Nossa colunista Fabiane Pereira bate um papo empoderado e literário com Mel Duarte: “negra, nua, crua e sensação da FLIP”


Sensação da FLIP, Mel teve seu vídeo de participação no sarau de abertura da feira de Paraty viralizado e foi compartilhado milhares de vezes por diversas mulheres que, assim como ela, estão na luta pelo seus direitos. Com dois livros de poesia lançados, “Fragmentos Dispersos”, de 2013, e “Negra Nua Crua”, em 2016, ela fala de aborto, de ser uma mulher negra em um Brasil machista e racista, sonhos, infância e muito, muito mais

*Por Fabiane Pereira

Mel Duarte é papo reto: “Meu nome é doce mas não se iluda / Em tempos de guerra é preciso convocar seu Buda”. Estes são os primeiros versos do poema “Sobre Empoderar” que faz parte de seu segundo livro lançado recentemente, “Negra Nua Crua”. Uma das atrações mais provocadoras do sarau que marcou a abertura da festa literária de Paraty, cujo vídeo viralizado foi compartilhado milhares de vezes por diversas minas que, assim como ela, estão na luta pelo direito das mulheres, Mel é paulista e teve seu primeiro encontro com a poesia aos seis anos.

Hoje, aos 27, Mel descobriu nas palavras um refúgio e desde então as mantêm como fortaleza. Integrante do coletivo “Poetas Ambulantes“, não há tema tabu para a ativista e poeta que usa, com propriedade, a literatura para falar sobre feminismo (“Mulher bonita é a que vai à luta”), racismo (“Porque cabelo de negro não é só resistente, é resistência”), sexo (“De tantas que demos nunca cheguei ao gozo”), machismo (“Mas aos 15 abriu as pernas pra colocar no mundo uma criança sem pai”), perseverança (“Não desiste, negra, não desiste”), desigualdade social (“Trocou os estudos por 2 empregos”), política (“Enquanto eles compram jatinho com a verba da merenda”), alienação (“E não adianta dizer que é só no Brasil l Em todos os lugares do mundo”), empoderamento (“Antes sol do que mal iluminada”) e tantas outras pautas urgentes neste país há, pelo menos, alguns séculos.

Em “Negra Nua Crua”, os anseios e as reivindicações de Mel vem à tona e ela usa a poesia como amplificador de voz contra os desafios cotidianos de ser mulher e negra nos dias atuais. O livro é dividido em três partes. Em “Negra”, seu posicionamento como mulher negra dentro desta sociedade. Já em “Nua”, Mel sensualiza seus versos e fala sobre erotismo e amor. Por fim, “Crua” trata-se sobre seus questionamentos (espirituais, políticos…).

Pra quem quiser ver Mel Duarte ao vivo, no próximo sábado, 23, ela é uma das convidadas da palestra sobre “Mulheres que Inspiram” no TEDx SãoPaulo. Os pouquíssimos ingressos que foram disponibilizados já estão esgotados mas todas as palestras serão transmitidas ao vivo na fanpage do evento.

CAPA Divulgac¸a~o

FP: Onde você nasceu e quando você encontrou a poesia (pessoal e profissionalmente)? 
MD: Sou natural de São Paulo, capital. Sempre gostei das palavras, da sonoridade delas. Cresci com meus pais ouvindo rádio, a música sempre foi muito presente e importante na minha formação. Conheci a poesia na escola aos seis anos de idade quando ganhei um caderno de exercícios com fotos, poemas e prosas. Ao ler aqueles versos, ver as rimas eu me apaixonei. Sempre tive muitos cadernos de desenho, mas ao invés de desenhar eu escrevia, não podia ver um papel em branco que queria escrever e aos oito anos entendi que aquilo que eu gostava de escrever era poesia e desde então eu não parei, foram cadernos e mais cadernos rs

Fui ter meu primeiro contato com os saraus as 18 anos. Até então escrevia para mim, mostrava para poucas pessoas. Quando descobri que existia essa movimentação principalmente na periferia com uma galera expondo o que escrevia, aquilo foi um portal pra mim, entrei num mundo onde me reconhecia naquelas pessoas. A partir daí eu fui explorando todos os lugares da cidade onde sabia que havia poesia, virei habituê de muitos e aos poucos meu trabalho foi ficando conhecido, esse ano completo 10 anos de caminhada na literatura independente e todo esse corre tem gerado bons resultados.

FP: Os versos do livro “Negra Nua Crua” são inquietantes e provocadores. Quais são as angústias que inquietam sua alma e o que lhe provoca ao ponto de inspirar sua obra?
MD: Eu observo muito tudo que me rodeia, percebo pequenices que às vezes vejo passar despercebido pela maioria das pessoas, somos bombardeadas de informação o tempo todo, ainda mais vivendo em uma cidade como São Paulo e é preciso ser sensível para viver aqui, senão ela te engole e você esquece que pode encontrar beleza nas coisas simples. E quanto às angustias que me inquietam são inúmeras: desigualdade, racismo, homofobia, lesbofobia, corrupção, machismo,intolerância religiosa, todos os tipos de violência  e tantas outras questões que permeiam a nossa sociedade que infelizmente são muitas.

FP: Seus versos falam sob a ótica da mulher negra. No poema que abre seu livro, você afirma que “a sua fé a todo tempo é testada”. Como a poesia te ajuda a manter a fé/crença/perspectiva no futuro?
MD: Eu sou uma pessoa espiritualista, acredito muito na troca de energia entre as pessoas, acredito no poder de mudança que nós temos, acredito na minha geração. A poesia é a forma que encontrei para acalmar os meus demônios, é minha válvula de escape. No poema “Reforma íntima” eu falo exatamente sobre essas questões, com todos os estudos que tenho feito por querer trabalhar minha espiritualidade pensei que escrever sobre ela também me ajudaria, tenho muita dificuldade ainda em querer “poetizar” algumas questões muito internas minhas, mas esses desafios me fazem parar e olhar pra dentro e todo esse movimento tem me ajudado muito a entender qual a minha real contribuição para com a sociedade em que vivo.

FP: Em “Menina Melanina”, um dos poemas que você declamou na FLIP e cujo vídeo foi compartilhado milhares de vezes, você diz que “mulher bonita é a que vai à luta”. Como você analisa o fato de muitas mulheres criticarem o movimento feminista?
MD: Eu fico triste, muito triste em ver que muitas ainda não compreenderam o real sentido do feminismo. Acontece que, como para a maioria das coisas no mundo, existe o lado mais radical e o que é mais flexível. Eu tenho total compreensão que, para cada mulher, assimilar o feminismo leva um tempo diferente. Foi assim pra mim, mas é preciso ter a mente aberta e estar disposta a conversar também para desconstruir ideias erradas a respeito desse movimento. Me dói muito ver uma mulher dizendo que não precisa do feminismo, uma vez que ele vem para nos fortalecer, nos unir. Acredito que também é preciso analisar a conjuntura dessas pessoas, quem vive um mundo de privilégios pode não compreender a real necessidade do feminismo. O machismo está tão enraizado em sua criação, que ela realmente não percebe os mais simples sinais e, claro, falta estudar sobre a trajetória feminina desde que o mundo é mundo. Pra mim não é preciso ser muito inteligente para entender que lutar por igualdade é um princípio básico de sobrevivência, mas como eu disse antes, cada uma tem um tempo…

FP: Quais são, na sua opinião, as maiores limitações impostas pela sociedade brasileira a uma mulher (seja ela negra ou não)? E de que maneira você acha que podemos mudar esta conjuntura?
MD: A mulher é uma eterna lutadora por seus direitos. Temos que ficar nos posicionando o tempo todo e isso cansa muito. Somos silenciadas constantemente e isso acontece durante tantos anos que acaba rebatendo em muitas áreas que envolvem a nossa vida social. Somos atormentadas com a questão dos padrões de beleza, maternidade, estudo, trabalho, tudo que envolva uma mulher sempre é questionado mais vezes e quando o recorte fica ainda mais específico, falando da mulher negra, é assustador! Acredito que a mudança desse cenário parte do nosso posicionamento, dos espaços de fala que precisamos tomar de assalto mesmo,  das manifestações que encabeçamos e dos cargos que vamos ocupando aos poucos. Precisamos de mulheres em lideranças dispostas a fazerem a “casa cair” para serem reconstruídas com igualdade.

FP: Em “Exposta”, um dos seus versos diz “de tantas que demos nunca cheguei ao gozo”. Outro, do mesmo poema afirma que “antes sol do que mal iluminada”. A solidão da mulher, negra ou não, é “exposta” com uma precisão ímpar neste poema. Principalmente por causa do machismo que está entranhado em nossa sociedade, muitas minas se submetem a relacionamentos abusivos durante anos, algumas por toda a vida. Além de usar a sua poesia, como você tenta combater o machismo diário e empoderar outras minas?
MD: A questão é que existem muitos assuntos dos quais nós não somos acostumadas a tratar. As mulheres não crescem em rodas de conversas de outras mulheres que trocam impressões sobre suas experiências sexuais, traumas, desejos e afins assim como os homens. Muitos assuntos são tabus para as mulheres e a falta de acesso até eles causa uma lacuna. Percebi que, principalmente para as meninas mais jovens, quando me veem falando sobre violência sexual, feminismo, racismo, autoestima, entre outras questões, mas com a poesia, é como se uma chave virasse dentro delas e de repente aquilo fica acessível, as faz refletir e a partir daí gerar o interesse em saber mais. Vejo a poesia como grande aliada provocadora para o movimento da mudança social, ela tem o poder de tirar as pessoas da zona de conforto para a zona de confronto. Eu estou sempre envolvida em rodas de conversas, encontros femininos, debates em escolas, visitas a presídios para conversar com as mulheres desses espaços, acredito que a troca é muito importante para amadurecer e reconhecer o machismo enraizado em nossa sociedade.

FP: Com tantas denúncias vindo à tona de violência contra a mulher, com tantas críticas ao movimento feminista, com um governo interino formado exclusivamente por homens que não representam a maioria da sociedade brasileira, como ter forças para “não desistir”?
MD: Precisamos nos unir cada vez mais, justamente por conta do racismo e do machismo que fazem parte da nossa sociedade. Lutar sozinha é menos eficaz, só causa mais cansaço. Tenho tirado forças das experiências que tenho vivenciado, das trocas com as mulheres do meu cotidiano. Organizo uma batalha de poesia com pessoas muito especiais voltada só para o gênero feminino e o que acontece ali é mágico, eu vibro pelas mulheres que vejo sendo reconhecidas por seus trabalhos, eu recebo mensagens lindas de meninas, mães, avós de todos os lugares do mundo que se sentiram tocadas com alguma palavra minha e isso me dá forças pra não desistir. A troca com as pessoas ainda é a melhor forma de lembrar que você não pode desistir, porque em algum lugar alguém está se inspirando em você.

Mel Duarte 1 (Cred. Marcello Vitorino)

(Foto: Marcello Vitorino)

FP: Quando e como você se reconheceu como uma mulher empoderada? Quais foram suas principais influências?
MD: Essa palavra é muito nova, mas o movimento já vem crescendo gradativamente. Minha família é formada por mulheres, cresci as observando, minha mãe sempre foi meu exemplo de superação, minha maior influência e ela me criou para ser uma mulher independente, eu cresci fazendo tudo na prática na minha casa. Meus pais sempre trabalharam fora e aos seis anos de idade eu já tinha muitas responsabilidades, passava o dia sozinha. Hoje analisando minha infância e conversando com meus pais sei que fui uma criança um pouco à frente do meu tempo, meu ritmo sempre foi diferente e conforme fui crescendo e amadurecendo fui me posicionando e sempre acreditando na minha capacidade. Passei por diversas situações nas quais me senti humilhada, mas nunca deixei de acreditar no meu potencial, eu precisava acreditar, senão em que iria me segurar? A coisa de “querer fazer a diferença” sempre foi um botão piscando na minha cabeça, eu só precisava entender como.

FP: Em “Ampulheta” há o verso: “aos 15 abriu as pernas pra colocar no mundo uma criança sem pai, sem moradia”. Já no poema “(Du)Arte”, você relata como seu pai foi marcante em sua caminhada. Em um momento em que discutimos na Câmara e nas ruas a legalização do aborto, vemos um aumento significativo das reações conservadoras. No Brasil, é sabido que homens abortam todos os dias quando abandonam suas parceiras grávidas. É sabido também que por aqui, o aborto mata muito mais mulheres negras e pobres. Como você vê esta questão?
MD: Eu sei o quanto sou privilegiada por ter uma família que sempre me deu um suporte, em especial um pai que sempre esteve presente mesmo e principalmente após se separar da minha mãe quando tinha nove anos de idade. O problema do aborto, no cenário desigual da sociedade em que vivemos é a questão da ilegalidade. As mulheres negras sofrem diversas violências praticadas pelo estado e é de responsabilidade do mesmo garantir que todas as mulheres tenham o direito de exercer livremente a sua sexualidade, e de serem assistidas nesse livre exercício. Logo, quando o Estado brasileiro mantém o aborto na ilegalidade está fugindo de suas funções, cometendo assim uma violência que é sexista e ainda assume um caráter genocida quando se trata daquela que é mais atingida e mais vulnerável nesses casos como a mulher negra. É preciso uma força social para manter esse assunto em pauta e debatê-lo de forma aberta, precisamos falar sobre o aborto.

FP: “Negra Nua Crua” é seu segundo livro apesar da poesia fazer parte da sua vida desde criança. Declamar poemas cujos versos, em maioria, estão em carne viva e explanam uma situação que muitos tentam esconder ou acreditam não existir na maior feira literária do país, uma festa elitista – e isso não é uma crítica mas uma constatação – foi diferente de declamá-los nos saraus que você participa nas periferias?
MD: “Negra Nua Crua” é o meu segundo livro, lançado em março desse ano. Meu primeiro livro foi o “Fragmentos Dispersos” de 2013. E realmente lançar um livro no Brasil de forma independente não é um movimento fácil, ainda mais pensando num público que está na periferia e não tem acesso nenhum as questões editoriais, pra gente era tudo muito distante, de uns tempos pra cá é que estamos criando nossas próprias editoras e entendendo como atuar nessa área.

Quanto ao sarau da FLIP eu não tive tempo pra ficar pensando muito não, preciso sentir a energia de um espaço pra escolher o que quero falar, e ali simplesmente falei sobre coisas que falo há um bom tempo nos saraus. Eu fiquei muito surpresa com a repercussão, não imaginei que dariam atenção pra mim, fui com um pensamento muito humilde e até inocente das pessoas que poderia atingir ali, mesmo sabendo do tamanho desse evento e frequentando ele há três anos vendendo meus livros de mão em mão. Fiquei muito nervosa com a quantidade de pessoas presentes, com o Chacal na primeira fila (rs), eu só me concentrava para não errar. Assisto ao vídeo e sei que posso fazer melhor, mas fiquei muito feliz com o retorno das pessoas ali mesmo quando acabou e de tudo que veio depois. Acredito que serviu para acordar uma elite que não tem dimensão do que acontece na borda. Fui entender a importância da minha presença quando minhas caixas de mensagens deram um pane de tantos recados por pessoas que se sentiram representadas.

FP: Que conselho você daria às minas que querem, como você, viver de poesia?
MD: Eu ainda não vivo de poesia, quem dera! Tenho um trabalho fixo voltado para a inserção de jovens na área da cultura e no meio disso atuo com dois coletivos e corro com meus projetos pessoais. Ter foco é algo crucial, quem me conheceu desde menina sempre percebeu que eu nunca abri mão da poesia, hoje ela toma grande parte do meu tempo, mas é um processo. É preciso estudar muito, ler muito, participar de várias movimentações é um envolvimento que não acaba nunca, e sei o quanto ainda tenho que evoluir e quanto mais faço mais quero aprender. Se você acredita no seu talento corra atrás do que vai te fazer bem, se não fizer por você ninguém vai fazer.

*Fabiane Pereira é jornalista, pós graduada em “Formação do Escritor”, sócia da Valentina Comunicação — empresa voltada para criação, divulgação e produção de projetos musicais e literários — apresentadora, roteirista, produtora e programadora musical do programa de rádio Faro MPB, da Rádio MPB FM.