*Por Brunna Condini
Somos muitos. Plurais, de todas as formas, cores e desejos. Mas por que será que ainda hoje é tão difícil para alguns aceitarem outros como eles são? Pensando em dar visibilidade à esta vida plena que existe, além da opressão e preconceitos, o escritor, pesquisador e jornalista Valmir Moratelli, lança seu novo livro, ‘Armários Abertos – depoimentos sobre a diversidade sexual’, no qual reúne depoimentos de diferentes pessoas que narram suas experiências mais íntimas sobre a descoberta da própria sexualidade e como se definem dentro das amplas camadas da diversidade sexual humana.
“São histórias que nem sempre cabem na sopa de letras da sigla LGBTQIAPN+. Essa é só mais uma sigla que tenta dar conta da multiplicidade do que somos enquanto seres humanos. A diversidade sexual contempla diversas formas de relação e identificação. É muito ampla, não cabe em uma só denominação. Por isso o sinal “+” foi adicionado à sigla que abrange Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/ Arromânticas/ Agênero, Pan/Poli, Não-binárias. Devemos pensar o ser humano além da heteronormatividade, dando espaço a toda forma de existência”, esclarece o escritor sobre a obra, que conta com prefácio do médico psiquiatra Jairo Bouer.
Moratellli começou a produzir o livro meses antes da pandemia do novo coronavírus, e decidiu não esperar mais para lançá-lo. “É uma experiência diferente. É o meu quarto livro, mas o primeiro sem a oportunidade de abraçar e brindar um lançamento na companhia dos amigos. O último foi lançado na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em 2019 e na Bienal do Livro, com debate, jantares, encontros deliciosos. Foi intenso! Dessa vez, farei uma live no instagram nesta quinta-feira (8), às 19h, na presença virtual dos que deram depoimento para “Armários abertos”. O livro está sendo muito bem aceito”.
Documentar para tornar visível
O escritor conta que a ideia inicial era lançar um documentário, tanto que reuniu em um estúdio em Copacabana, no Rio de Janeiro, pessoas dispostas a darem depoimentos sobre sexualidade e aceitação. “Queria fazer um filme com relatos que atravessam a pressão social, o apoio ou negação da família, a culpa religiosa, os olhares no âmbito escolar ou profissional, a objetificação do corpo e a busca por uma satisfação interna. Com os cinemas fechados, o filme deu lugar a um livro. Foi uma forma de dar prosseguimento ao projeto, que pretende combater todo tipo de preconceito. Uma empresa de streaming já sinalizou interesse em desenvolver uma parceria. Ou seja, esse é só o começo de ‘Armários abertos’!”, revela, com exclusividade.
A expressão ‘sair do armário’, é uma importação do movimento gay americano. E, segundo historiadores, sua origem é bem heteronormativa, já que nos Estados Unidos do início do século 20, quem ‘saía do armário’ era a debutante, em sua festa de 15 anos. Quando a família organizava esse tipo de celebração, significava que ela estava sendo apresentada oficialmente à sociedade. Em inglês, esse ato leva o nome de ‘come out’, algo como ‘surgir e emergir’. Os gays adotaram o termo, já que, ‘sair do armário’ significava então, serem apresentados à uma sociedade praticamente secreta para eles.
Assim como os personagens do livro de Valmir Moratelli em ‘Armários Abertos‘: Julia Martins que narra como é lidar com a profissão e a família após a mudança de sexo. Já Miranda Lebrão explica por que é redundante pedir a uma drag que seja resistência no mundo atual. Ou ainda, como Roberto e Rodrigo Ramos, que falam da importância da aceitação dos pais na construção da sua autoestima, e narram a divertida noite na qual se conheceram.
Como teve a ideia para o livro e como selecionou os depoimentos? “Assim que terminei de filmar ‘30 Dias – um carnaval entre a alegria e a desilusão’, em março de 2019, pensei em um projeto que abordasse a questão da sexualidade, tema tabu no país e que pesquisei no mestrado. É incrível, mas o Brasil conhecido pela sensualidade de suas músicas, pelo carnaval, funk e etc, não gosta de debater sobre sexo abertamente. Levei a ideia a um amigo produtor, e começamos a filmar depoimentos de diversas pessoas que se classificam com cada letra da sigla LGBTQIAPN+”, recorda.
O que mais o tocou no processo? “Cada história tem sua peculiaridade. É interessante perceber como uma aparentemente simples pergunta – “Como você saiu do armário pela primeira vez?” – mexe tanto com as pessoas. Essa pergunta foi feita para todos. Tinha quem soltasse uma gargalhada, quem chorasse e quem ficasse em silêncio por um tempo antes de respirar fundo e contar sua história. Uma das histórias mais marcantes é a do Jeff, um cigano desenhista da Feira de São Cristóvão, que revelou ter sido abusado na infância pelo padrasto. A família não acreditou nele, o que lhe causou transtornos sérios. Foi muito forte ouvir isso. Toda a equipe se emocionou no estúdio. A aceitação precisa começar em casa, onde a gente aprende o que é amor. É a lição que se tira dos depoimentos”.
Esperança ativa
Após alguns avanços nas últimas décadas, a pauta da diversidade vem sofrendo retrocessos preocupantes no país. Sobre o tema, Moratelli salienta a importância do diálogo como ponte para o respeito e a aceitação. “O que vemos no país é o discurso de ódio ao diferente promovido por esferas públicas que deveriam zelar por todo cidadão. Frases como “se tomar guaraná Jesus vira boiola”, “menino veste azul, menina veste rosa”, “não existe homofobia no Brasil”, entre tantas outras barbaridades, só reforçam que somos governados por um grupo homofóbico e transfóbico. Enquanto isso não mudar, o cenário tende a ser desolador. Mas tenho esperança de que as estruturas estão sendo mexidas. A escritora Rosiska Darcy de Oliveira tem uma frase linda: “A esperança ativa arquiteta destinos”. É isso!”.
No seu ponto de vista, como podemos avançar no combate à homofobia e transfobia no país? “Com políticas públicas que garantam o acesso de pessoas trans à rede de saúde; o combate a toda forma de violência contra gays, lésbicas e trans; educação séria que promova o fim do constrangimento diário nas escolas e empresas. A sociedade precisa encarar a normalização da vida ampla e diversa, indo muito além da heteronormatividade. A conscientização através de campanhas promovidas por órgãos públicos deveria ser um bom começo, mas as empresas privadas também devem fazer sua parte, pensar na diversidade de suas equipes e promover diálogos de aceitação”. E acrescenta: “Gênero e sexualidade humana são assuntos que devemos encarar com normalidade. Não é possível que se aponte o dedo, a palavra, a arma para alguém simplesmente porque se julga a forma que ela se vê e se relaciona com o outro, a outra ou os outros. O livro é um convite ao diálogo, um exercício para se ouvir pessoas que não são do seu círculo de amizades. Um dos depoimentos, de uma trans, me tocou nisso. Ela perguntou: “Quantas trans você tem em sua rede de amigos?”. É importante pensarmos se não estamos reproduzindo modelos de exclusão, mesmo sem querer”.
Por que acredita que a sexualidade alheia ainda incomoda tanto e é motivo de atenção? “Somos enraizados culturalmente em uma tradição de heteronormatividade, baseada em dogmas cristãos. Tudo que foge a este modelo é visto como anormal, não é bem aceito. O brasileiro, tido como um povo hipersexual e receptivo, esconde fortíssimo viés conservador machista e racista, que só vem à tona quando é confrontando pela presença do outro. Quebrar esse pensamento de uma hora para outra é difícil, mas é um dever da mídia, da sociedade como um todo, das esferas públicas, da justiça, de todos. É preciso um pacto geral de combate à homofobia e transfobia, garantir o direito da liberdade individual de se tomar posse do próprio corpo”.
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