Há oito anos, desde que perdeu a filha Luiza Paula da Silveira Machado no massacre da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, Adriana Silveira luta cotidianamente para converter a dor em força propulsora de construção de uma causa sociopedagógica pelo Brasil. Dedica a vida, hoje, a auxiliar famílias, estudantes e pesquisadores acerca do bullying, os atos de intimidação sistemática já considerados por estudiosos como problema de saúde pública. Recentemente, a tragédia de Suzano a levou novamente ao reencontro do drama que ela e outras 11 famílias viveram em 7 de abril 2011, quando o ex-aluno Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, invadiu a escola no popular bairro da Zona Oeste da cidade, armado com dois revólveres, matando doze estudantes, com idade entre 13 e 16 anos, e deixando mais de outros treze feridos.
O bullying é um problema mundial. No Brasil, a tragédia de Realengo originou a institucionalização do Dia Nacional de Combate ao Bullying, em 7 de abril. Neste domingo, alunos da Tasso da Silveira e de outras escolas da região farão um ato na porta da escola a fim de chamar a atenção da sociedade civil e das instâncias de governo para o drama que crianças e adolescentes sofrem dentro e fora das salas de aula. Segundo pesquisa realizada há três anos em meios acadêmicos de Belém, Belo Horizonte, Fortaleza, Maceió, Salvador, São Luís e Vitória, 69,7% dos estudantes disseram que algum tipo de violência ocorrera no colégio nos últimos 12 meses. Os dados são do Diagnóstico Participativo das Violências nas Escolas, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.
“Precisamos despertar a atenção das autoridades para que medidas eficazes de combate à violência nas escolas sejam implantadas. O Estado não atua de forma preventiva. A grande verdade é que estamos à deriva”, denuncia Adriana, presidente da Associação de Familiares e Amigos dos Anjos de Realengo (AFAAR), fundada com outros pais após o massacre. Nesta entrevista ao site HT, ela conta detalhes do terror que ainda a acompanha, fala do descaso estatal com o problema e do Abril Verde, movimento que criou para fazer deste mês um período de reflexão e assistência aos jovens que sofrem bullying.
HT – Após oito anos, como consegue lidar com a dor da perda de uma filha que se encontrava em um ambiente escolar, portanto teoricamente seguro?
Adriana – Eu não consigo pensar mais na dor. É como se eu vivesse um processo de anestesiamento contínuo. Eu busco agora concentrar as minhas energias na causa que abracei. Quero falar sistematicamente do problema, quero debater com os jovens e fazê-los refletir sobre a questão, quero discutir com as instâncias governamentais a criação de medidas eficazes contra a violência no ambiente escolar. Mas a grande verdade é que estamos à deriva. O Estado não quer falar disso. É mais fácil não avalizar a causa do que dar a ela a visibilidade necessária, pois que, desta forma, se assume compromisso público junto à sociedade civil. O Estado não quer ninguém na porta dele cobrando absolutamente nada. Então busca nos calar. Mas não nos silenciarão.
HT – O que recebem de apoio hoje?
Adriana – Meio salário mínimo. Só. Esse é o valor da vida da minha filha. Logo após o massacre, cada família foi indenizada em 235 mil reais. A mensuração pelo Estado de quanto vale uma vida é aviltante. Vida não se quantifica financeiramente. E o drama psicológico que se eterniza a partir de um episódio desses é incomensurável. As pessoas não têm ideia dos bastidores da tragédia. É um horror. Sofremos duplamente: com a perda de um filho e com a pressão e a hostilidade que nos são dispensadas pelos governos. Estou em contato com pais e professores da Escola Estadual Raul Brasil, de Suzano, onde recentemente testemunhamos o mesmo horror. Eles estão sofrendo a mesmos dramas que nós.
HT – O que de concreto a Associação de Familiares e Amigos dos Anjos de Realengo busca?
Adriana – Primeiramente, nós lutamos há oito anos pela oficialização do Abril Verde, movimento cujo objetivo é sensibilizar as direções de escolas públicas e privadas para a promoção de atividades de conscientização sobre o bullying e outras práticas violentas em ambiente educacional. A medida pretende reforçar a importância do cumprimento das Leis 13.185/2015 e 13.663/2018, que incluem entre as atribuições das escolas o fomento da cultura da paz e atividades de prevenção e combate a diversos tipos de violência, como o bullying. Igualmente ao Outubro Rosa e ao Novembro Azul, o Abril Verde busca dar visibilidade no Rio (e em todos os outros estados do país) sobre a gravidade dos atos de intimidação sistemática.
HT – O que considera importante de ser posto em prática?
Adriana – Precisamos despertar a atenção das autoridades para que medidas eficazes de combate à violência nas escolas sejam implantadas. O Estado não atua de forma preventiva. É importante capacitar docentes e equipes pedagógicas para a implementação das ações de discussão, prevenção, orientação e solução do problema, conforme preconiza a Lei de Combate ao Bullying. Também é fundamental prestar assistência psicológica, social e jurídica às vítimas e aos agressores. Nada disso se dá. A responsabilidade deixa de ser do Estado e passa a ser nossa. Como fazer tratamento psicológico sendo pobre? Todos sabemos que não é algo barato.
HT – O Wellington, o estudante que cometeu o massacre, sofreu bullying e justificou em carta o ato como sendo uma consequência do que sofrera. A sua luta tem sido justamente agora em prol de combate às ações de intimidação sistemática em ambiente escolar. Ou seja, você reconhece que o assassino de certa forma foi uma vítima. Assim sendo, é possível perdoar?
Adriana – Eu queria ter uma resposta concreta para essa pergunta. Não tenho. Quando se perde um filho assassinado os nossos sentimentos oscilam entre a dor, a raiva e a misericórdia. É uma questão complexa para ser descrita com meia dúzia de palavras ou frases de efeito. Sei que boa parte da sociedade civil esperaria que eu dissesse “eu perdoo”.
HT – Mas você o perdoou?
Adriana – Há uma cobrança coletiva para que sejamos pautados sempre pela alteridade, pela empatia. Isso é compreensível, porque no mundo ficcional, das novelas e dos filmes, os heróis também se caracterizam pela capacidade de perdoar após sofrerem toda a ordem de desgraças. Só que a vida real é diferente da ficção. Eu me sinto uma heroína por buscar transformar a minha dor em causa social. Na verdade, quando luto contra o bullying acabo por reconhecer o estrago que esses atos provocaram no assassino da minha filha e das outras 11 crianças. O meu perdão está evidenciado na causa que abracei. Mas ainda não consigo dizer diretamente “eu o perdoo”. O tempo vem me conduzindo ao exercício do perdão. Só não posso dizer o que ainda não está internalizado em mim. Não vi o sangue da minha filha, portanto o meu sangue, ser derramado com uma perfuração por alfinete. Foram dois revólveres calibre 38.
Artigos relacionados