*Por Fabiane Pereira
Clarice é pernambucana, arretada e cresceu repleta de influências artísticas – pra se ter uma ideia: “Meu pai frequentava a casa de Ariano (Suassuna) e, com frequência, eu ia com ele nessas visitas”, relembra. A jovem e bem-sucedida escritora também é prima do premiado poeta Marcelino Freire, uma das primeiras pessoas que leram seus versos e a incentivaram.
Olhando assim, dá até pra pensar que seu sucesso com as palavras foi instantâneo. Até foi, já que Clarice Freire (junto do poeta Pedro Gabriel) é pioneira em postar imagens na web, principalmente no instagram, com versos ilustrados que rapidamente se espalham graças aos compartilhamentos. Com mais de 1,2 milhão de seguidores no Facebook, Clarice combina palavras e desenhos em versos gráficos, sensíveis e repletos de significados.
Conheci Clarice Freire pessoalmente na Bienal do Livro do Rio de Janeiro ano passado. A empatia foi instantânea. Este ano, voltei a entrevistá-la no último sábado na Bienal do Livro de São Paulo (que vai até dia 4 de setembro no Pavilhão do Anhembi) e foi muito bom constatar que seu segundo livro, “Pó de Lua nas Noites em Claro” (editora Intrínseca), já me apontava: seu amadurecimento como poeta.
No livro, Clarice coloca a “noite” como protagonista. É a partir da meia-noite, quando as ruas se calam e as pessoas se recolhem, que a poesia de Clarice desperta para correr solta madrugada afora, explorando a liberdade da noite e se aprofundando em seus muitos mistérios. Em sua vigília criativa pela noite adentro, prosa e verso se encontram nas horas silenciosas que antecedem o amanhecer. Percorrendo becos e avenidas cheias de prédios, Clarice conduz os leitores por uma viagem cheia de personagens carismáticos — às vezes delirantes.
Aqui, uma entrevista sincera, quase um tricô entre amigas, com Clarice Freire. O sucesso desta escritora engajada que olha o outro com um amor intrínseco e sincero, está só começando. Em breve, ouviremos muito falar sobre ela e seus projetos sociais. Afinal, desde sempre, sabemos que a poesia não muda o mundo. Quem muda o mundo são as pessoas. A poesia só muda as pessoas.
FP: Clarice, como a poesia entrou na sua vida – pessoal e profissionalmente?
CF: Desde muito cedo. É parte de mim de uma forma muito literal. Meu pai é escritor, compositor…e minha mãe ilustra muito bem. Para estar com eles, brincava de desenhar e de escrever, acredito que a imagem e a escrita se misturaram como uma coisa só dentro de mim e saiu uma poesia desenhada. Profissionalmente acabei entrando no mundo da publicidade e propaganda, como redatora. Trabalhei muito tempo no mercado publicitário, o que me ensinou muito sobre criatividade e o poder da síntese. Mas entre um job e outro na agência, não parava de desenhar as minhas poesias, até criar o blog (jogava tudo que fazia no lixo, meus colegas de trabalho descobriram e me “obrigaram” a criar o Pó de Lua). Foi assim que minha escrita despretensiosa começou a tomar um corpo profissional.
FP: Os processos de produção dos seus dois livros foram muito diferentes?
Se sim, em que eles se diferenciam? Se não, nos conte como foi o processo de produção de ambos (a escolha das ilustrações e dos poemas).
CF: É difícil falar em diferenças porque cada processo foi único. Cada livro é um retrato diferente da mesma alma, por assim dizer. O intervalo entre um livro e outro foi de dois anos. O primeiro foi fruto de um trabalho que já vinha sendo feito há alguns anos e poesias inéditas, divididas nas fases da Lua. O segundo veio do zero e misturou bastante prosa com a poesia desenhada. Outra diferença é o contexto: este é, de maneira poética, a “saga” de uma personagem insone que sai pela noite em busca de si mesma. O livro começa à meia-noite e termina às cinco da manhã. As poesias foram escolhidas e criadas de acordo com o que definir ser o espírito daquela hora da madrugada. O “Noites em Claro” também tem muita prosa, o que é uma novidade.
FP: Seu segundo livro, “Pó de Lua nas Noites em Claro” traz poemas mais maduros além de versos não ilustrados. O que mudou na Clarice do livro de estreia para a escritora consagrada nas redes sociais e no mercado editorial com este segundo livro?
CF: Acho que o processo de amadurecimento da vida acaba passando para as páginas. É impossível ser diferente. Neste tempo aprendi, como diria Carrero, que “a literatura salva” e transforma qualquer noite em claro. Minha relação com meu trabalho também amadureceu comigo, acredito, do livro de estreia pra cá. Hoje tenho muito mais consciência da minha voz, do que quero dizer…o “como” é que é uma constante transformação e isso é uma maravilha!
FP: Quando você cria seus poemas ilustrados, você os cria pensando nas imagens que eles podem ter já visando a promoção deles através dos compartilhamentos nas redes sociais ou estes shares são consequências naturais de uma criação isenta desta perspectiva?
CF: Sou uma criatura de pensamento bagunçados, eles não param. O que sai em forma de poesia não poderia ter tanta ordem assim…eu não tenho a imagem nem a palavra definidas. Algumas vezes, primeiro vem a palavra. Outras, a imagem. Muitas, só a palavra ou só a imagem. Se ficasse presa ao que agrada nas redes sociais, teria um limitador e um limitador é terrível para que algo verdadeiro nasça. Gosto, nesse caso específico, de ser fora de ordem.
FP: Você cresceu numa família de artistas (além dos pais, Clarice é sobrinha do poeta Marcelino Freire e irmã da cantora Sofia Freire). Como os atravessamentos artísticos influencia sua escrita?
CF: Completamente! É tudo orgânico, tão parte da nossa vida quanto arroz e feijão. Lá em casa a arte é da família mesmo, pessoa de perto. Eu não sei o que é viver sem mergulhar na música, no teatro, na literatura. Meus pais me criaram assim, graças a Deus. rsrs.
FP: Pernambuco é celeiro de talentos musicais. Há mais de duas décadas vem lançando ritmos/gêneros musicais e bandas/artistas para o Brasil. Como a música te influenciou artisticamente e te influencia no dia a dia?
CF: Tenho um orgulho imenso do caldeirão criativo que ferve na minha terra. A influência da música em mim veio também desde a infância, porque meu pai é parceiro de Antônio Nóbrega e costumavam compor lá em casa. Meu pai com papéis, Nóbrega com seus instrumentos, eu queria me meter. Eles me mandavam inventar partes da música. Depois, no Carnaval, via a multidão cantar o que eles estavam fazendo lá em casa e isso sempre foi mágico. Tinha uma mania de desenhar ouvindo Djavan quando criança (gostava quando ele pedia o dragão emprestado a São Jorge). Depois Lenine, o Sá Grama, eram paixões da minha terra. Hoje eu só escrevo ouvindo música! Beirut, Kings of Convenience, Versos que Compomos na Estrada, minha irmã tocando piano na sala e milhares de outros.
FP: Até que ponto sua escrita é autobiográfica?
CF: Do ponto de partida ao ponto de chegada. E não é ao mesmo tempo. Existe na minha escrita uma “personagem” que fala coisas que eu gostaria de dizer e não digo, vai a lugares que não vou…mas esses lugares, essas palavras, são meus, minhas. Ou dela? Vai saber.
FP: Quais outras poetas contemporâneas inspiram você e sua arte?
CF: Sou apaixonada pela Cecília Meireles. Quando adolescente, li uma poesia dela chamada “Lua Adversa” e me encantei completamente. Comecei a procurá-la em toda parte e desde então Cecília me acompanha. Gosto muito das crônicas e dos contos de Clarice Lispector e sou particularmente fã da Adriana Falcão. Micheliny Verunsky é genial.
FP: Quais são, na sua opinião, as maiores limitações impostas pela nossa sociedade a uma mulher (seja ela escritora ou não)? E de que maneira você acha que se pode mudar esta conjuntura?
CF: Falar só sobre este assunto já daria, infelizmente, um livro. São muitas as limitações e elas têm um contexto histórico tão enraizado na nossa sociedade que de fato teria milhares de coisas a dizer. Vou falar apenas algumas. Ser mulher é um vôo profundo a lugares que só nós somos capazes de ir, é uma dádiva. Ao mesmo tempo é um absurdo perceber o quanto ainda estamos longe, muito longe, de uma verdadeira igualdade. A igualdade que acredito não faz da mulher e do homem criaturas iguais: nossas diferenças são lindas. Mas de direitos iguais. Isso devia ser óbvio. Como, no mundo de hoje, ainda ganhava metade do salário da minha dupla de criação (homem, claro) na época de agência, tendo o mesmo tempo de experiência que ele? Como é possível que não possa andar pela rua sem me sentir ameaçada a cada olhar, cada assédio que sofremos para ir até a esquina? Nossas limitações começam a partir do momento em que qualquer homem acha que tem o direito de impor qualquer coisa ou invadir uma mulher, ou desacreditar nela profissionalmente simplesmente porque ela é mulher. Isso não faz o menor sentido. Acredito que estamos em tempo de, finalmente, começar a falar, a lutar, a questionar. Isso é fundamental. Por isso não abro mão do olhar e da voz feminina que existe no meu trabalho: ela existe em mim. E com orgulho!
FP: Quais conselhos você daria a alguém que, como você, deseja viver da própria escrita?
CF: Ser verdadeiro. Acima de tudo buscar verdade na sua escrita, no seu trabalho. A internet é um meio maravilhoso de divulgação, eu sou um exemplo disso! Mas pode ser um terreno perigoso de “troco likes” , no qual muitos querem agradar a todo custo. Outra coisa: ler, estudar, mostrar seu trabalho a quem entende.
*Fabiane Pereira é jornalista, pós graduada em “Formação do Escritor”, sócia da Valentina Comunicação — empresa voltada para criação, divulgação e produção de projetos musicais e literários — apresentadora, roteirista, produtora e programadora musical do programa de rádio Faro MPB, da Rádio MPB FM.
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