*Por Fabiane Pereira
Temos muitos amigos em comum, informou o Facebook. Mas foi um conhecido meu – e grande amigo dela – que nos conectou. Há pouco mais de dois meses, comentei num post do escritor português Hugo Gonçalves – aliás, super recomendo seus livros! um dos grandes nomes da literatura portuguesa! – que me mudaria para Lisboa e cá viveria pelos próximos dois anos por conta de um mestrado. Imediatamente ele me mandou um inbox dizendo que eu deveria conhecer Rebeca Fuks. Como uma stalker, fui em sua página e, pelo pouco que a “rede” permitiu que eu visse sem que ainda fôssemos “friends”, descobri que além de amigos em comum tínhamos muitas afinidades.
Rebeca fez Letras na PUC-Rio e Filosofia na UFRJ. É mestra em literatura portuguesa pela UFRJ e está em Lisboa fazendo doutorado. Trabalhou por anos no mercado editorial (Objetiva e Editora Língua Geral) e tem vários artigos acadêmicos e textos ficcionais publicados. Organizou o livro “Postais dos trópicos” do, já citado, escritor Hugo Gonçalves (Leya, 2015).
Nosso primeiro encontro tête-à-tête foi praticamente uma entrevista – da minha parte, claro! Já havíamos, desde a apresentação virtual, trocado inúmeras mensagens, mas nada neste mundo vai substituir o verdadeiro approach. Rebeca me contou, entre muitas outras coisas, que seu encanto pela literatura começou quando teve uma professora apaixonada por livros (viva Mônica Cyríaco!). “Eu via a paixão nos olhos dela, era impossível não ser capturada”, relembra. “Meu pai também sempre gostou muito de ler, então o nosso programa, aos domingos, era comer pastel de queijo e depois passear numa livraria, a Malasartes, do Shopping da Gávea. Todas as semanas íamos lá, acho que esse ritual foi fundamental para consolidar o amor pela literatura”, recorda.
Convido você, caro leitor (adoro escrever isso!) a conhecer melhor Rebeca Fuks. Assim como eu, tenho certeza, que vai se encantar com sua delicadeza e sapiência.
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OBS: Neste primeiro mês em Lisboa, minhas entrevistas semanais neste espaço serão com nomes ligados, direta ou indiretamente, à literatura portuguesa – leia a entrevista com Luana Carvalho publicada semana passada. Embora esta admiração tenha crescido muito nos dois segmentos, os brasileiros continuam apaixonados pela literatura portuguesa e eles, por nossa música. Sem querer polemizar, viva Bob Dylan, Vinícius de Moraes, Caetano, Chico Buarque, Gil e tantos outros que, há muito, souberam promover a “leitura auricular” em diferentes gerações.
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FP: Por que e quando surgiu o interesse pela literatura portuguesa?
RF: Quando li Fernando Pessoa me encantei. Ganhei de presente da minha mãe um exemplar com as obras completas do Álvaro de Campos e foi amor à primeira leitura! Depois vieram os outros heterônimos. Mas até então essa era a minha única referência na literatura portuguesa. O grande divisor de águas aconteceu durante a graduação, na PUC-Rio, onde tive o privilégio de assistir as aulas do professor Alexandre Montaury. Há nove anos, numa terça feira qualquer, às nove da manhã, ele entrou em sala de aula e disse: “hoje vou ler para vocês uma bela crônica e depois de tanta beleza acho que não é preciso mais nada” (e de fato não era preciso mais nada). O que ele leu, em voz alta, foi “Uma carta para Campo de Ourique”, uma crônica do escritor português contemporâneo Antônio Lobo Antunes. Na hora da leitura, baixei o corpo e apoiei o rosto na mesa para ouvir aquela dança com as palavras. Quando ergui a cabeça outra vez já era tarde: estava seduzida. O que posso dizer é que depois disso a literatura portuguesa me arrebatou de vez e o que se seguiu foi um mestrado e um doutorado sobre autores portugueses. Mas a opção por uma carreira acadêmica passou muito pelo convívio com a Rosana Kohl, a primeira orientadora que tive na vida, logo que entrei para a faculdade. O aprendizado durante a iniciação científica foi a base de tudo – ali, com ela, aprendi a fazer um resumo e a escolher as palavras-chave de um artigo, por exemplo. E os dois anos que estive na pesquisa foram regados a muita generosidade, afeto, cuidado e carinho.
FP: Estamos passando por um momento complicado no Brasil com a redução de bolsas CNPQ. Qual a importância deste incentivo governamental pro país e qual sua opinião em relação a decisão de reduzi-las em 25%?
RF: É lamentável essa redução de bolsas. Recebi bolsas durante toda a minha vida acadêmica e sou profundamente grata por ter tido a oportunidade de me dedicar 100% à pesquisa (fui bolsista da CAPES, do CNPQ e atualmente sou bolsista FAPERJ). Seria muito difícil – para não dizer impossível – redigir uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado e trabalhar 40 horas por semana. Se um país acredita na pesquisa – e eu espero que acredite – é preciso dar condições básicas para os pesquisadores trabalharem. E olha que nem estamos falando das condições ideais de trabalho porque o valor das bolsas no Brasil está longe de ser suficiente para viver numa grande cidade. Recentemente a Galileu publicou uma matéria bastante polêmica sobre o assunto chamada “A ciência no Brasil é bancada pelos pais”, vale a pena dar uma lida.
FP: Quais os nomes da literatura contemporânea (veteranos e novos talentos) têm afinidades com sua pesquisa?
RF: Dos portugueses a referência maior é o António Lobo Antunes, um escritor monumental e infelizmente ainda pouco conhecido no Brasil. E tenho um capítulo dedicado à Carola Saavedra, uma jovem autora brasileira que escreveu um romance imperdível chamado O inventário das coisas ausentes. A minha pesquisa também flerta com o trabalho da Hilda Hilst e do Rubem Fonseca.
FP: Quais os nomes da literatura contemporânea – neste caso, os mais jovens – você lê e indica? O que lhe atrai neles?
RF: Adoro a escrita do Hugo Gonçalves e do João Tordo, os dois têm estilos completamente diferentes, mas ambos são ponto fora da curva, são mesmo muito bons. A escrita do Hugo é mais veloz, mais voltada para fora, para o mundo, mais cheia de ação, enquanto a do João é mais melancólica, mais introspectiva. Também gosto muito de um romance específico do José Luís Peixoto chamado Nenhum olhar. Entre os brasileiros não posso deixar de falar da Carola Saavedra e da Tatiana Salem Levy, ambas, para mim, grandes escritoras, poderosíssimas. Recomendo também o Ruffato e o Noll, que tem trabalhos incríveis.
FP: No Brasil, assim como em todo mundo, é muito difícil viver de literatura. A dificuldade aumenta se pensarmos na condição da mulher que escreve. Como você analisa esta questão?
RF: Acho que é difícil viver de literatura no Brasil independente do sexo; o mercado é igualmente cruel para homens e mulheres. Infelizmente lê-se muito pouco, os livros têm tiragens pequenas e com frequência ficam encalhados nas livrarias. Tendo a achar que o problema começa na escola, pouquíssimos professores estimulam a leitura, são capazes de transmitir para os alunos que ler é, sobretudo, um ato de prazer. O que em geral acontece é que as crianças leem obrigadas e, passado o período da leitura mandatória, não tocam mais nos livros. Essas crianças, ao crescerem, dificilmente se tornarão leitores ávidos. Precisamos lembrar que os livros competem com outras formas de entretenimento de consumo mais rápido e fácil: o cinema, a televisão, o netflix. Mas voltando a pergunta, conheço pouquíssimos casos de escritores que vivem daquilo que escrevem (e das atividades que vem a reboque: palestras, workshops, apresentações). Acho que a solução para quem quer viver de literatura é ter muito jogo de cintura: circular no mercado editorial, aprender a trabalhar com tradução, lecionar, pesquisar, escrever roteiros, estar frequentemente rodeado de palavras e disposto a pensar nelas. Gosto de pensar que essas atividades paralelas e afins alimentam o exercício da escrita ficcional.
FP: Como os atravessamentos artísticos influenciam sua pesquisa de doutorado?
RF: Não gosto de pensar a literatura como uma categoria isolada, estanque. Acho que a literatura deveria ser pensada ao lado das outras artes: o cinema, a música, a fotografia, as artes visuais, o teatro. Cada vez mais essas fronteiras são porosas e se contaminam. A minha tese de doutorado tem um capítulo sobre uma exposição, e as vezes acho estranhíssimo escrever sobre artes não tendo uma bagagem teórica tão segura quanto teria se estivesse escrevendo sobre literatura. Mas acho que vale o risco sair do território confortável para ir em busca de novas experiências. O meu interesse na tese era o exercício autorreferencial e julguei que era mais proveitoso colocar em fricção meios diferentes para entender melhor o funcionamento desse processo metaficcional. Acho que os atravessamentos artísticos são fundamentais para a pesquisa: pude ler melhor o livro da Carola Saavedra porque assisti a exposição do Rui Macedo, não tenho a menor dúvida. Quanto maior diálogo entre as áreas, mais rico e original será o trabalho.
FP: Sua pesquisa de doutorado, de certa forma, fala sobre os atravessamentos…sobre o “osso/esqueleto da obra”. Explica pra gente sua linha de pesquisa.
RF: A minha pesquisa de doutorado é sobre metaficção, um nome complicado para descrever um processo relativamente simples. A metaficção acontece quando a ficção olha para dentro da ficção, ou seja, quando a obra chama a atenção para os seus próprios dispositivos internos, quando o leitor é convidado a ver as engrenagens que movem o texto. Isto é: me interessam os livros que falam sobre a construção do próprio livro, os filmes que tematizam a construção do próprio filme, as exposições que se voltam para dentro da própria exposição e assim por diante. Um paralelo talvez possa ser traçado com a arquitetura: há, em um determinado tipo de arquitetura, um desejo por transparência: não é raro encontrar nos dias de hoje prédios com elevadores aparentes, fachadas de vidro, cortinas translúcidas. A ideia é dar a ver ao usuário a construção da edificação, os materiais usados, a estrutura por detrás do projeto. Há um movimento no sentido de escancarar o processo, dando a ver vazamentos, emendas, rupturas, desvios, vigas de sustentação. A metáfora com a arquitetura serve para ilustrar as obras artísticas que me interessam, que são justamente aquelas que transparecem para o leitor o processo de construção. A tese tem três capítulos: o primeiro dedicado ao romance O inventário das coisas ausentes (2014), da escritora brasileira Carola Saavedra; o segundo dedicado a exposição pictórica In Situ: Carta de Intenções, do artista plástico português Rui Macedo (2014); e o terceiro dedicado as crônicas do escritor português António Lobo Antunes (1984-2016).
FP: Você acha que chegará o dia que a academia se aproximará do mercado de trabalho? Esta relação poderá se estreitar ou é impossível? Por quê?
RF: Acho que a academia (ou pelo menos uma parte dela), tem se aproximado do mercado de trabalho. Há universidades mais tradicionais e caretas, mas há também universidades que pretendem reduzir essas barreiras, nisso acho a PUC-Rio exemplar. Tenho colegas que trabalham nas mais diversas áreas: na música, no teatro, no cinema, e se aproveitam dos seus respectivos ofícios para alimentarem os seus trabalhos acadêmicos. Criou-se um entre-lugar muito interessante entre prática e teoria no departamento. Acho louvável um professor universitário, como o Fred Coelho, por exemplo, ter uma coluna em um jornal de grande circulação. O conhecimento precisa atravessar os muros da universidade, as vezes parece que estamos sempre falando para as mesmas dez pessoas. A revista Escrita, por exemplo, dedicada a publicações acadêmicas, tem em todos os números uma seção dedicada à produção artística (poesias, crônicas, contos, trechos de romances). Tenho uma narrativa breve publicada por lá, inclusive (Confissões de um púcaro búlgaro). Gosto quando a academia consegue atravessar o espaço supostamente delimitado a ela.
*Fabiane Pereira é jornalista, pós graduada em “Jornalismo Cultural” e “Formação do Escritor”, mestranda em “Comunicação, Cultura e Tecnologia da Informação” no Instituto Universitário de Lisboa. Curadora do projeto literário “Som & Pausa” e ainda toca vários outros projetos pela sua empresa, a Valentina Comunicação, especializada em projetos musicais e literários. Foi apresentadora do programa Faro MPB na MPB FM por quatro anos e atualmente comanda o boletim “Faro Pelo Mundo” na emissora de rádio carioca.
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