*Por Fabiane Pereira
Faço minha estreia neste espaço muito bem acompanhada. Em períodos de pouco diálogo, nervos à flor da pele e agressivos embates políticos, bati um papo com a filósofa Marcia Tiburi que, em agosto passado, lançou o livro (de leitura obrigatória em tempos de cólera) “Como conversar com um fascista — reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro”. O livro propõe o diálogo como forma de resistência e este será o principal objetivo desta coluna que pretende ser semanal.
Sucesso de público e de crítica, Márcia é graduada em Filosofia e Artes, mestre doutora em Filosofia e além de ter diversos livros publicados na área – alguns, inclusive, finalistas dos prêmios Jabuti e Portugal Telecom – é colunista da ótima revista “Cult” e professora de filosofia. Em sua mais recente publicação, a filósofa reuniu reflexões sobre o estado psicopolítico e cultural de nossa época e sobre as dificuldades de interação com pessoas enrijecidas em suas visões de mundo.
No momento em que os direitos das mulheres correm sérios riscos frente ao machismo exacerbado de nossa sociedade e que o crescimento de posturas autoritárias e diversas manifestações neofascistas estão sendo observadas no Brasil, e no mundo, não dava para escrever sobre outro assunto. Até dava mas tornar-me isenta não é uma opção.
O livro é bastante eficaz ao combinar densidade intelectual e linguagem acessível. A autora defende que o segredo da inteligência humana, seja ela cognitiva, moral ou política é a passagem da ideia pronta que recebemos da religião, do senso comum, dos meios de comunicação para o questionamento. Informação e conhecimento, portanto, são, sim, as armas para descontruir certezas e confrontar o fascismo.
Um dia após ocorrer o maior atentado com armas de fogo na história dos Estados Unidos causada pela intolerância e preconceito, temos a certeza de que a empatia – capacidade de se colocar no lugar do outro – ainda permanece como um dos grandes desafios da humanidade.
FP: Você lançou o livro num cenário “bem melhor” politicamente do que este que nos encontramos, concorda? Na época, tínhamos, pelo menos, uma presidenta eleita democraticamente, governando (ou tentando). Você acha que o Brasil tende a ser, em pouco tempo, um país cuja maioria é neofascista? Chegaremos a este ponto?
MT: O cenário não era tão melhor do ponto de vista da cultura política, marcada pelo analfabetismo, mas ainda não tínhamos vivido o golpe tecnicamente falando, embora tudo estivesse organizado para que ele acontecesse de fato. Não foi, contudo, o fascismo popular que levou ao golpe. O povo é apenas usado pelo fascismo capitalista que é organizado internacionalmente e nem precisa levar esse nome. Poderíamos hoje em dia falar de um fascismo que não teme dizer seu nome. Ele é cínico e seu teor é pior do que nas fases em que não pega bem ser chamado de fascista. Hoje é um fato que muito perderam a vergonha de se declararem fascistas. Ou de se portarem como tais, como sujeitos de uma mentalidade autoritária que não reconhece o outro. O fascismo, como exposição concreta da mentalidade autoritária, surge em determinadas condições, as mesmas em que falamos de barbárie. Mas a complexidade do fascismo está em que ele é a barbárie organizada, institucionalizada, transformada em Razão de Estado.
FP: Entre a ideia e o lançamento, quanto tempo levou o processo de criação do livro?
MT: Esse livro levou um bom tempo sendo escrito. Vários textos que estão no livro tiveram uma primeira versão publicada no meu blog ou nos artigos impressos da Revista Cult. Mas não só. A tese fundamental do livro, sobre o consumismo da linguagem não foi publicada antes. A análise do autoritarismo da sociedade brasileira é antiga, tem a idade dos meus estudos sobre ‘A Personalidade Autoritária’ de Theodor Adorno. Mas o título ‘Como conversar com um fascista’ veio no meio do processo. Algumas pessoas o consideraram pesado, mas eu achei que valia sugerir a ironia. Já que em filosofia, ironia é um método para fazer pensar.
FP: Você acredita que a médio prazo conseguiremos aumentar a interação entre as pessoas que pensam/agem diferente através do diálogo? A população, de modo geral, está aberta para isso?
MT: Há uma diferença entre conversar e dialogar. Estamos com problemas nos dois campos. É uma sociedade sem diálogo que leva ao fascismo. A conversação impossível seria o sintoma de uma sociedade que não conseguiu dialogar. A falta de diálogo é profunda como falta de reconhecimento do outro e incremento dos preconceitos. O diálogo não é a conversação. Ele pode ser silencioso, pode ser da alma consigo mesma, como aparece em Platão, filósofo que praticamente só escreveu diálogos com o objetivo de mostrar que a filosofia dependia dele. O que depende do diálogo é a reflexão, a crítica, a análise. Ou seja, o diálogo é intenso e complexo. Ao mesmo tempo, a conversação, muito mais simples do que o diálogo, uma prática da vida cotidiana que implica o sentido mais elementar do respeito ao próximo com quem se encontra em casa ou em ambientes públicos, sofre com a barbárie que é o estado em que se encontra a nossa mentalidade. A conversação como prática de civilidade é anulada. As pessoas não conseguem mais conviver de modo respeitoso e expressam isso na fala, no código verbal. Na internet, onde o discurso verbal corre solto, muitas pessoas falam sem ter nada a dizer. Mas é o meio que convida a isso. Em uma sociedade que não tem um lastro cultural e educacional, em que a ausência de pensamento reflexivo é fomentada desde a ditadura militar (e antes) fica fácil entender como as pessoas são capazes de dizer o que dizem sem pensar no que dizem. É impressionante como as pessoas falam sem compromisso com o que dizem ou sem perceber como caem em contradições e como se sentem orgulhosas de coisas que seriam vergonhosas. Há em nosso cenário uma espécie de produção e de consumismo da linguagem em que o clichê racista, fascista, machista vale como capital. Nas redes sociais, as “curtidas” e “compartilhamentos” servem como moedas em um cofrinho na economia da subjetividade esvaziada.
FP: Você diria que nos dois últimos anos (pós rua de 2013), finalmente, o gigante acordou ou isso é uma distorção do real?
MT: Não sei se essa ainda é a melhor metáfora para explicar o que acontece no Brasil. Se um dia foi. Creio que estamos em um sono dogmático como aconteceu e acontece em várias sociedades. O sono dogmático é fundamentalista. Capitalismo, religiões ligadas ao capitalismo, racismo, que é uma forma de capitalismo ligado à exploração e humilhação das raças, machismo, que é uma forma de capitalismo ligada à exploração e humilhação de sexo e gênero fazem parte disso. Pensar mais, com atenção aos jogos de poder nos quais estamos manipulados seria urgente, mas isso é o que o próprio poder precisa evitar, que as pessoas pensem. A máquina que evita o pensar é, sem dúvida, a televisão que produz não apenas a distração, mas serve como prótese de conhecimento onde as pessoas acreditam encontrar a verdade.
FP: Tenho a impressão que o movimento feminista, muito na esteira de campanhas bem sucedidas nas redes sociais (diversas hashtags), ganhou as ruas e dificilmente sairá delas até que todos os direitos conquistados não corram riscos de retrocesso. Por que isso não acontece com outros movimentos como, por exemplo, o Fora Temer, Volta Dilma ou Novas Eleições Gerais?
MT: Os movimentos tem seu tempo. Estamos no olho do furacão e eu não os compararia nesse momento. Até porque muita coisa ainda está por acontecer.
FP: Você é professora. Sua experiência em sala de aula te dá esperança de um futuro mais promissor, politicamente falando?
MT: Esperança é um conceito que precisa ser usado dialeticamente. Esperança pode ser prejudicial à ação que serve como mote ao comodismo. No entanto, é um conceito essencial à ideia de revolução. Como professora, no entanto, defendo uma educação crítica e voltada para a política, a sociologia, a filosofia, a psicanálise, a ética como capacidade de construir a singularidade. No entanto, a ausência de um projeto de país baseado em um projeto de educação, a desmontagem e sucateamento da educação pública, a fascistização da educação em muitos contextos, ou seja, o uso da educação contra o esclarecimento e a mudança na mentalidade autoritária, não desenham cenários promissores no futuro. O presente já vai muito mal. Quem é educador no Brasil hoje tem que saber disso e lutar politicamente pelas melhorias das condições ético-políticas e materiais do ensino.
FP: Além do diálogo, você vê outras maneiras de se estabelecer uma disseminação maior das informações?
MT: Acho que no nosso caso, precisamos que a regulamentação e democratização da mídia aconteçam. Precisamos de uma reforma nesse setor para mudar o cenário de desinformação em que nos encontramos. Diálogo hoje é apenas resistência contra um cenário fascista construído, sobretudo, pelos meios de produção da comunicação. Hoje jornais e revistas tradicionais mais desinformam do que informam.
FP: É possivel melhorarmos como país mesmo sem reforma política?
MT: O que é melhorar? Atualmente vivemos uma piora assustadora. O termo ‘golpe’ define a desgraça política em que nos encontramos. No nosso caso o conceito de ‘melhoria’ caiu por terra pisoteado debaixo das botas dos coronéis golpistas e traidores que assumiram o poder e promoveram retrocessos de décadas em poucos dias. Estamos em plena barbárie. Não há como evitar o retrocesso que já aconteceu. Melhorar seria rebobinar a história e voltar atrás? O que podemos fazer contra isso? Manter a resistência, ampliar o debate, lutar como nunca, ou cada vez com mais intensidade em relação à direitos, mas também ao pensamento lúcido e crítico. Um reforma política é essencial, mas muitas outras reformas são urgentes, entre elas uma reforma tributária, agrária, administrativa, educacional, urbana. São necessárias reformas de base. A reforma política é uma delas.
*Fabiane Pereira é jornalista, pós graduada em “Formação do Escritor”, sócia da Valentina Comunicação — empresa voltada para criação, divulgação e produção de projetos musicais e literários — apresentadora, roteirista, produtora e programadora musical do programa de rádio Faro MPB, da Rádio MPB FM.
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