Jéssica Barbosa: atriz transforma em peça a história real de sua avó no sistema manicomial


O primeiro espetáculo solo da artista baiana investiga as vozes femininas silenciadas pela estrutura manicomial: “A história de Judith foi uma história nossa, coletiva, tudo aquilo que não se encaixava no padrão hegemônico da sociedade era retirado de cena. Pessoas sem nenhum tipo de diagnóstico eram mandadas para hospitais por terem algum tipo de deficiência, por serem negras, gays. Militantes políticos foram manicomializados durante a ditadura militar”, pontua a atriz

*Por Brunna Condini

Afeto, acolhimento, ressignificando a dor e a transformando em arte. Isso tudo nunca fez tanto sentido como hoje. Vivemos tempos duros. Por isso, a atriz Jéssica Barbosa escolheu o momento para estrear seu primeiro solo teatral, ‘Em busca de Judith’, sobre a história real de sua avó paterna, a Judith Alves Macedo, mulher negra, mãe de cinco filhos, que foi internada compulsoriamente em um hospital psiquiátrico, onde permaneceu até a sua morte, em 1958.

O que despertou essa jornada pela história real da avó de Jéssica? “No momento mais difícil do meu primeiro parto, que foi domiciliar, eu vi uma corrente de mulheres dando as mãos. Aquilo me indicava que muitas vieram antes de mim, conseguiram parir seus filhos e estavam ali comigo. Quis saber mais sobre a mãe do meu pai. Me contavam que ela havia morrido em um acidente de automóvel. A história verdadeira chegou através da minha mãe, que me trouxe o livro ‘Ofereço meu original como lembrança‘, de Valter de Oliveira. No livro tinha uma foto dela e foi uma ponte para outra neta de Judith que também pesquisava sua história, Nubia Regina, esposa do Valter. Ela me contou sobre o que de fato pode ter acontecido com nossa avó. Naquele momento, eu decidi pesquisar mais sobre a história. É sobre essa jornada, permeada pelo silenciamento das vozes femininas e questões que atravessam o sistema manicomial que trata a peça”, observa Jéssica.

Jessica Barbosa embarca em uma jornada de buscas e descobertas sobre a história real de sua avó Judith (Foto: Fernando Dias)

Jessica Barbosa embarca em uma jornada de buscas e descobertas sobre a história real de sua avó Judith (Foto: Fernando Dias)

O diretor Pedro Sá Moraes, também marido da atriz, assina o espetáculo solo, que não busca ser uma restituição ou apontar culpados pelo o ocorrido com Edith. Em conversa ao site, Jéssica conta que não sabe exatamente que diagnóstico foi dado à avó para o confinamento. “A gente não conseguiu ter acesso ao prontuário médico. O hospital passou por um incêndio e, pela data, talvez nem existisse mais. Foi o que nos informaram. A gente não sabe de fato o que Judith teve. A história que me chegou é que ela ainda parida do meu pai, viu meu avô com outra mulher e tentou matar os dois. Assim foi levada sem saber, pelo meu avô, para um manicômio e deixada lá. Judith teve alta do hospital, mas quando chegou em casa, ele estava casado com essa outra mulher. Ela não teve para onde ir, voltou para o hospital para trabalhar como costureira, e ficou lá até morrer. Ela pode ter tido depressão pós-parto, um ataque de fúria por conta da traição. Muitos casamentos se desfaziam assim, os maridos mandando as esposas para manicômios. Achamos muitas histórias como a de minha avó”.

Judith Alves Macedo, a avó de Jessica Barbosa que viveu em um manicômio por 12 anos (Arquivo familiar)

Judith Alves Macedo, a avó de Jessica Barbosa que viveu em um manicômio por 12 anos (Arquivo familiar)

E continua relatando suas descobertas sobre a biografia da avó. “Foram 12 anos vivendo no hospital. Tem uma outra neta de Judith, que também foi muito importante para eu saber mais dessa história, a Sandra Mara. Os filhos de Judith foram criados por essa segunda esposa do meu avô. Eles não viram ela, nem quando voltou em casa para pegar a máquina de costura. Isso é o que se conta”, revela a atriz.

“Desde que iniciei esta busca mudei a minha perspectiva sobre o que é loucura, e me disponibilizo a tentar entender as estruturas por trás desses muros que se erguem em prol da dita normalidade. É importante debatermos a saúde mental diante de um governo que acabou com as políticas de redução de danos e propôs acabar com os CAPS e outros espaços de atenção psicossocial”.

"Desde que iniciei esta busca mudei a minha perspectiva sobre o que é loucura, e me disponibilizo a tentar entender as estruturas por trás desses muros que se erguem em prol da dita normalidade" (foto: Fernando Dias)

“Desde que iniciei esta busca, eu mudei a minha perspectiva sobre o que é loucura, e me disponibilizo a tentar entender as estruturas por trás desses muros” (Foto: Fernando Dias)

O espetáculo vem sendo gestado desde 2018, quando Jéssica e Pedro deram início à residência artística na Colônia Juliano Moreira do Rio de Janeiro. “Minha avó havia falecido no hospital psiquiátrico homônimo em Salvador (BA). Então, pudemos trocar com artistas que são usuários da rede de apoio à saúde mental, pesquisadores e estudiosos da obra do Bispo do Rosário”. Pedro filmou o espetáculo itinerante em espaços desativados da antiga Colônia, como a cela onde Arthur Bispo do Rosário foi internado e o antigo pavilhão feminino.

“A loucura ainda é um tema tabu, mas de responsabilidade coletiva tanto em sua produção, quanto na forma com que olhamos, pensamos e lidamos com ela. Na história da loucura há muito do racismo estrutural, da LGBTfobia, da exclusão a corpos com deficiência”, ressalta Jéssica. “A manicomialização foi só mais uma manifestação das opressões estruturais da nossa sociedade. Quando olhamos o livro ‘Holocausto Brasileiro‘ da jornalista Daniela Arbex por exemplo, a maioria dos corpos nas fotos são negros. Tem até uma imagem muito forte para mim, de uma pessoa trans, olhando dentro da lente. A história de Judith foi uma história nossa, coletiva, tudo aquilo que não se encaixava no padrão hegemônico da sociedade era retirado de cena. Pessoas sem nenhum tipo de diagnóstico eram mandadas para hospitais por terem algum tipo de deficiência, por serem negras, gays, e até mesmo militantes políticos foram manicomializados durante a ditadura militar”.

Pessoas sem nenhum tipo de diagnóstico eram mandadas para hospitais por terem algum tipo de deficiência, por serem negras, gays, ou até mesmo militantes políticos foram manicomializados durante a ditadura militar" (Foto: Fernando Dias)

Pessoas sem nenhum tipo de diagnóstico eram mandadas para hospitais por terem algum tipo de deficiência” (Foto: Fernando Dias)

E como a família lidou com o fato de ela transformar a história e a dor em criação artística? “Essas duas primas sempre entenderam que seria fundamental cuidar dessa ferida e da memória de Judith, e caminharam junto comigo, assim como meu companheiro e a minha mãe. Judith ainda tem um filho e uma filha vivos. No momento do projeto vir ao mundo, pedi autorização. Eles não querem mexer nessa ferida, que é muito maior dentro deles. Mas me deram toda liberdade para ser uma ferramenta de arte e reflexão oferecida ao mundo”.

Jessica, o marido e diretor do espetáculo Pedro Sá Moraes, e o filho Cícero: a atriz exalta as conquistas femininas que, infelizmente, separam sua história pessoal da trajetória de sua avó (Arquivo Pessoal)

Jéssica, o marido e diretor do espetáculo Pedro Sá Moraes, e o filho Cícero. A atriz exalta as conquistas femininas que, infelizmente, separam sua história pessoal da trajetória de sua avó (Arquivo Pessoal)

Jéssica também fala sobre o fato de tentarem (e ainda conseguirem), silenciar tantas mulheres e de todas as formas. “A luta é a primeira coisa que não pode cessar. E para que ela não cesse é preciso reconhecer as mudanças. A mudança pode ser vista entre uma geração a outra. Judith que foi manicomializada, Jéssica hoje conta sua história, divide em 50% a vida doméstica com o companheiro. Viemos de Dandaras, Carolinas, Palmares. Somos contemporâneas de Malunguinho, Érika Hilton, Angela Davis, Aza Njeri, Djamila Ribeiro. Precisamos olhar para essas mulheres e reconhecer a mudança que conquistamos até aqui, se não sucumbimos. Djamila e o “Pequeno manual anti-racista” foi líder em vendas, por exemplo. Mas ainda sofremos com violência doméstica, sobrecarga mental, desemprego e muitas outras questões dessa nossa estrutura ainda tão machista”, reflete.

“No espetáculo eu sou Jéssica, contando essa história, acreditando que tocar nessas feridas seja um movimento de cura. Chamamos o espetáculo de ebó, que é uma oferenda feita no candomblé. A arte pode alcançar uma dimensão espiritual, reorganizar, limpar, abrir caminhos. Eu espero que “Em busca de Judith” alcance essa dimensão de alguma forma”.