*Por Vagner Fernandes
Araxá, cidade mineira localizada a 362 quilômetros de Belo Horizonte, tem muitas histórias protagonizadas por personagens singulares. A figura mais ilustre de suas narrativas é Ana Jacinta de São José, a estonteante Dona Beja, mulher libertária que virou a região de ponta à cabeça em meados do século XIX ao tornar-se cortesã. Uma das primeiras feministas do Brasil no stricto sensu do termo, a feiticeira de Araxá, como também ficou conhecida, fora raptada por um mandatário do Império, de quem acabaria amante, e teve a reputação destroçada. Beja sempre exerceu fascínio nos historiadores e, consequentemente, pôs Araxá no mapa dos destinos turísticos brasileiros.
De 2012 para cá, a mais recente história da cidade começou a ser escrita por Afonso Borges, jornalista de BH, gestor cultural, idealizador do projeto “Sempre um papo” e também de um festival literário, considerado hoje um dos mais importantes do país: a Fliaraxá. Diferentemente de outros eventos análogos, o projeto araxaense destaca-se pela forma incisiva e nada superficial com que os temas são debatidos, por seu descomprometimento midiático, pelo compartilhamento de afetos e também por um exercício pleno, real, da liberdade de expressão.
Miriam Leitão, emocionada, foi aplaudida em uma das mesas ao narrar a hostilidade com que fora tratada por grupos da extrema direita após revelar ter sido torturada na ditadura. Conceição Evaristo, ovacionada por todos os lugares em que circulava, brilhou ao subir ao palco para debater sobre o processo de criação literária e o sentimento do mundo. Zuenir Ventura, o mestre Zu, a elegância e a delicadeza personificadas, impressionava a todos pelo vigor com que enfrentava uma maratona diária de debates e sessões de autógrafos. Heloisa Starling, historiadora mineira que é um encantamento, hipnotizava a plateia com as suas reflexões precisas sobre os dramas sociopolíticos que enfrentamos. E ainda tivemos Ignácio de Loyola Brandão, Antônio Torres, Antonio Prata, Maria Valéria Rezende e outras tantas cabeças incríveis que nos afloram a cidadania e adoçam o coração.
A Fliaraxá, em sua oitava edição, homenageou o português Valter Hugo Mãe, uma pessoa tão maravilhosa quanto as próprias obras que escreve. É uma festa que não celebra somente a literatura e reverencia autores, mas evidencia em cinco dias na região do Triângulo Mineiro e Alto Parnaíba as entranhas de um Brasil magnífico, secularmente forjado a ferro e sangue, tão plural quanto antidemocrático, tão omisso quanto arauto, tão progressista quanto conservador. E é, justamente por meio dessas diferenças e contradições, que a Fliaraxá nos conduz ao encontro de um país possível em que a emersão de nossas subjetividades se intensifica sem conflitos. Lá revelamo-nos muitos em tão poucos. Foram trinta mil pessoas circulando pelos salões do Grande Hotel Araxá. Em um território de proporções continentais, com quase 209 milhões de habitantes, isso representa 0,01% da população brasileira. Pode parecer pouco, mas não é.
Fundada por índios, Araxá significa na língua tupi “lugar alto do qual primeiro se avista o sol”. No momento em que se tenta retroagir institucionalmente no processo de demarcação de terras indígenas, testemunhar a conversão da cidade, que também abrigou o maior quilombo das Minas Gerais, em palco de resistência cultural, é extremamente simbólico. A Fliaraxá vem cumprindo a missão de tirar-nos da zona de conformismo e apatia que, como bem lembrou o extraordinário escritor angolano José Eduardo Agualusa, em uma das discussões, vem tornando incompreensível o Brasil aos olhos de outras nações. “Parece-nos que os povos de outros países têm muito mais clareza do que acontece aqui do que os próprios brasileiros”, disse. Agualusa tem razão.
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