O dilúvio segundo David Lachapelle: catástrofe bíblica vira delírio pop em Roma. E o site HT embarcou nessa viagem in loco!


A Cidade Eterna recebe 100 obras – algumas inéditas – do celebrado artista pós-pop norte-americano, discípulo de Andy Warhol, que continua surpreendendo até aqueles que o apelidaram como “o Fellini da fotografia”

* Por Flávio Di Cola, de Roma

O Palazzo delle Esposizioni, sede da mostra “David LaChapelle, Dopo il Diluvio”, localiza-se na Via Nazionale – importante artéria da capital italiana – cujas duas extremidades estão nitidamente marcadas por ruínas monumentais que atestam a grandiosidade do que foi o centro do maior império da Antiguidade: as Termas de Diocleciano e o Mercado de Trajano, uma espécie de gigantesco shopping center dos antigos romanos. Impossível encontrar um lugar mais sugestivo para expor a obra de um dos mais debochados, espetaculares, estranhos e sublimes artistas entre os que afloraram na cena pós-Andy Warhol e que herdou – após as mortes trágicas de Keith Hering e Jean-Michel Basquiat – o protagonismo na crítica devastadora e irreverente à civilização do espetáculo, do poder, do consumo, do simulacro e da vulgaridade iniciada pelo “Rei do Pop” no início dos anos 1960. Portanto, é com naturalidade que encontramos entre as ruínas da Roma Antiga os retratos de outra civilização que também agoniza e caminha para a extinção: a nossa.

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A mostra cobre quase dez anos de criações (2006-2015) de David LaChapelle na arte fotográfica distribuídas em oito seções temáticas: O dilúvio, A terra ri nas flores, Natureza morta, O meu Jesus privado, Postos de gasolina, Land Scape, Aristocracia e Valores no negativo/Incidentes. A primeira seção abre-se com uma obra que carrega a missão de produzir no público um verdadeiro choque através da colossal interpretação estético-conceitual “lachapelliana” do dilúvio, apimentada cinicamente com o olhar grandiloquente do diretor de épicos-kitsch de Hollywood Cecil B. DeMille e repleta de citações ao maior gênio da Renascença, Michelangelo. Inspirada assumidamente na obra colossal do pintor para o teto da Capela Sistina, “Deluge”, de 2006, também foi concebida com o escopo exclusivo de ser exposta no contexto de uma galeria de arte. E os organizadores da mostra parecem ter levado a sério esta vocação espetacular da obra, pois ela domina solenemente o saguão principal do palácio de exposições, fascinando e assustando ao mesmo tempo o público com a síntese prodigiosa que faz da iconografia clássica com a cultura pop e a metafísica do surrealismo. LaChapelle nunca escondeu sua dívida para com Michelangelo: “Desde criança sou fascinado por ele. Quando olhamos a sua obra, olhamos para o mundo. Não o mundo da arte, mas o “mundo” mesmo, sua “humanidade””. O curador da exposição, Gianni Mercurio, arremata, teorizando sobre as ligações inequívocas entre a arte do passado e o esfuziante mundo pop: “A pintura sacra renascentista, a fim de divulgar temas e mensagens espirituais e torná-las compreensíveis para todos, adotou códigos de comunicação visual de massa, muito antes da arte pop”. Touché!

Na série “O Dilúvio”, a crônica fatal de uma sociedade que se tornou inviável:

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Outra seção da exposição que atinge diretamente a sensibilidade do público pela mistura audaciosa que David LaChapelle faz de imagens midiáticas com o surrealismo, e com uma visão debochada do sublime e da promessa de salvação é “O meu Jesus privado”. Na obra “American Jesus”, de 2009, há um troca-troca de papéis em que um Jesus Cristo hippie se transmuta em figura materna e ocupa o lugar da Madonna que sustenta o corpo de ninguém menos do que Michael Jackson no lugar do próprio Salvador. Depois disso, Michael Jackson ainda assume o papel do anjo que esmaga um libidinoso diabo em “Archangel Michael”, também de 2009, reconfirmando a sua posição inquestionável na trindade da religião pop, completada por Marylin Monroe e Elvis Presley.

Na série “O meu Jesus privado”, a crônica impiedosa da banalização do sagrado:

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Se David LaChapelle é considerado por muitos como uma versão pós-tudo do genial cineasta Federico Fellini (1920-1993) é por que ele também conhece muito bem “la dolce vita”, mas não aquela do início dos anos 1960, mas sim a contemporânea, povoada por figuras e celebridades cada vez mais improváveis, turbinadas pelas novas mídias. Se Fellini não chegou a uma conclusão sobre onde iriam acabar aquelas figuras tresloucadas e vazias que vagavam pela passarela hedonista simbolizada pela Via Veneto dos sixties, David LaChapelle sabe muito bem o que vão virar os donos do mundo e as celebridades do circo midiático de hoje: bonecos impiedosamente desfigurados e descartados no lixo de um sinistro museu de cera, como ocorreu com Margareth Tatcher em “Margaret” e em “Anonimous Politicians”, ambos de 2012, e que integram a seção “Natureza Morta” da exposição.

Na série “Natureza Morta”, celebridades viram cacos de um museu de cera macabro:

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LaChapelle teve a idéia para esta série depois que soube do violento ato de vandalismo que destruiu toda a coleção de estátuas do Museu Nacional de Cera de Dublin. Para quem atuou decisivamente na depuração icônica das maiores estrelas do show bizz, recebendo fortunas para criar e dirigir ensaios de moda, comerciais e videoclipes de nomes como Madonna, Leonardo DiCaprio, Whitney Houston, Pamela Anderson, Naomi Campbell, Drew Barrymore, Alicia Keys, Britney Spears ou Courtney Love, parte de uma lista infindável de mega celebridades, a coleção “Natureza Morta” soa, no mínimo, como uma travessura cruel.

O mundo distópico de David LaChapelle compõe um mosaico ao mesmo tempo assustador e engraçado:

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Simulacro, miragem, alucinação e caos são os ingredientes principais de um mundo que – para David Chapelle – não tem mais substância. Talvez isso explique a sua fuga repentina para uma ilha isolada no Havaí onde, desde 2006, desenvolve projetos ligados à idéia de “sustentabilidade” da vida no planeta. Mas, mesmo assim, suas obras mais recentes – como estas em exibição agora em Roma – continuam a nos passar uma sensação – tão difusa quanto desagradavelmente incômoda – de que estamos vivendo uma época estranhíssima, sufocada pelo vácuo, pelo narcisismo, pela decadência e pela iminência de uma grande catástrofe. Mas também é verdade que David La Chapelle consegue obter todo esse efeito com muita ironia, bom-humor, erotismo, cores e vitalidade. Assim, talvez como os antigos romanos, a gente só perceba alegremente a chegada do dilúvio quando um mar de bárbaros estiver à nossa porta.

Serviço:

Exposição: “David LaChapelle – Dopo il Diluvio / After the Deluge”

Curadoria de Gianni Mercurio

Palazzo delle Esposizioni

Via Nazionale, 194, Roma

Até 13 de setembro.