*Por Jeff Lessa
Moda, feminismo, homofobia, racismo, obsessão pela aparência, conflito entre patrões e empregados, superficialidade das relações, comportamento ousado, desigualdades sociais e androginia: sim, poderíamos estar falando de uma conversa que acabamos de ter num encontro com amigos ou de um filme que abordasse esses assuntos. Só que não. Nesse caso, estamos listando alguns dos muitos temas comentados pelo caricaturista paulistano Belmonte (1894-1947) na década de 1920 – ou seja, há praticamente um século. O novo livro da historiadora Marissa Gorberg Stambowsky, “Belmonte: Caricaturas dos Anos 1920”, editado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), trata da obra do artista e de sua atuação nos chamados Anos Loucos, que começaram logo após o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
O livro, resultado do doutorado em História, Política e Bens Culturais com bolsa CAPES para um período “sanduíche” no King’s College de Londres, traz uma série de charges publicadas nas revistas cariocas “Frou Frou” e “A Careta” entre 1923 e 1927. “Quando a gente pensa naqueles anos, as primeiras lembranças são da Semana de Arte Moderna e do Tenentismo. Mas se mergulhamos nas revistas de variedades, que acompanhavam o cotidiano, vemos que esses assuntos não estavam na boca do povo. Outra coisa, havia muitos outros modernos além dos que participaram da Semana. Aquele não foi o único modernismo. O Monteiro Lobato, por exemplo, era moderníssimo, assim como o Belmonte”, exemplifica a historiadora.
Os maiores “escândalos” eram verificados na moda. Se hoje, no final da segunda década do século XXI, ainda voltamos a publicar artigos sempre que um homem famoso aparece usando saia em algum evento concorrido – lembra de Billy Porter, da série “Pose”, no Oscar, em fevereiro? – imagina o que as ousadias parecidas não causavam nos Anos Loucos. Outras novidades captadas pela pena de Belmonte que valem a pena destacar foram a criação de animais domésticos (que não era comum e transformaram os cãezinhos das madames em alvos dos ciúmes dos maridos) e a atração por artistas negros, por influência da “negrofilia” parisiense, da qual a cantora americana Josephine Baker é um bom exemplo.
“Outro fenômeno interessante foi o ‘almofadismo’, que gerou o almofadinha, aquele homem que cuida demais da aparência. Antes, por volta de 1890, era chamado de dândi e o Oscar Wilde é o exemplo maior desse personagem. Hoje chamamos de metrossexual. De qualquer forma, o almofadinha tinha um visual sintetizado no ator Rodolfo Valentino, com o uso de maquiagem, inclusive”, observa Marissa. “Na época, criaram a calça Oxford, com boca larguíssima. Parecia uma saia comprida. Era um visual extremante andrógino. O dimorfismo homem/mulher havia sido rompido também do lado feminino. As melindrosas usavam cabelos curtos e vestidos que as deixavam retas, sem curvas. Fumavam em público. Foi a primeira vez que o jovem transgrediu e criou uma cultura própria”.
Além da sensação de liberdade trazida pelo fim do conflito mundial, Marissa acredita que muito dessa mudança radical de comportamento foi induzida pelo cinema. “Total influência americana. Os filmes informavam sobre as danças escandalosas, como o charleston, mostravam o que era moda, os penteados, a maneira como os jovens viviam. Foi o primeiro choque de gerações da História. Talvez o objetivo de vida das melindrosas fosse casar e constituir família, pois ainda havia muito moralismo. Mas os caricaturistas traziam à tona tendências e os questionamentos reais”, pondera. “A metrópole oscilava entre avanços e retrocessos. Exatamente como hoje. Questões que achamos contemporâneas estavam em voga há cem anos”.
Será que ficamos parados no tempo e evoluímos apenas na superfície? “Houve avanços reais no Brasil. Criminalizar a homofobia e classificar o assassinato de mulheres como feminicídio são dois exemplos. Mas tenho a impressão de que o pensamento radical fanático, que se choca com o liberal, aumentou demais. E o peso da religião é muito forte”.
Pois aqui vai um fato que mais parece provocação: Belmonte, nascido Benedito Carneiro Bastos Barreto, era afrodescendente, filho de português com brasileira. Numa época e num país onde o racismo é uma questão seriíssima, porém, fez imenso sucesso, tanto popular como no meio intelectual e entre os críticos, chegando a ser convidado para trabalhar com Walt Disney e na revista americana “Life”. Como conseguiu ser chegar tão longe com esse fator “agravante”? “Nos trabalhos acadêmicos, ninguém toca nessa questão. Só encontrei menção ao fato de ele ser negro no Museu Afro-Brasileiro, em São Paulo. O Belmonte encarnava a multiplicidade de funções, como era comum aos homens de letras do tempo dele. Era caricaturista e pintor, circulava em várias frentes. E não se fechou em uma vertente, mantinha relações com cariocas e paulistas, cronistas e caricaturistas, conservadores e vanguardistas. Ter tantos amigos em tantas áreas pode ter ajudado a dissipar o preconceito”.
O imenso talento certamente contribuiu para abrir portas. Belmonte, como todos os caricaturistas, considerava o genial J. Carlos (1884-1950) um mestre – e era mesmo. No entanto, ele rivalizava com o gênio. Assim, quando J. Carlos deixou “A Careta”, em 1922, o desesperado editor convidou Belmonte. O artista aceitou, mas mandava sua colaboração de São Paulo para o Rio de Janeiro. “Ele falava da realidade mundana com humor, usando uma linguagem muito moderna. Na revista, criava cenas e situações na praia sem vir ao Rio, fazia tudo em São Paulo”, revela Marissa.
Já era famoso e consagrado quando criou o personagem que o imortalizou, Juca Pato, nas páginas da “Folha da Noite”. Baixinho e careca “de tanto levar na cabeça”, sempre de gravata borboleta e polainas, ele tinha um bordão: “Podia ser pior”. A postura conformada, porém, era só fachada, pois Juca, que representava a classe média paulistana, questionava políticos sobre suas responsabilidades, denunciava interesses dos corruptos, apontava o desdém das autoridades pela população, expunha os esforços do cidadão comum para melhorar de vida e satirizava os hábitos de seus contemporâneos. O sucesso foi instantâneo e tão grande que o baixinho passou a dar nome a tudo: bar, restaurante, balas, cigarros, graxa de sapatos, lápis, fantasias, vinho, água sanitária, cavalo de corrida, tango, cadernos, produtos de uso doméstico, pacote de café, aperitivo e marchinhas de carnaval. Em 1962, por iniciativa do escritor Marcos Rey, foi criado o Troféu Juca Pato, para premiar o intelectual do ano no Brasil. Concedido pela União Brasileira de Escritores, o prêmio existe até hoje.
As charges do artista sobre política internacional, particularmente o nazismo, publicadas entre 1936 e 1946 na “Folha da Noite”, o tornaram famoso no exterior. Nessa época, seus trabalhos aparecem em publicações francesas, inglesas, norte-americanas, argentinas e portuguesas e repercute a ponto de, às vésperas da rendição alemã, em 1945, numa transmissão radiofônica, o ministro da Propaganda, Goebbels, fazer críticas a Belmonte por conta de um álbum de caricaturas em que ridicularizava os nazistas. “Certamente, o artista foi pago pelos aliados ingleses e norte-americanos”. Não era verdade. No plano nacional, não deu trégua a Getúlio Vargas em seus desenhos, a ponto de ser censurado. Foi, também, o ilustrador dos primeiros livros de Monteiro Lobato, de quem era próximo.
Belmonte brilhou intensamente até morrer, em 1947, de tuberculose. Além das caricaturas, escreveu crônicas, pintou, pesquisou e documentou a história paulista, escreveu livros para crianças e deu as caras definitivas para os personagens de Monteiro Lobato. Apesar da vida de tantas glórias, é relativamente desconhecido atualmente. “Nos anos 1960, foi editado um tratado sobre a caricatura brasileira. O autor, Herman Lima, deixou o Belmonte em desvantagem em relação ao J. Carlos. Disse que era inferior e que seu desenho era rígido e carecia de espontaneidade, o que fazia com que suas charges perdessem o espírito e a graça”, diz Marissa. “Acredito que isso tenha contribuído para fazer com que ficasse esquecido. Quando fiz a minha pesquisa, percebi que as publicações anteriores aos anos 20, ao Juca Pato, nunca haviam sido compiladas. Uma pena, espero contribuir para preencher essa lacuna”.
SERVIÇO
Belmonte: Caricaturas dos Anos 1920
Editora Fundação Getúlio Vargas
215 páginas
R$ 80
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