*Por João Ker
O Rio de Janeiro recebe hoje (27/06) uma parte da maior exposição de toda a sua história, a artevida, com mais de 110 artistas e 300 obras produzidas tanto por nomes nacionais quanto por artistas do Leste Europeu, Oriente médio, África e Ásia. “A ideia começa a partir da própria cidade, com o contexto social e político do Rio entre as décadas de 1950 e 1980 como ponto de partida”, explica o curador Rodrigo Moura, atual diretor de arte e programas culturais do Instituto Inhotim, responsável pela mostra, ao lado de Adriano Pedrosa. “Nós utilizamos referências brasileiras e cariocas, a partir das quais conseguimos criar um diálogo internacional para formar uma exposição global. Reunimos artistas de várias partes do mundo e procuramos dar ênfase em outros países que estão fora dos grandes centros artísticos”, continua Rodrigo. A exposição, dividida em quatro núcleos, se espalha por quatro instituições cariocas e promete dar o que falar. Nesta sexta-feira pela manhã foi a vez do vernissage na Casa França-Brasil, que recebeu a seção [corpo] da mostra. HT esteve no badalo para conferir o evento e bateu um papo exclusivo com Rodrigo Moura.
A temática do corpo não parece apenas uma simples coincidência quando se trata da Cidade Maravilhosa que é, sem dúvida alguma, a capital mundial do culto ao físico (junto com Miami), com suas praias lotadas de shapes sarados e silhuetas curvilíneas expostas ao sol. “Através do olhar de artistas brasileiros como o Hélio Oiticica, nós podemos analisar como o corpo é um complemento, algo objetivador, modificador e transformador do movimento artístico. Esse núcleo específico traz a ideia de examinar como esses artistas no período de 1950, 1960 e 1980 pensavam o corpo na arte”, comenta o curador.
Além do corpo em sua forma literal e funcional, há também na Casa França-Brasil um viés que explora a sua relação com o conceito de “linha orgânica” criado por Lygia Clark, artista brasileira neoconcretista que recentemente ganhou uma retrospectiva de seu trabalho no MoMA, em Nova York. “Há essa aproximação com a linha orgânica de Lygia, que serve como ponto de partida para repensar a abstração geométrica dentro de outros parâmetros. Ela se associa ao corpo através da manualidade, da costura, do tecido, das superfícies moles e rígidas etc.”, esclarece Rodrigo.
A quantidade de peças expostas na Casa França-Brasil é realmente impressionante, ainda mais considerando que esse é apenas um dos quatro espaços separados para a artevida. Há as abstrações da tal linha orgânica, com o próprio trabalho de Lygia Clarke marcando presença através de séries como “Bichos”, com suas dobraduras e manipulações de formas geométricas nas dimensões do plano; ou como na sequência fotográfica “Caminhando”, na qual a artista aparece recortando uma folha de papel branca em tiras, dando-lhe nova forma enquanto conceitua o ato da escolha e da finitude de opções.
Uma linha similar, mas menos abstrata, pode ser conferida nas fotografias da série “Intervention”, de Edward Krasinsk, onde há uma interseção entre um traço horizontal que começa nas paredes de uma casa antiga e ultrapassa ou termina nos corpos de uma criança nua, mulheres e homens. A obsessão do artista com linhas reaparece em “Zig Zag”, que sai das fotografias pregadas na parede e toma o chão do museu através de uma instalação.
O corpo vai assumindo sua forma mais literal à medida que o espectador adentra na a exibição. Há o trio de fotos “Spectro”, da mineira Iole de Freitas, que mostra um movimento progressivo da angústia à libertação, através de closes feitos em tons quentes, evidenciado pela arqueação das pernas da mulher. Já a húngara Dóra Maurer provoca reflexões com os autorretratos em preto-e-branco, onde o reflexo da artista imerge em um caleidoscópio bizarro de espelhos inseridos uns dentro dos outros.
E o audiovisual também se faz presente na curadoria, com a presença de Yoko Ono e sua videoarte “Cut Piece”, feito em 1964 e na qual a polêmica artista executa uma performance onde sua roupa é cortada aos poucos. Algo que dialoga muito bem com o filme “Personal Cuts”, da croata Sanja Ivekovic, que surge com o rosto envolto em um pedaço de tecido e, progressivamente, vai fazendo cortes circulares no mesmo, enquanto pequenos pedaços da sua tez são revelados ao público, algo que pode ser interpretado como a libertação gradual do corpo.
“Cut Piece” de Yoko Ono
Há também obras mais perturbadoras e menos convencionais, mas ainda assim dignas em seu modo de execução e sua ideologia (nem tão) subliminar. A auto “Antropofagia”, do recifense Paulo Bruscky, é exposta através de fotos nas quais um homem aparece cortando o próprio corpo obeso, peludo e coberto por desenhos de comida. O grotesco aparece de forma delicada e quase poética na série “Self-Performance”, do alemão Jürgen Klauke. O artista começa o trabalho com uma fotografia de costas e aparentemente comum, mas que vai se desdobrando em uma metamorfose animalesca na qual ele encarna uma figura andrógina e confusa, ao mesmo tempo em que deixa transparecer uma certa melancolia no olhar ao usar um vestido de noiva. Com apêndices artificiais de órgãos femininos com tamanho exacerbado e uma espécie de chifres que saem de seus mamilos, o artista provoca uma das mais fortes reflexões sobre as características metamórficas do corpo e sua capacidade de adaptação.
Mas nem só de impacto sobfrevive a mostra, que também dá vazão à expressão do singelo. A delicadeza e sensibilidade do corpo também encontram lugar na artevida. Por exemplo: a fotografia “Nest”, de Birgit Jürgenssen, mostra como, apesar de tudo, uma das funções primordiais do corpo (ao menos, o feminino), a reprodução, pode ser pura arte, revelando como essa capacidade é passível de gerar uma inocente e cândida beleza: o feto – mesmo que aqui ele apareça na forma de um ovo de passarinho. Por sua vez, “Divisor”, de Lygia Pape, também ostenta seu próprio tipo de pureza ao unificar vários crianças de sorriso faceiro em um só corpo unido por um gigante tecido branco.
A artevida se divide em quatro eixos, cada um ocupando seu espaço em pontos diferentes da capital fluminense. Nessa manhã, ocorreram as inaugurações das partes [corpo], na Casa França-Brasil, e [parque], na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. As próximas seções, [política], no MAM, e [arquivo], na Biblioteca Parque Estadual, estreiam no próximo dia 19 de julho. “A parte política conta muito da história tanto da capital fluminense quanto do país em si, através da manifestação, da democracia, da eleição, da participação do público e da ocupação do espaço público. As duas se complementam e se entrelaçam através de artistas em comum como Hélio Oiticica, Lygia Pape e Paulo Bruscky, por exemplo”, ressalta Rodrigo.
A parte politizada da arte chega em um ótimo momento para o país, apenas poucos meses antes das eleições presidenciais. Se ela conseguir levantar o mesmo tipo de discussão e reflexão apresentadas no eixo [corpo], então a arte mais uma vez poderá exercer o papel transcendental de avivar o pensamento crítico no público.
Fotos: Divulgação
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