Potência da literatura brasileira contemporânea, Mariana Salomão fala sobre luto feminino e solidão conjugal


A autora está fazendo sucesso com a obra “Não Fossem As Sílabas do Sábado”. Com a estreia do filme “Priscilla” no cinema, o debate sobre o luto feminino é o assunto da vez. “Procuro sempre falar sobre a perspectiva feminina nos meus livros. As narradoras [de “Não fossem as sílabas do sábado”] são mulheres e um dos lutos é, inclusive, mais silencioso do que o outro. É uma solidão feminina, em que as mulheres se colocam ao se dedicarem tanto assim ao conjugar. Gosto de retratar isso na máxima potencia”

Mariana Salomão fala sobre luto feminino e solidão conjugal

*por Luísa Giraldo

Releitura baseada no livro “Elvis e Eu”, escrito por Priscilla Presley, o longa “Priscilla” chegou aos cinemas brasileiros. A ítalo-americana Sofia Coppola dirige o filme arrebatador com um olhar feminino fugaz, capaz de ser construído e captado apenas pela ótica de uma mulher. Sutilmente, o longa-metragem aborda o luto silencioso da esposa de Elvis Presley (1935-1977), ao se dar conta que o maior aliado no casamento deles é a solidão. Em consonância, o livro “Não fossem as sílabas do sábado”, de Mariana Salomão, trabalha a ideia do luto feminino e a solidão das dores pertences às mulheres que se dedicaram integralmente ao casamento. Em conversa exclusiva ao site Heloisa Tolipan, a autora da obra e expoente da literatura contemporânea brasileira, reflete sobre a dor fúnebre feminina e os desafios de ser mulher no contexto conjugal.

Inegavelmente, “Priscilla” e “Não fossem as sílabas do sábadocompartilham o elemento da solidão propiciada pelo matrimônio. Apesar das distinções em ambas as narrativas, é abordada a dor do luto feminino; dor pela rejeição e abandono, por parte da esposa de Elvis, e o processo fúnebre de aceitação da perda no livro. Seja qual for outras possíveis conexões, Sofia e Mariana se unem para contar narrativas femininas de peso e sensibilidade.

“Um tema que gosto de trabalhar nos livros é justamente a romantização do quanto nós somos sempre levadas a focar no [relacionamento] conjugal, principalmente as mulheres heterossexuais ou que se relacionam com homens. Ele isola mesmo as mulheres. Os anos vão passando e a gente vai perdendo vínculos e os laços vão ficando mais formais. Apesar de ter muito apego às amigas, a gente se vê muito menos”, explica.

A escritora pontua que, em situações em que a mulher deseja acabar com o casamento, geralmente, descobre a inexistência de outros vínculos fortes com o passar das décadas. Em sintonia, Mariana defende que não há motivos para que o “cônjuge seja tão absoluto” na vida pessoal, mas que pode — e deve — dividir o pódio de importância com outras relações.

A artista Mariana Salomão critica a dinâmica da solidão conjugal feminina

Mariana Salomão critica a dinâmica da solidão conjugal feminina (Foto: Divulgação).

“Acredito que os conceitos de família podem se expandir muito mais para a gente ser completa e estar sempre feliz e e com uma rede de amizade mesmo e de vínculos. Ela preenche o que buscamos com conceito de família: a sensação de conforto, lealdade e intimidade. Mesmo em relações entre mulheres, pode acontecer a romantização de se focar [apenas] nos dois, assumir a dois e começar a lutar pela relação a todo custo acaba deixando a gente sem amizades. É uma luta que a gente precisa empreender todos os dias para não sentir dessa forma em casal”, alerta.

Com bastante humor, a escritora propõe a obra “Não fossem as sílabas do sábadocomo “uma alegoria no sentido de já matar os homens de cara”. Ela frisa querer deixar clara a mensagem de que são poucas relações e coisas que sobram da vida de uma mulher sem o marido.

“Procuro sempre falar sobre a perspectiva feminina nos meus livros. As narradoras [de “Não fossem as sílabas do sábado”] são mulheres e um dos lutos é, inclusive, mais silencioso do que o outro. Quis trazer a perspectiva da narradora, Ana, a viúva que se sente legitimada a sofrer e a ganhar todos os direitos em relação a outra, culpabilizando-a. A Madalena é uma personagem que não tem espaço para contar a dor dela, porque o marido foi causador desse acidente”.

Mariana descreve que, ao longo da história, os leitores e leitoras podem perceber a narrativa da personagem Madalena pelo silêncio, em uma “versão mais raivosa e irascível da outra ao mesmo tempo acompanhando esse vínculo feminino”. A autora explica que o vínculo de amizade intensa que surge entre elas forma uma família, sem que elas se deem conta de tal fato.

“A gente acompanha tanto o luto desde o acidente, que já passou há um tempo e ela continua bastante em volta nisso, como o tempo dessa amizade. Desde o começo até o final do livro, há uma evolução muito forte desse vínculo, pelo menos o reconhecimento da Ana. Uma aproximação maior afetiva da Madalena e a Catarina e a maternidade da Ana com a Catarina”.

A escritora Mariana Salomão escreve sobre o tema do luto feminino e a solidão conjugal (Foto: Renato Parada)

Indicada como uma das principais expoentes da literatura nacional, a escritora menciona a falta da figura paterna. A Ana cresce com a naturalidade de uma criança quanto à perspectiva que elas são uma família.

“A maternidade da Ana acaba sendo muito difícil, porque ela está muito esgotada. Ana era uma uma pessoa com muitos planos, do tipo que a gente faz na juventude. Quando gestante, ela tinha uma ideia de como seria essa maternidade e estava muito animada para contar para o marido e começar essa vida que eles sonharam. Mas ela não consegue sair desse plano inicial e não consegue adaptar a felicidade dela para o que restou e para o que está começando na vida dela. Então, a criança nasce e cresce em um ambiente de muita dor, e percebe essa dificuldade que ela tem de amá-la livremente”, descreve.

Segundo Mariana, trata-se de um livro “cheio de culpas”, em que as mulheres estão envolvidas em questões relacionadas a esse sentimento. A escritora ressalta a abordagem da morte na obra, descrita por ela como “muito peculiar”.

Reflete ainda sobre a relação feminina com as efemeridades da vida. “No caso do livro, a relação com a morte é muito peculiar, já que vem de uma tragédia, mas as amizades entre as mulheres são grandes. Me toca muito o fato de termos vínculos muito mais fortes, que poderiam ser as nossas relações prioritárias com o potencial para durar durante a vida toda, e acabarmos focando no conjugal. A gente romantiza tudo mais. É terrível deixar esses outros vínculos com paralelos como subsidiários encaixáveis ali em um dia que sobra”.

É uma solidão feminina, em que as mulheres se colocam ao se dedicarem tanto assim ao conjugar. Gosto de retratar isso na máxima potencia — Mariana Salomão.

Com emoção pelo tópico, Mariana confessa acreditar que as mulheres poderiam ter vínculos mais fortes em vida — que não só conjugal. Ela avalia que a relação familiar entre amigas e mulheres “seria tão ou mais bonito do que uma vida conjugal plena e mais viável”. Para a autora, as relação não devem competir, apesar do vínculo do matrimônio ganhar no dia a dia pela convivência.

O luto feminino

Mariana Salomão explica que a vivência do luto se dá, sobretudo, pela gestação. A personagem acaba sendo forçada a sair depressa desse luto por conta da maternidade e da vida que está gestando.

A escritora Mariana Salomão reflete sobre a maternidade em uma perspectiva dolorosa para a mulher (Foto: Renato Parada)

“[O que resta à personagem é] àquela sensação de vida versus morte. Isso faz com que o luto dela seja prolongado e acabe como uma violência. Para ela lidar com esse estupor de vida no ventre em oposição ao que aconteceu em volta, fica essa revelação engasgada desde o começo do livro”, disse ela sobre a obra.

Ao explicar a “punção de vida em meio a morte”, Mariana associa esse tipo de luto a uma questão feminina. A artista afirma que se trata de um lugar “muito silencioso”, já que a personagem era muito solitária. Ela não tinha mais vínculos com os familiares e amizades, pois todas as relações dela estavam ligadas à felicidade conjugal.

Sinopse

Disponibilizado no Google Books, o resumo do livro é o seguinte:

“Depois da morte de André, o lar de Ana fica dolorido. Sem o marido, ela passa a gestar a filha órfã e a lidar com Francisca, a babá que intervém com seus tentáculos de ajuda, e também Madalena, a vizinha, viúva do outro homem envolvido no absurdo acidente que vitimou André.

Neste romance, com sua narrativa íntima que assombra pela concretude, a autora se consolida como uma das vozes mais urgentes da literatura brasileira de hoje”.

O longa-metragem “Priscilla”

A diretora Sofia Coppola se baseou no livro Elvis e Eu, escrito por Priscilla Presley em pareceria com Sandra Harmon em 1985, como autobiografia do relacionamento dela com o Rei do Rock. A obra esmiúça os conturbados 14 anos de desavenças e amor de Priscilla e Elvis Presley.

A artista Mariana Salomão propõe uma reflexão sobre a solidão da mulher (Foto: Renato Parada)

Não é a primeira vez que Hollywood se debruça na história do famoso casal em produtos audiovisuais. Em 1988, um filme de romance homônimo, “Elvis and Me” foi lançado com os atores Dale Midkiff e Susan Walters como protagonistas.

A sinopse do filme de 2024 é a seguinte: “a adolescente Priscilla Beaulieu conhece Elvis Presley em uma festa e o astro se torna alguém completamente inesperado em momentos íntimos. Priscilla vive uma paixão arrebatadora com o Rei do Rock, ganhando um aliado na solidão e um melhor amigo”.