Neta do polêmico Nelson Rodrigues, Júlia lança livro infantil sobre separação e amor entre pessoas do mesmo sexo


O livro infantil ‘As Duas Casas de Isa’, no qual a autora quis dar visibilidade às novas famílias que tem se formado será lançado dia 23, data em que o polêmico escritor Nelson Rodrigues (1912-1980) completaria 109 anos se estivesse vivo. Após sua morte, houve disputa em família. “Houve sim um período de muito conflito, inclusive, judicial, mas hoje a família realmente se comunica e conversa em prol da obra dele. Todos os herdeiros são empenhados em proteger e disseminá-la”, diz Julia. No seu livro, passado um tempo da separação dos pais, a personagem título conhece os novos amores deles. No caso da mãe, uma outra mulher. “Sinto que é uma responsabilidade social falar sobre o tema. Quero que diferentes famílias se sintam representadas, possam conversar com seus filhos e abrir o diálogo sobre essas famílias que não são de héteros, mas são amorosas, cuidadosas e seguras”, enfatiza

* Por Carlos Lima Costa

No próximo dia 23, data em que o escritor Nelson Rodrigues (1912-1980) completaria 109 anos se estivesse vivo, uma herdeira de seu DNA literário, a neta Júlia Rodrigues vai lançar o primeiro livro, As Duas Casas da Isa. Na história, após vivenciar a separação dos pais, um dia a personagem título fica sabendo das novas relações de seus genitores. No caso da mãe, um envolvimento com uma mulher. A obra infantil toca em tema que ainda provoca ruído na parte mais conservadora da sociedade. O avô da autora, vale lembrar, marcou com romances polêmicos para a época dele.

Nelson Rodrigues (Foto: Divulgação)

“Quem me dera ter algo do Nelson na minha escrita. Se as pessoas lerem o livro e acharem que eu trouxe, nem que seja a polêmica, vou ficar muito feliz de ser colocada na mesma categoria dele como storyteller, como criador, mas não foi minha intenção. Eu só achei que era justo já que a gente tem tantos livros e brinquedos que retratam famílias de héteros, por que não ter um que retrate diferentes configurações de famílias. Não foi a minha intenção ser polêmica. Quero que diferentes famílias se sintam representadas, possam conversar com seus filhos e abrir o diálogo sobre essa quantidade de famílias que existem, que não são só heteros, mas são amorosas, cuidadosas e seguras. Que as crianças possam ler o livro e abrir o diálogo com seus pais, padrastos e madrastas sobre isso”, afirma.

"Que diferentes famílias se sintam representadas, possam conversar com seus filhos e abrir o diálogo sobre essas famílias que existem, que não são só heteros, mas são amorosas, cuidadosas e seguras", frisa Júlia

“Que diferentes famílias se sintam representadas, possam conversar com seus filhos e abrir o diálogo sobre essas famílias que existem, que não são só heteros, mas são amorosas, cuidadosas e seguras”, frisa Júlia

E fala sobre a possibilidade de receber críticas da ala mais tradicional. “A gente precisa refletir como sociedade. Eu tenho um papel social de abrir um diálogo a respeito dessas famílias que já existem hoje. Todo mundo deve ter direito de ter representatividade. Refletindo agora, tenho medo sim, sabe, é grande a quantidade de ódio e julgamentos que as pessoas deixam nas redes sociais. Mas espero que as pessoas abram um pouco o coração. Todo mundo está em busca de autoconhecimento e deseja que a próxima geração seja melhor, então, temos que pelo menos dialogar a respeito de diferentes formatos de famílias. Vou ficar triste se alguém se sentir ofendido e achar que essa não é uma mensagem para passar às crianças. Vou ficar triste, porque essa pessoa não está pronta para abrir o coração dela para a realidade”, enfatiza.

A vontade de escrever surgiu algum tempo após Júlia viver uma necessidade pessoal, quando há dez anos, ela passou por um processo de divórcio, tendo dois filhos, Henrique e Isabela, atualmente com 16 e 13 anos. “Queria fazer um livro que pudesse falar para as crianças e dar um porto seguro para os sentimentos que elas tem ao redor do divórcio. Quando me divorciei, não tinha um livro infantil que explicasse o divórcio, que me ajudasse a conversar sobre isso. Um livro infantil é uma porta de diálogo. As crianças ficam curiosas sobre o tema e depois querem saber o que aquela história queria dizer”, aponta ela.

A ideia de escrever sobre o tema não veio de imediato, surgiu mais recentemente enquanto desenvolvia o podcast Maternizando, que tem nas plataformas de streaming, em parceria com Letícia Tomazella, atriz da novela Gênesis. “Falamos sobre maternidade do ponto de vista de uma mãe e de uma madrasta em pé de igualdade. A gente tenta aproximar a ideia de que mães e madrastas não precisam ser oponentes e a partir do nosso trabalho, comecei a refletir sobre como isso afetava as crianças, porque isso afetou as minhas. Foi daí que surgiu a vontade de escrever esse livro, e não só da minha experiência. Uma separação é sempre difícil, porque a gente tem um constructo social de que o divórcio é uma derrota. Meio sem perceber, a gente passa isso, às vezes, para os filhos, e a gente precisa ressignificar isso. O divórcio também pode ser um recomeço, uma redescoberta de si mesmo, dos nossos valores, qualidades e você pode se tornar um pai ou mãe muito melhor depois, porque você não estava sendo acolhido em um relacionamento, não por culpa de ninguém, mas porque, às vezes, não tinha mais espaço afetivo para que isso fosse feito. E aí depois do divórcio, que é difícil, um luto, você se redescobre cheia de qualidades e valores”, aponta ela, que há quatro anos se casou novamente e, aos 37 anos, não descarta ter mais filhos.

“Poucas pessoas no mundo conseguiram reproduzir nas suas obras a complexidade do ser humano como o meu avô Nelson conseguiu”, ressalta Júlia

Júlia faz um resumo de seu livro. “Ele conta a jornada da Isa, sobre como foi o ano em que os pais dela se divorciaram, os altos e baixos, as brigas, ameaças, falar com advogado e como tudo isso a fazia se sentir sozinha e culpada por tudo que estava acontecendo. Na terapia, aprende a fazer perguntas para os pais e a pedir respostas honestas e não vagas. Um dia o pai vai na terapia para contar que está namorando e quer apresentar a nova mulher para a filha e aí tem o crescimento do relacionamento dessa madrasta com a Isa. Depois a mãe faz o mesmo. Isa pergunta se a pessoa por quem ela está apaixonada a faz feliz, a mãe diz que sim, mas a mãe está com medo de falar quem é. Aí Isa pergunta qual é o nome dele e ela fala, é o nome dela. Isa responde: ‘Está bom, se essa pessoa te faz feliz e você a ama, então, quero conhecer’. É como uma criança reage”, relata Júlia, que antes dessa experiência realizou a pesquisa de um livro que a mãe, Sonia Rodrigues lançou sobre seu avô, Nelson Por Ele Mesmo.

Júlia ainda não havia nascido quando o avô morreu há quase 41 anos, em dezembro de 1980. “A primeira memória que tenho dele eu tinha seis anos. Vi minha mãe falando que tinha saído uma foto do pai dela no jornal. Na escola, contei à minha professora. E quando disse quem era meu avô ela ficou numa felicidade, disse que ele havia mudado sua forma de olhar a própria família. Aí quis saber mais sobre quem tinha sido meu avô. Mais tarde, descobri que foi um homem complexo, que não dava para colocar em uma caixinha e dizer Nelson Rodrigues era tal coisa. Ele era uma complexidade de significados. Quando assisti o filme Engraçadinha, fiquei profundamente impactada. O mundo era simples pra mim, eu era uma pré adolescente e ele falava de temas densos que eu nunca tinha parado para pensar e eu lembro de perguntar para a minha mãe como isso aconteceu. Ela tem uma admiração profunda e um carinho grande mesmo que ele não tenha sido um pai padrão. Ela tinha um exercício de contar histórias dele pra gente, então, nessas conversas em família, fui descobrindo mais sobre ele”, recorda.

E explica que visão criou do avô através das memórias de sua mãe. “Ela sempre falou dele de um lugar de admiração, mesmo quando cometeu erros. Todos os pais e mães cometem erros. Ela tinha um senso como tem até hoje muito grande de lealdade ao legado dele. Uma imagem que tive dele foi muito influenciada por isso. Mas depois você cresce, lê coisas e ele teve vários casamentos, tem histórias dele de todo tipo. Me magoava um pouco na minha visão de adolescente que ele não tenha sido o pai que o meu pai foi pra mim, que era a comparação que eu podia fazer. Mas hoje entendo que tem aspectos culturais da época que devem ser levados em consideração e é um processo bacana você fazer as pazes com a sua própria origem. Hoje, ficou muita admiração e carinho por ele ter se esforçado para falar o que ele acreditava, independente de alguém ficar com raiva ou julgá-lo. Para o meu avô, contar histórias era a parte mais importante e com isso ele mudou a forma como o Brasil fazia isso. Poucas pessoas no mundo conseguiram reproduzir nas suas obras a complexidade do ser humano como o Nelson conseguiu”, ressalta.

"O divórcio também pode ser um recomeço, uma redescoberta de si mesma, dos nossos valores, qualidades e você pode se tornar um pai ou mãe muito melhor depois", afirma Júlia

“O divórcio também pode ser um recomeço, uma redescoberta de si mesma, dos nossos valores, qualidades e você pode se tornar um pai ou mãe muito melhor depois”, afirma Júlia

Após sua morte, houve disputa em família. “Houve sim um período de muito conflito, inclusive, judicial, mas hoje a família realmente se comunica e conversa em prol da obra dele. Todos os herdeiros são empenhados em proteger e disseminá-la. Tenho orgulho da participação que a minha mãe teve nisso não só como inventariante judicial, mas como uma mulher que queria que o pai tivesse paz na eternidade, sabendo que os herdeiros não estão mais disputando. O esforço de todos para que isso acontecesse deve ser notado”, observa.

Júlia conta que segundo sua mãe, uma das qualidades do avô era ser um bom ouvinte “Ele sabia ouvir as histórias das pessoas e de alguma forma elas ganhavam vida em suas obras. Eu sou uma boa ouvinte de histórias. Meus textos tem muito do que eu sei que aconteceu, tipo a vida como ela é, porque escuto as pessoas. Tenho isso parecido com Nelson. Tem pessoas que são contadoras de histórias. Antes de ser uma contadora, eu sou uma escutadora de histórias”, analisa ela, que tem vontade de lançar outros livros. “Não só infantis. Tenho desejo de escrever sobre a minha experiência como mulher nesse mundo e tentar ajudar outras que possam estar passando por violência psicológica, mas esse é um texto que vai me trazer um envolvimento emocional grande. Já tenho algumas partes escritas, mas me falta um pouco de coragem. Quem sabe um dia. Mas a história da Isa eu quero que seja uma trilogia, que as pessoas acompanhem a Isa crescendo e que as crianças possam se ver nela”, diz.

As Duas Casas da Isa é o primeiro livro de Júlia Rodrigues, neta do dramaturgo Nelson Rodrigues

As Duas Casas da Isa é o primeiro livro de Júlia Rodrigues, neta do dramaturgo Nelson Rodrigues

E opina sobre como mães e pais deveriam agir em relação aos filhos quando um casamento é desfeito. “As pessoas precisam separar o eu matrimonial do eu parental. Você pode escolher não ter mais uma relação com certa pessoa, mas se você tem um filho, o eu parental vai ser um laço para o resto das suas vidas, que filho não para de precisar de pai e mãe. Então, tratem as próprias dores na terapia para não sangrar nas crianças”, afirma ela, que é uma das roteiristas da série Meu Destino É Pecar, escrita por Mara Carvalho, baseada em romance homônimo de Nelson, que vem sendo desenvolvida. “Durante um tempo, tive um pouco de medo da intensidade dele de trabalhar, porque é um peso grande você trabalhar em uma obra do Nelson. Levei um tempo para me sentir merecedora de estar em um projeto dele”, assegura e lembra um pouco a trajetória.

“Durante anos eu queria ser mãe, esposa, era a extensão dos meus sonhos e ambições. E aí fui trabalhar com a minha mãe Sonia, ajudando como assistente de parecer, ela faz análise de textos, filmes, séries e livros para produtoras e distribuidoras. Fui aprendendo com ela a gostar de contar histórias e que isso poderia ser um caminho, mas sempre foi muito tímido no sentido de me ver como escritora. Eu sempre gostei de criar histórias, fui uma criança falante que gostava de brincar de teatro”, recorda ela, que teve a primeira oportunidade profissional como gerente de conteúdo da Miração Filmes, do Sérgio Roizenblit. “Foi uma jornada de aprendizado bacana que me permitiu virar produtora de conteúdo, que é o que eu faço hoje. Eu que desenvolvo os roteiros do podcast Maternizando. Estamos em uma era de banalização de conteúdo, então, produzir conteúdo relevante e que ajude as pessoas é um privilégio”, finaliza.