*Por Malu Porto
Pensadora iconoclasta, musa feminista, mãe de família e devota religiosa, Fernanda Young era uma heroína de mil faces — é o que nos revela ex-colegas e pessoas de seu convívio íntimo ao refletir sobre sua abrupta partida, em agosto do ano passado, aos 49 anos, vítima de uma crise de asma, seguida de uma parada cardíaca, no sítio de sua família em Gonçalves, Minas Gerais.
De mãos dadas com monstros e deusas
“Comecei a trabalhar muito cedo, com oito anos de idade em novelas. Fui formada como mulher para corresponder às expectativas da sociedade, e só de observar e beber da fonte da Fernanda, eu aprendi a me libertar dessas amarras e me amar nas minhas contradições da expectativa do outro”, confessa a atriz Fernanda Nobre, em entrevista exclusiva ao site, que na ocasião da morte, estava às vésperas de estrear a peça “Ainda Nada de Novo” ao lado da escritora, onde elas interpretariam um casal homossexual.
“A Fernanda era muito doce, extremamente acolhedora e generosa. Tivemos um encontro lindo, muito intenso, pois fazer teatro é um grande mergulho na intimidade. E, para lidar com os nossos monstros e deusas, estivemos nesse processo de mãos dadas do começo ao fim”, revela Nobre, afirmando ainda que a amizade com a escritora a fez repensar sua vida como um todo:
“Sinto que a vida me presenteou a Fernanda para uma transformação da mulher que sou, na convivência ela me ensinou sobre o que é ter coragem de se assumir quem é, que a beleza de cada um está na sua individualidade da sua autenticidade. Ela foi um antes e depois na minha vida e no meu olhar sobre mim mesma”, reflete.
Tudo o que ninguém sabia
“Muitas pessoas estão me procurando para falar sobre como era a Fernanda na esfera íntima, desse lado doce e generoso que não aparecia enquanto pessoa pública. Frente às câmeras, ela tinha essa imagem provocativa e exigente, mas nos bastidores e em sua vida pessoal era super família, caseira e muito generosa, sempre disposta a ajudar e inspirar as pessoas com quem trabalhava. É esse lado mais desconhecido que eu gostaria de revelar, montar o quebra-cabeça de todas as histórias e depoimentos e traduzir quem foi essa mulher, que usou da força de sua vulnerabilidade para inspirar tanta gente”, comenta a diretora Susanna Lira (“Mussum, um filme do cacildis” e “Torre de donzelas”), que, ao lado de Alexandre Machado (com quem Fernanda foi casada), da roteirista Marcella Tovar, e da ex-editora de Fernanda, Eugênia Ribas, busca reconstruir as mil faces de Young, em documentário, ainda em fase de pré-produção.
“Será um filme híbrido, com uma linguagem que mistura imagens abstratas, além de muita coisa de acervo e em super 8. A ideia é refletir a Fernanda, que era tão diferente e multimídia, nessas diversas plataformas de representação visual”, comenta sobre o processo criativo de “Tudo que você não sabia sobre Fernanda Young”, que será coproduzido pelo canal pago GNT e faz alusão à obra autobiográfica “Tudo que você não soube” (2007).
Maternidade real, feminismo e doença mental
Durante a live, transmitida em seu perfil do Instagram, direto do Teatro Porto Seguro, em São Paulo, a emocionada atriz Maria Ribeiro, ao lado de Monica Iozzi e da diretora Mika Lins, revelou os bastidores dos ensaios do monólogo “Pós-F: para além do feminino e masculino”, inspirado no livro homônimo da autora, indicado ao Prêmio Jabuti de 2019, e que chega ao palco no próximo dia 12 de setembro com transmissão via streaming.
“A Fernanda tinha essa imagem de ser muito porra louca. Eu tinha medo dela (risos). Ela sempre falava de todos os assuntos tabus com muita liberdade e desprendimento: de maternidade real, feminismo até doença mental, depressão, bipolaridade… Eu me lembro que ela gravou um comercial contando que já quis se suicidar quando jovem. O texto era mais ou menos assim: ‘Para quem já tentou se matar ao 19 anos, eu tô no lucro!’. Teve a coragem de se expor em todos os sentidos. Me dói o fato dela não ter ganhado prêmios em vida”, desabafa a atriz, comovida, tanto pela data como também pelo fato de estar pisando em um teatro pela primeira vez, desde que a pandemia do Covid-19 eclodiu: “Gente, tô no teatro! É muito emocionante subir no palco, mesmo com a plateia vazia. Parece que estamos num futuro distópico. A última vez que estive num teatro foi para ver o Moraes Moreira”, relembrando o cantor, que faleceu esse ano.
“Eu tinha preconceito com a Fernanda. Ela tão linda e tinha tanta opinião. Não sabia como aquilo poderia ser real (risos). Mas após ler o ‘Pós-F’, a Fernanda para mim ganhou umas cinco camadas de profundidade. Ela tinha solidariedade, inteligência e a melhor qualidade que alguém pode ter: rir de si mesmo. Ela não se levava tão a serio, era cheia de contradições, tinha essa mania de desglamorizar tudo”, comenta a diretora, Mika Lins, também revelando que a peça terá participações especiais de artistas como Malu Mader, Fernanda Nobre, Marisa Orth, Bob Wolfeson, entre outros, e que permanecerá com a plateia vazia e equipe enxuta, por medidas de segurança. Ingressos serão vendidos online e o programa do espetáculo poderá ser baixado em PDF.
A live ainda contou com a presença de Monica Iozzi, que está em Portugal a trabalho, e relembrou o início de sua amizade com a escritora, quando atuou no seriado ‘Vade Retro’ (2017), exibido pela Rede Globo, de autoria de Young e Alexandre Machado:
“Até a morte dela foi única e marcante. A Fernanda se foi desse jeito inesperado, quebrando expectativas, com tantos trabalhos pra nascer. Eu me lembro que no dia do enterro havia um pessoal num bar do lado de fora do cemitério cantando ‘Evidências’, do Chitãozinho e Xororó. Uma loucura! E pensei: até isso é a cara da Fernanda. Esse nonsense, essa fina ironia (risos). Tudo dela era sofisticado, uma verdadeira surra de sabedoria”, conclui a atriz, nostálgica.
Artigos relacionados