*Por Fabiane Pereira
Quando ficou entre os vencedores do primeiro concurso Contos do Rio, em 2003, a jornalista Martha Mendonça decidiu voltar a escrever ficção, uma rotina abandonada por causa da profissão. Nascia assim uma escritora ágil, com domínio da linguagem e versátil. Tanto que as histórias e personagens de Martha foram parar não só em livros, como nas telas, no palco e até no bem sucedido site de humor “Sensacionalista”, do qual é uma das fundadoras e redatora.
Seu fascínio pelo universo feminino existe desde sempre, mas sua escrita começou a partir de um blog. “Tive um blog chamado ‘Elas por Elas’ entre 2002 e 2004 e foi ali que comecei a dialogar virtualmente com muita gente sobre as vozes femininas e os desejos das mulheres”, relembra Martha.
A escritora acaba de lançar seu quarto livro, “Filhas de Eva” (Editora Record), e retoma o momento daquela primeira virada, há 13 anos: a coletânea inclui “Namorada”, o conto premiado em 2003, além de outras 17 narrativas sobre mulheres “adjetivas”. Cada personagem desta coletânea de contos que forma o livro se revela ao leitor já a partir dos títulos como “Obcecada”, “Indecisa”, “Romântica”, “Desperta” ou “Morta”.
Em “Eva”, conto que abre o livro, Martha, de cara, já explicita uma questão comum a todas as mulheres: “…aprendi logo que eu era a culpada. Pelo que houve e pelo que não houve; pelos barulhos e pelos silêncios; pela beleza e pela feiura; pelo passado e pelo futuro”. Com uma aparente despretensão e de leitura fácil – que não significa rasa -, a autora empreende uma investigação do universo feminino em toda a sua complexidade, como se houvesse uma interligação entre os relatos ora comoventes, ora contundentes.
Em entrevista para esta coluna dada enquanto se divide entre vários novos projetos, Martha falou sobre inspiração, independência e autonomia feminina, sororidade, legislação brasileira e dos acontecimentos surreais que fazem parte do dia-a-dia do país.
Fabiane Pereira: Em “Filhas de Eva” você reúne vários contos. Toda escrita, de certo modo, é autobiográfica porque de alguma forma os acontecimentos da personagem passaram por você. Como sua inspiração para escrever histórias é ativada?
Martha Mendonça: Certamente é ativada por coisas que passei e que observei por aí, nas vidas de outras pessoas. Mas não existe essa ligação tão direta. Quase tudo é processado pela mente, pode ficar ali guardado muito tempo e um dia vir à tona sem eu sequer saber a origem daquela ideia. Mas há, sim, muitas referências diretas a mulheres que conheci de verdade. O conto Indecisa, por exemplo, foi inspirado na história de uma tia-avó. O conto Pombagira, em um acontecimento da vida da minha sogra, já falecida, que era mãe-de-santo.
FP: Você acha que, de certa forma, mesmo com todas as conquistas – independência e autonomia – toda mulher tem um pouco de cada uma de suas “mulheres adjetivas”? Por quê?
MM: Acho que em cada conto existe algum ponto que pode, sim, causar identificação nas mulheres. Talvez porque a gente não só viva a nossa vida, mas somos sensíveis o bastante para “viver”, de alguma forma, a vida de outras mulheres que nos cercam, que admiramos ou temos algum tipo de convivência. Eu tenho a impressão de que falar de mulher interessa muito às mulheres. Nós gostamos dessa liga que nos une. Recentemente eu vi um documentário chamado “You’re beautiful when you’re angry” sobre os primórdios do feminismo. E uma das coisas mais interessantes é o fato de que, nas primeiras reuniões, as mulheres ficavam falando sobre suas vidas domésticas, pessoais, seus medos. Falar simplesmente de suas rotinas era um ato político. E nasceu daí um movimento forte: dessa identificação, dessa cumplicidade, dessa solidariedade – que modernamente se chama sororidade.
FP: De 2003, quando seu conto “Namorada” foi premiado, até hoje (2016) algumas coisas mudaram em relação a condição feminina na sociedade. Talvez a mais perceptível tenha sido o endosso aos movimentos feministas que desde o ano passado ganham as ruas do Brasil e do mundo. Como estas manifestações afetam você e consequentemente sua escrita?
MM: Estas manifestações me afetam muito – e estive presente em algumas delas, feliz por ver tantas meninas jovens ali. Por isso mesmo penso que, se escrevesse meus contos hoje, teria que acrescentar novas histórias ou mesmo trocar muitas das coisas que escrevi. Porque os movimentos de hoje são inspiradores e novas “filhas de Eva” certamente surgem desses acontecimentos, da jovem estuprada, da jornalista assediada, etc. Mas o bom é que posso continuar escrevendo. 🙂
FP: Ter que lutar, em 2016, para que algumas conquistas femininas básicas permaneçam como direitos na legislação brasileira te brocha ou te encoraja? Por quê?
MM: De fato é bastante desanimador ver que há no Brasil um forte movimento conservador em relação a conquistas femininas. E, mais ainda, ver que uma boa parte das próprias mulheres não consegue compreender a importância de avançarmos não só na legislação, mas na sociedade, no comportamento. Acredito que, como quase tudo no Brasil, a origem desse mal é a ignorância, a ausência de uma boa formação. O que permite o avanço do fundamentalismo religioso no país e entre os legisladores. As noções tortas do que é família, a homofobia e o combate ao aborto que vêm dessas camadas são grande perigo para a causa feminista. Ao mesmo tempo, a clareza desse cenário resultou nesse novo movimento feminista no Brasil, o que pode ser benéfico para todas nós. Torço muito por isso e procuro fazer a minha parte.
FP: Você é uma das redatoras e fundadoras do site Sensacionalista, um fenômeno de audiência na web. Como surgiu a ideia do site?
MM: O site foi criado em 2009 pelo Nelito Fernandes e no mesmo ano, eu e Marcelo Zorzanelli, também jornalistas, nos juntamos a ele com essa ideia de fazer humor em linguagem jornalística. Logo depois veio Leonardo Lanna, que é formado em História. De lá para cá, somamos 2,8 milhões de seguidores no Facebook e temos 11 milhões de visitantes por mês. O Sensacionalista é uma forma de fazer humor e crítica e um exercício diário de acompanhamento do noticiário e observação da sociedade. Eu faço o site e, ao mesmo tempo, sou fã!
FP: Muitos dos atuais acontecimentos brasileiros são tão surreais que a concorrência com o Sensacionalista chega a ser desleal. Já tiveram momentos em que a equipe de redação do site pensou em publicar determinada notícia mas achou muito surreal e esta notícia acabou sendo real?
MM: Já aconteceu, sim. Um exemplo é uma notícia que fizemos sobre a Angela Bismarchi fazer uma plástica para colocar um terceiro seio. Alguns anos depois, soubemos da notícia de que uma atriz pornô fez isso. Sobre as notícias reais que parecem mentira, criamos este ano um site-irmão, o Surrealista, que publica acontecimentos bizarros do Brasil e do mundo.
FP: Que conselho você dá aos jovens escritores que gostariam de viver de sua própria escrita mas ainda têm dificuldades em serem lidos por pessoas/editoras que os validem?
MM: Acho que há realmente uma grande dificuldade em se conseguir atenção das editoras. O mercado de livros encolheu e as empresas estão muito interessadas no que pode dar certo, em quem já tem nome reconhecido, etc. O conselho é persistência e a humildade. Não desistir facilmente, buscar alternativas como a própria internet, que é um espaço democrático que dá visibilidade. E, caso não seja logo acolhido pelo mercado, que repense sua escrita, que não tenha a arrogância de achar que é apenas injustiça. Às vezes um “não” pode nos ajudar a evoluir.
FP: Quais os cuidados que você toma para escrever sobre mulheres sem ser caricata?
MM: Eu leio bastante sobre mulheres e também vejo filmes, séries, documentários, etc. Talvez seja uma forma natural de saber o que já existe e buscar meus próprios caminhos. Mas, quando escrevo, não fico pensando nisso. Espero estar me saindo bem.
FP: Como você define a mulher brasileira urbana? Ela é muito diferente daquela que vive em cidades interioranas?
MM: Mulheres vivem, de modo geral, vidas agitadas, com jornadas que se acumulam. Por mais que as coisas tenham melhorado, a maioria das pesquisas mostra que os homens ainda veem a participação nas atividades domésticas como uma “ajuda”, um “plus”, e não uma obrigação, um dever natural de que está dividindo a vida com outra pessoa. Acho que isso acontece no campo ou na cidade. Mas a vida urbana, mais agitada, com engarrafamentos, violência, diversidade cultural, faz com que a mulher que vive na grande cidade sofra mais com sua condição.
FP: Temos uma mulher eleita legitimamente como presidenta porém temos pouca representatividade feminina na esfera pública. Como mulher, escritora e pesquisadora do sexo feminino, como você acha que poderemos reverter este quadro para que consigamos conquistar pautas no legislativo?
MM: A política perdeu a credibilidade no Brasil, independente de gênero. Virar esse jogo, na minha opinião, será muito difícil, já que pessoas bem intencionadas têm cada vez mais medo de se envolver com a política. Um cenário que dá espaço ainda maior para quem quer entrar na política com intenções de apenas dinheiro e poder. Essa crise com certeza afeta a mulher, que, historicamente (e, como mostra a baixa representatividade no Legislativo), já tem menos interesse em poder e política. Tenho a impressão de que a tendência é essa pequena presença da mulher na política se manter ou diminuir ainda mais – até porque da ignorância geral surge a ideia de que, se a experiência de uma mulher na presidência da República foi ruim, então ali não é lugar de mulher. Fora isso, precisamos não só de mulheres na política, mas de mulheres que entendam a causa feminista. Porque uma parte das mulheres que estão em cargos legislativos votam contra nossas pautas. Mais uma vez, investir na Educação contra a ignorância é a única saída para se mudar um estado de coisas no país. Mas não se vê caminho para isso, infelizmente.
FP: Que conselho você daria às mulheres que se auto intitulam “bela, recatada e do lar”?
MM: Meu conselho é avaliarem se estão felizes assim, de verdade. Se não estiverem, irem à luta. Mas, se gostam dessa condição, que permaneçam assim. Porque a mulher tem direito a ser tudo que ela quiser: trabalhar ou cuidar só dos filhos, se cobrir ou andar de minissaia, ficar em casa ou se divertir no bar. É por essa liberdade que precisamos lutar.
*Fabiane Pereira é jornalista, pós graduada em “Formação do Escritor”, sócia da Valentina Comunicação — empresa voltada para criação, divulgação e produção de projetos musicais e literários — apresentadora, roteirista, produtora e programadora musical do programa de rádio Faro MPB, da Rádio MPB FM.
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