‘Sinto e escuto que a relação clube-torcedores da Chapecoense nunca mais foi a mesma’, diz o escritor Roberto Passeri


O jornalista revisita a tragédia do avião da Chapecoense no livro “Infinitos Lutos – De Histórias Não Contadas de Chapecó”. Através de depoimentos colhidos em sete meses, Passeri, hoje morando na Itália, revela as tragédias pessoais e superações de amigos, parentes e moradores da cidade catarinense. Ele também comenta sobre a ‘indústria do futebol’, que vende o sonho do enriquecimento e da fama para os jovens: “Não acho que seja uma exclusividade do futebol. Acho que é um problema da nossa sociedade e deste nosso tempo. O dinheiro e o status acima do bem-estar. Jovens se tornam produtos, perdem seu valor humano. O futebol, por despertar tantas paixões e sonhos, talvez seja o caso mais emblemático. Mas vemos a indústria da música, dos youtubers e outras tantas fazerem a mesma coisa. Há muito o que mudar”

*Por Brunna Condini

Foi na noite do dia 28 de novembro de 2016 que o voo 2933 da empresa boliviana La Mia caiu no morro El Gordo, a 35 quilômetros do aeroporto de Medelin, na Colômbia. No avião estavam 77 passageiros em um voo fretado pela Chapecoense, que estava a caminho de disputar a final da Copa Sul Americana contra o Atlético Nacional, em Medelin. A bordo, além dos jogadores, comissão técnica e outros funcionários do clube, e também jornalistas, quando a aeronave bateu no alto do morro e se despedaçou. Morreram 71 pessoas e entre os sobreviventes estavam os jogadores Jackson Follman, Helio Zampier Neto e Alan Ruschel. E dos 20 jornalistas que os acompanhavam somente o locutor Rafael Henzel sobreviveu (Rafael morreu ano passado após sofrer um infarto durante um jogo entre amigos). Os outros encontrados ainda com vida eram dois tripulantes e o goleiro Marcos Danilo Padilha, que não resistiu e faleceu logo depois. Um tragédia imensa e que deixou o seu registro nas famílias e na cidade para sempre.

O acidente que aconteceu há exatos quatro anos é revisitado no livro “Infinitos Lutos – De Histórias Não Contadas de Chapecó” (Ed. Ludopédio), em surpreendentes relatos colhidos pelo jornalista Roberto Passeri, durante sua incursão de sete meses na cidade catarinense. O autor foi em busca dos parentes e amigos das 71 vítimas, para descrever o abismo que foi aberto sob os pés dos mais antigos moradores.

O jornalista Roberto Passeri lança “Infinitos Lutos – De Histórias Não Contadas de Chapecó” (Divulgação)

Roberto concedeu entrevista ao site diretamente da Itália, onde está no momento e falou das impressões e da experiência do contato com a cidade neste tempo após o acidente. Como as famílias e o lugar vem fazendo para superar essas perdas? “Preciso destacar que cidade e famílias são coisas bem diferentes neste caso, porque a maioria das famílias não mora mais lá. E continua sofrendo bastante, não só pela dor natural do luto, mas pelo desgaste contínuo com audiências, processos, comentários maldosos e etc. É quase impossível ‘virar a página’ assim. A cidade, de alguma forma, precisou seguir e foi mais capaz de fazer isso. Não posso dizer muito por não estar mais presente, mas sinto (e escuto) que a relação clube-torcedores nunca mais teve a mesma química”, diz Roberto.

“A cidade, de alguma forma, precisou seguir e foi mais capaz de fazer isso. Não posso dizer muito por não estar mais presente, mas sinto (e escuto) que a relação clube-torcedores nunca mais teve a mesma química” (Divulgação)

As famílias ainda lutam pelas indenizações na Justiça. Estima-se que cada uma impactada pela tragédia pode ter direito a cerca de 4 a 5 milhões de dólares, segundos advogados. Para escrever ‘Infinitos Lutos’, você passou sete meses vivendo em Chapecó. O que destaca e como essa experiência o transformou? “Eu digo sete meses, mas acho que estive vivendo em Chapecó até outro dia, até conseguir finalmente dividir esse material com o mundo exterior. E, ainda assim, tenho minhas dúvidas se saí de lá, sabe?”, reflete o jornalista.

“Quando a gente decide contar histórias de pessoas — sobretudo as trágicas —, passa a ser responsável por elas. Eu tinha 25 anos, isso me gerou uma ansiedade imensa, me jogou no buraco. Mas também me trouxe muito amadurecimento pessoal e profissional, me trouxe grandes amigos, e agora, vendo o projeto concluído, muita vontade de mergulhar em outras pautas”.

“Eu digo sete meses, mas acho que estive vivendo em Chapecó até outro dia, até conseguir finalmente dividir esse material com o mundo exterior” (Divulgação)

Passeri se mudou para Chapecó em 2017 e mergulhou de cabeça na vida da cidade, do clube e na história das pessoas. O livro é sobre perdas, memórias e algumas histórias de superação. Escrevendo um livro como esse, dá para não se envolver? “Não posso falar por outros jornalistas, escritores, cada um tem o seu chip, né? Para mim, é impossível. Me sensibilizo demais com a dor das pessoas e, mesmo se fizer esse tipo de trabalho por 50 anos, misturarei o profissional com o pessoal e nunca será tranquilo. O projeto ficou parado por quase um ano depois que voltei de Chapecó. Não conseguia mais escrever e tive depressão. Ali, achei que tinha acabado. Acho que terão que ler o livro para entender melhor todo esse processo”, revela.

“Me sensibilizo demais com a dor das pessoas e, mesmo se fizer esse tipo de trabalho por 50 anos, misturarei o profissional com o pessoal e nunca será tranquilo” (Divulgação)

Empatia na dor do outro

O jornalista carioca já escreveu para os canais SporTV, Premiere, Universal, Multishow e Bis, e em 2018 foi morar em Portugal, onde concluiu o curso de formação de treinadores da UEFA, além da edição do livro que acaba de lançar. Por que contar essa história? Você teve em sua experiência pessoal alguma grande perda ou foi sua motivação jornalística? “Acho que o Jornalismo precisa repensar o seu papel em uma era de “overdose” de informações, escolher melhor as suas pautas e contar mais profundamente as histórias. O livro é também sobre isso. Narrativas importantes que passaram à sombra dos holofotes da cobertura de uma grande tragédia”, analisa. “Eu perdi um dos meus melhores amigos há dois anos, quando já tinha voltado de Chapecó. Obviamente isso também transformou a minha visão sobre a perda, sobre o luto e, em grande medida, moldou o tom do que escrevi”.

Das histórias ‘não contadas’, o que pode destacar para nós? “São muitas. Mas vou destacar a história de La Unión (pequeno vilarejo onde o avião caiu) e do seu ex-prefeito, um sujeito que sofreu várias tentativas de sequestro no caos colombiano dos anos 1990. Ele teve um sonho premonitório na noite da tragédia e liderou as buscas por pertences nos destroços do avião para devolver às famílias. Beira o realismo mágico essa história. Entrevistei, acho que exclusivamente, esse personagem incrível lá em Chapecó”, conta Roberto.

O autor também conta o momento mais difícil na jornada para a construção da obra: “ Foi algo técnico, prático, pois evidentemente o emocional está acima de tudo. Tive muita dificuldade, enquanto jornalista anônimo, sem o “guarda-chuva” de um veículo de imprensa, de chegar até muitas pessoas. Queria, por exemplo, ter conversado com um dos sobreviventes e não foi possível naquele momento. Por outro lado, isso acabou direcionando ainda mais o meu trabalho para as histórias que ninguém estava prestando atenção”.

“Acho que o Jornalismo precisa repensar o seu papel em uma era de “overdose” de informações, escolher melhor as suas pautas e contar mais profundamente as histórias” (Divulgação)

Dinheiro e status X bem-estar

O que acha dessa indústria do futebol que vende o sonho da mudança de vida do dia para a noite e da fama? A tragédia do Ninho do Urubu, por exemplo, mostra que nem sempre isso vem acompanhado da devida responsabilidade com a vida dos jovens… “Não acho que seja uma exclusividade do futebol. Acho que é um problema da nossa sociedade e deste nosso tempo. O dinheiro e o status acima do bem-estar. Jovens se tornam produtos, perdem seu valor humano. O futebol, por despertar tantas paixões e sonhos, talvez seja o caso mais emblemático. Mas vemos a indústria da música, dos youtubers e outras tantas fazerem a mesma coisa. Há muito o que mudar”.

Os números em torno de contratações e vendas de jogadores são amplamente noticiados e atraem muitos jovens para o sonho de se tornar também um jogador. Mas o que ninguém sabe sobre os percalços deste caminho? “Eu treinei jovens por um ano em Portugal, quando concluí o curso da UEFA, e me impressiona que ali ainda esteja muito preservado o componente lúdico do esporte, uma inocência inerente ao trabalho de formação. Nós perdemos isso para as nossas mazelas, para nossa profunda desigualdade. O jovem futebolista, no Brasil, quase sempre tem apenas aquela chance de mudar a sua realidade e a da família. Isso não tem nada de bonito, principalmente quando sabemos que nem 1% chega ao topo”, observa.

 Fim de ciclo

Divulgando o livro e escrevendo dois roteiros, ele está morando na Itália por um curto período, e comenta sobre a situação do país em relação à Covid-19. A Itália bateu recentemente recorde diário de mortes pelo coronavírus e já proibiu as viagens de Natal E Ano Novo. “Ainda bem que tem bastante trabalho para ocupar a cabeça, senão estaria pior. Não consegui ver quase nada da cidade e arredores, estou preso em casa e não conheço ninguém aqui. Mas estou saudável, tocando a vida e isso é que importa. É um baita privilégio na verdade”.

E com esse panorama, como pretende passar o fim de ano? “Essa pergunta me deixou um pouco triste (risos). Acho que, até pelo que falamos antes, não vai ter muito jeito: em casa, no Norte da Itália. Pelo menos o vinho é bom e barato, né? Há uma remota possibilidade do meu irmão conseguir vir da Espanha com a minha minha sobrinha, mas não estou contando com esse presente”.