Com o intuito de combater o eurocentrismo na arte, a diretora, performer, coreógrafa e bailarina Mari Paula faz duas apresentações do solo “Retrópica”, vencedor do prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna (2015), no Teatro Cacilda Becker, no Rio, sábado e domingo. O espetáculo é fruto de uma pesquisa da artista com base na antropofagia cultural, inspirada no movimento lançado por Oswald de Andrade (1890-1954) e pela pintora Tarsila do Amaral (1886-1976) na década de 20 e da fascinação da coreógrafa pelo Tropicalismo: “Quando criei o projeto, eu acreditava que a situação política e cultural do país necessitava ser ‘retropicalizada’. Questionava, por exemplo, como um movimento tão potente, o Tropicalismo, floresceu em plena ditadura. Imergi na Antropofagia e voltei ao Modernismo dos anos 1920”, conta.
Por meio da dança e da música, o espetáculo está diretamente ligado à realidade atual. “Quando escrevi, o país passava por uma crise política e social. Aí, você olha para o Brasil de hoje e percebe que tudo podia piorar. A fim de retropicalizar, mantive a ideia de valorizar a potência artística através de reflexões sobre o mundo em que vivemos. Temos o Remanifesto, que é uma releitura do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade. O projeto foi escrito em 2015 e a performance foi criada em 2017. No entanto, é mais atual do que quando estreou”, acredita a coreógrafa.
Transformar as angústias em relação à cultura em espetáculo de dança, porém, não é fácil. O processo de criação passa pela observação muito antes de coreógrafo e companhia se lançarem à ação efetiva: “Podemos pensar na raiz da palavra ‘cultura’, que é cultivar, semear, produzir. Em ‘Retrópica’, eu não transformo a cultura em espetáculo de dança. Olho para os movimentos culturais, especialmente para modelos que passam pelo imaginário coletivo. É um trabalho de observação e, através da contemplação clara, transporto para o corpo”, explica”.
Com um olhar apurado e extrema efervescência do tema, o espetáculo esteve presente em três continentes, em salas e festivais de Alemanha, França, Espanha, Moçambique e Uruguai. Segundo Mari Paula, a experiência é interessante, porque não toca em temas de interesse apenas brasileiros, mas fala, também, de empoderamento feminino, narcotraficantes latino-americanos, força de trabalho… “Eu estive em festivais com recorte e público interessado nisso. E o retorno foi interessante, porque temos um ponto em questão, a Latino-América, com todas as suas injustiças”, diz Mari Paula.
A coreógrafa, que vive na Espanha, acredita que as dificuldades enfrentadas pela classe artística no Brasil, sobretudo pelos profissionais ligados à dança, podem incentivar uma maior competitividade, diferentemente do que acontece em países onde até a arte experimental é subvencionada: “Aqui, às vezes, criamos um trabalho mas não conseguimos circular. Talvez porque o país seja grande, porque o poder público não se interessa, porque a comunidade não está preparada para determinados trabalhos. Acho que a presença de público dentro das ações artísticas toca numa questão educacional. Diferentemente da Espanha, o Brasil tem pouquíssimos festivais de dança ou salas que programam dança ou que priorizam dança. Mas acredito que aqui temos menos festivais com muita qualidade, enquanto na Espanha há muitos festivais, alguns com muita qualidade, mas outros que deixam a desejar. Às vezes, a facilidade do fazer artístico joga contra os agentes culturais. Como as coisas são tão difíceis, a gente acaba lutando e isso põe muita potência no trabalho brasileiro. Quando o mercado está acomodado porque já tem um governo que sustenta financeiramente determinadas instituições, inclusive teatros alternativos, companhias independentes… as pessoas não têm a faca na boca. Essa é a diferença. Muitas vezes, a dificuldade faz com que a gente se supere”.
A receptividade dos brasileiros, porém, é considerada excelente pela artista. E, segundo ela, o público brasileiro está mais politizado para receber trabalhos como “Devora-te”, sua criação mais recente, em que fala da poluição do planeta e a relação de nossos corpos com o lixo. “É necessário, como performer, investigar e trabalhar fundo na sua proposta. As pessoas podem, entre um trabalho e outro, não gostar esteticamente, não gostar do discurso. Mas quando tem pesquisa e um tempo de investigação, você não tem o que não levar para casa. Acredito muito na força do trabalho. Na dedicação. Na dedicação com relação ao tempo. Todas as coisas necessitam de tempo, quanto mais tempo, mais força terá. Nesse caso foi, voltou, estreou aqui, foi para lá, agora volta diferente, volta com outro olhar, volta com críticas internacionais… Volta conhecendo um circuito que não é tão visceral como o nosso, não é tão político. Isso é real, a dança hoje no Brasil é muito mais política que na Espanha”, analisa.
Longe dos palcos, Mari Paula é uma mulher tranquila e discreta. Gosta de ficar com seu gato. Numa palavra, é discreta: “Sou gestora cultural, adoro ficar com meu gato, na minha casa. Sou uma pessoa pouco arriscada na vida. Arrisco muito no trabalho, mas na vida sou menos… Sou bem contida. Não tenho um sonho específico, acredito que se eu tiver saúde para continuar, que bom! Quando era criança, meu sonho era ser bailarina. Não tenho sonhos, tenho objetivos e desejo de ter saúde para continuar fazendo o que eu faço”.
*Colaborou Domênica Soares
Retrópica
Teatro Cacilda Becker: Rua do Catete 338, Catete – 2265-9933
Sábado (19), às 20h; domingo (20), às 19h
R$ 20 e R$ 10 (meia-entrada)
14 anos
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