Stepan Nercessian: ‘Falhei na questão ajuizada do ponto de vista material. Não guardei nada e isso pesa’


A questão financeira é uma das avaliações que o ator faz em seus mais de 50 anos de trajetória artística. No último ano, por conta da pandemia, realizou trabalhos pontuais. E foi tomado por uma agonia por conta da morte de amigos e de cenas fortes que assistia nos telejornais. “Quando vi imagens de um amontoado de caixões e me vi perdendo amigos, me deu uma tristeza sentindo essa angústia universal, foi como um momento bíblico que eu nunca pensei que fosse viver. Me veio na cabeça a praga dos gafanhotos, o dilúvio de Noel, enfim, aquilo tudo que ficava distante no imaginário”, pontua. Em fevereiro, ele lançou a obra de ficção Garimpo de Almas, sua estreia como escritor, e tem intensificado na área. Além de já ter um novo romance pronto, ele vem escrevendo muitos poemas e pode lançá-los futuramente em um livro

Stepan Nercessian: 'Falhei na questão ajuizada do ponto de vista material. Não guardei nada e isso pesa'

* Por Carlos Lima Costa

Quando a pandemia da Covid-19 surgiu resultando em milhares de mortes ao redor do mundo, a tragédia sanitária foi impactando as pessoas nas mais variadas formas. No caso do ator Stepan Nercessian, cenas fortes transmitidas pelos telejornais o remeteram às passagens bíblicas. Uma sensação terrível. “A pandemia danificou tudo, fiquei em casa, saí poucas vezes. Quando vi imagens de um amontoado de caixões e me vi perdendo amigos, me deu uma tristeza sentindo essa angústia universal, foi como um momento bíblico que eu nunca pensei que fosse viver. Me veio à cabeça a praga dos gafanhotos, o dilúvio de Noel, enfim, aquilo tudo que ficava distante no imaginário. O pior é que a gente vive duplamente tragédias em termos de Brasil. Não tem rede de proteção nenhuma, sem poder trabalhar e de repente a vida continua igual”, enfatiza.

Stepan lembra que de cara foi impactado com projetos cancelados, adiados. “Sendo que sem a pandemia a vida já era insegura”. Por outro lado, como disse, ficou extremamente preocupado em se cuidar para não contrair a Covid-19. “Graças a Deus, não tive. Se tivesse não escapava. Além da idade (67 anos), sou tabagista, fumo muito, o pulmão já não é 100%. Por isso radicalizei na prevenção. Já vacinei, mas limpo sempre as mãos com álcool em gel, sigo todos os protocolos”, ressalta. Stepan recebeu a primeira dose ainda em 20 de janeiro, no Retiro dos Artistas, instituição da qual é o presidente.

Ele lembra que perdeu amigos que tomaram mais cuidados de março até agosto, setembro, como o ator Eduardo Galvão (1962-2020). “Quando deu uma aliviada, as pessoas deram uma relaxada e esse vírus é traiçoeiro. O perigo é a exaustão, o cansaço. Não é fácil para ninguém mentalmente controlar e ficar em casa. Na rua, você tem contato com as pessoas, pega condução, aí todo dia lava, tira roupa, essa loucura toda. Fico agoniado. Mas seguro a onda. Ele era um grande amigo, vizinho, a gente se via todos os dias, foi terrível. Ele tomava cuidados, mas achava que tinha melhorado, deu relaxada e foi fatal”, lembra.

"O Galvão era um grande amigo, isso foi terrível. Ele tomava cuidados, mas achava que tinha melhorado, deu relaxada e foi fatal”, lembra Stepan ao lado do amigo que morreu vítima da Covid-19 (Foto: Reprodução Instagram)

“O Galvão era um grande amigo, isso foi terrível. Ele tomava cuidados, mas achava que tinha melhorado, deu relaxada e foi fatal”, lembra Stepan ao lado do amigo que morreu vítima da Covid-19 (Foto: Reprodução Instagram)

Diante de tudo, acredita que a política no Brasil é mais um agravante. “Vejo com muita tristeza e preocupação. Gosto de salientar que a pandemia veio agravar uma situação ruim. Para o nosso setor deu balançada. Houve caça às bruxas, vários projetos adiados, parou Ancine, Funarte, jogando a população contra os artistas. A pandemia é a pá de cal de tudo. O país partido. Vemos exemplo dos Estados Unidos, dos males e os benefícios que uma liderança política pode realizar. Em 100 dias (com o presidente Joe Biden) teve mudança e transformação. O mundo olhava os Estados Unidos de maneira desconfiada com o (Donald) Trump. Hoje, já passaram a ver de maneira mais humana. Então, esta desumanidade está fazendo mal a todos nós, com violência urbana, ascensão de milícias. Vira uma luta não do bem contra o mal, mas entre a vida e a morte. Outro aspecto da negação da realidade que a pandemia colocou para fora, pessoas não tem aonde morar, isso revela uma sociedade egoísta. Tem gente vendendo almoço para comprar jantar. E não existe uma rede de proteção social. Isso atinge a todos, não somente os mais pobres”, reflete o ator em longo desabafo.

Stepan Nercessian como Chacrinha (Foto: Divulgação/TV Globo)

Já na pandemia, Stepan – que em 2019, no 18º Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, ganhou o troféu Grande Otelo, como Melhor Ator por seu desempenho no papel título do filme Chacrinha – O Velho Guerreiro – gravou os seriados Sob Pressão e Cine Holliúdy, na Globo, e o filme Confissões de uma Garota Excluída Mal-Amada e (um Pouco) Dramática, da Netflix.

Stepan Nercessian faz participação especial em Sob Pressão - Plantão Covid

Stepan Nercessian faz participação especial em Sob Pressão – Plantão Covid (Foto: Divulgação/TV Globo)

“Minha esposa tem uma confecção, loja, fábrica de biquíni, vende, manda para o exterior. Financeiramente, nessa fase de pandemia ela vem salvando mais a onda do que eu”, admite o ator citando a mulher, Desireé Nercessian, com quem cria os filhos Mateus, de 16 anos, Samantha, 13, Fabiana, 12, e Desireé, 6. “São filhos de uma sobrinha da minha esposa, ficaram sozinhos, ela teve problema, desapareceu e eu adotei, está para sair a aguarda definitiva. Não tive filhos, mas tenho experiência anterior. Ajudei também a Camila Amado quando éramos casados (ela era viúva com dois filhos e eles viveram juntos 14 anos). Nessa pandemia, com eles, aliás, virei tipo juiz do STF, porque de cinco em cinco minutos acontece algo, é uma questão para julgar. É difícil, eles tocam o rebu, tem uma energia que não acaba e dançam, pulam, brigam, choram”, realça ele, que não teve filhos biológicos.

Na pandemia acabou estreando no mundo literário, lançando em fevereiro, o livro Garimpo de Almas, pela Editora Tordesilhas, com prefácio de Cacá Diegues. “Gosto de escrever, sempre gostei, mas este foi um projeto que eu fui adiando. Sempre tive consciência de que o ato de escrever implica em entrega grande. Era algo visceral, aí me escondia nos personagens”, explica. Há 20 anos, começou a desenvolver essa obra em um computador, mas acabou deletando sem querer, restando apenas 15 páginas que tinham sido impressas. Foram anos sem dar continuidade ao projeto. “Não conseguia escrever mais nada. Até que em 2019, recomecei e terminei em julho/agosto. Quando era para lançar, veio a pandemia e fiquei sem noite de autógrafos. Mas teve repercussão muito gostosa. Sabia que tinha o dom para escrever e que mais cedo ou mais tarde ia me deparar com isso”, conta.

E destaca um pouco sobre  o tema da obra. “É um personagem qualquer que faz reflexão sobre a vida, sobre o que fez, é atormentado porque ficam almas querendo falar”, observa ele que estreou profissionalmente em 1970, com o filme Marcelo Zona Sul.

Stepan com o livro Garimpo de Almas, que marca sua estreia no mundo literário (Foto: Reprodução Instagram)

Qual seria a reflexão de Stepan sobre sua própria vida? “Nesse balanço da vida a gente percebe que o horizonte pra frente é menor do que o que ficou para trás. Não tenho mais a ilusão da juventude que é eterna. Vejo o positivo e frustrações. No meu balanço, me considero feliz. Gostaria de ter feito mais. Eu não pirei. Tudo que fiz é comigo mesmo. Não responsabilizo ninguém pelas adversidades que eu vivi. Fiz muitos amigos. Tenho poucos amigos íntimos. No profissional sou respeitado pelos mais velhos e pela juventude que me recebe e me abraça com carinho e respeito. Acho que posso ter falhado na questão ajuizada do ponto de vista material. Não guardei nada. Quando fica mais velho isso pesa. O meu dinheiro eu sempre dividi e gastei com todo mundo. Meu balanço é esse. Quando me perguntam como estou? Super mais ou menos. Mas estou bem”, diz em longa avaliação o ator que ao longo de sua trajetória atuou em novelas como Duas Vidas, O Astro, Sétimo Sentido, O Outro, Vale Tudo, Mulheres de Areia, Zazá e Kubanacan.

Durante a pandemia, em casa, exercitou mais esse lado escritor. Escreveu poesias e postou muitas no Instagram. “De março até novembro escrevi 1 ou 2 poemas por dia. Tenho uns 100 esperando e podem ganhar o formato de um livro”, realça. Tem ainda novo romance. Voltar a escrever foi meio que um resgate da juventude quando trabalhou em jornal de Goiás. Foi auxiliar de revisor, revisor e até reportagem fez. “Aprendi a escrever no jornal. Estudei até o segundo ano ginasial, sempre fui péssimo, mas tirava nove em redação e dois em gramática…….Sempre tive vontade, aí dirigi e escrevi muito para quadro de humor do Chico Anysio Show. Sou bem de encomenda”, lembra.

“As doações para o Retiro dos Artistas diminuíram bastante na pandemia, mas a gente segue lutando e sempre aparece alguém com alguma ajuda”, conta Stepan (Foto: Divulgação)

Stepan, que está há 20 anos como presidente do Retiro, diz que o espaço praticamente não foi afetado pela Covid-19. “Por incrível que pareça passou o ano todo, tomamos todas as precauções sem nenhum caso. Aí teve a vacina, duas doses em funcionários e residentes. Mas um porteiro pegou, voltamos com todas as restrições, teve um óbito, ele tinha comorbidade, vinha tratando câncer”, explica, referindo-se ao músico Ilsio Moreira, pai da percussionista Lan Lanh.

O espaço depende da ajuda de terceiros. “Em um primeiro momento, as doações de comida foram mais fáceis. Depois, as doações diminuíram bastante, pessoas que doavam não estão podendo doar, fenômeno que aconteceu com todas as instituições…Mas a gente segue lutando e sempre aparece alguém com alguma ajuda”, diz. E continua: “A vida é cheia de surpresas, leva a pessoa a precisar estar ali. O que a gente trabalhou foi resgatar a auto estima. Essa história de que lá era fim de vida, acabou. Dercy Gonçalves falava que uma vedete jogava na cara da outra ‘você vai terminar seus dias no Retiro’, como se fosse algo ruim, mas isso mudou. Lá as pessoas se sentem bem felizes, isso é gratificante e vai além disso. Na vida temos que pensar na qualidade de vida e na da morte. Tem que ter dignidade na vida e na morte.” Entre os famosos, que moram lá atualmente estão nomes como a cantora Leny Andrade, a atriz e escritora Maria Lúcia Dahl, e o ex-goleiro Manga

E por falar em futebol, Stepan é torcedor fanático do Botafogo, que não anda em uma fase boa e este ano vai disputar a série B do Campeonato Brasileiro. “É uma pena, é mais uma instituição passando por um perrengue danado. O futebol brasileiro é uma esculhambação, mas a paixão pelo clube é visceral. A camisa que mais uso é a do Botafogo”, afirma.