josephine foi para falar sobre isso”, conta.
Aline se define como uma pessoa bem reservada na questão da rede social. “A minha escolha enquanto local para estar ativa na militância, politicamente é através do teatro, que é um lugar muito democrático, onde você vai encontrar pessoas de diferentes ideologias, nacionalidades e contextos sociais. Gosto de construir projetos e nos que me chamam, gosto de entrar naqueles que tenham a ver com o que eu quero falar, sabe, levar um questionamento através do teatro. Acredito muito no poder da arte para isso”, defende.
Por isso mesmo, ela está radiante com o fato de que vai representar Josephine no grandioso evento em Paris. “Ficamos na expectativa de que esse evento no Panthéon traga a figura dela à tona de novo, porque, na verdade, ela é super atual, não tem nada de careta ou antiquada. Era uma mulher totalmente subversiva, bissexual, casava e tinhas outros companheiros durante o casamento e isso era sabido. Talvez tenha sido mais vanguardista do que a gente está vendo hoje em dia, porque demos uma encaretada grande”, avalia.
“O fato dos restos mortais de Josephine serem sepultados no Pantheon de Paris vai ser simbólico também por ser uma mulher que está sendo reconhecida pela parcela dela intelectual, política, porque isso é outra barreira. As mulheres, as artistas sempre são associadas à beleza, encantamento ou ao produto e os homens normalmente estão nesse lugar da intelectualidade, da estratégia. Então, ela será homenageada por sua força enquanto mulher militante, ativista, ajudante mesmo da resistência francesa contra o nazismo durante a guerra. Isso é sensacional. Mas a luta contra o racismo não tem um horizonte próximo de acabar, infelizmente”, acredita.
Para Aline, cerca de 100 anos depois de Josephine ganhar fama, a questão do racismo não teve grandes avanços. “A verdade é que enquanto a gente tem um sistema que se baseia no capital, na exploração, é interessante que sempre haja alguém que seja objeto dessa exploração. Infelizmente o racismo foi construído com raízes tão fortes e é uma batalha que a gente está aí diariamente tentando minimizar os danos”, atesta ela que já deu voz também a Maria Bethânia e no palco cantou o clássico Carcará no espetáculo Andança – Beth Carvalho, o musical. Outra personagem forte.
“Ser mulher na cultura que a gente vive requer força por tudo. Ainda mais mulheres que queiram ter voz, construir, falar de uma realidade. Acho importante ter e deixar a nossa feminilidade fazer parte do nosso empoderamento”, frisa, acrescentando sua opinião sobre como encara a questão amorosa. “Sou bem tranquila. Desconstruí bastante ao longo do tempo a ideia de relacionamentos. Particularmente, não tenho esse desejo da construção de família padrão, de casamento no papel e tudo. O que não quer dizer que eu não possa ter em algum momento. E acho que mesmo quando você constrói uma família e tem filhos, isso não é ponto final. Não tem ponto final na vida. Você pode ter uma família linda e, de repente, 30 anos depois alguém acorda e fala: ‘Quero outra coisa’, e tudo bem. As pessoas tem que ser livres para amar, porque quando vira obrigação aí é contrato social”. A atriz está em dois filmes com previsão de estreia para dezembro: Níobe, do Fernando Mamari, com André Ramiro, Kadu Moliterno e Roberto Pirillo no elenco, e As Margens de Canavieiras, com direção de José Frazão.
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