*Por Rafael Moura
Dança e poesia se encontram para promover uma ode à artesania no livro-performance Decopulagem, da bailarina e escritora Aline Bernardi. O projeto desdobra-se em um livro de tiragem artesanal com 33 prosas poéticas e em um solo de dança, que se entrelaçam por meio da poética inovadora criada pela artista em que a palavra não surge de um comando do cérebro para as mãos, mas sim de todo o corpo em movimento ou em ‘estado de dança’. O solo será apresentado hoje a amanhã (25 e 26), às 16 horas, em performance itinerante pelo Parque das Ruínas, em Santa Teresa. Logo após, Aline fará o lançamento do livro, na galeria do centro cultural. “O Decopulagem surgiu de um sonho que tive com um pássaro nascendo de dentro do mar enquanto uma árvore brotava das nuvens. Esse sonho aconteceu há sete anos, numa viagem que fiz ao Recife, minha segunda cidade natal”, ressalta a bailarina.
Aline nos conta que a arte é um processo de resistência social. “Escolher se dedicar à arte é uma escolha poética e política. Um posicionamento diante do mundo. Eu me exercito como gestora dos processos produtivos das minhas criações, além disso a arte me oferece muitas oportunidades, em especial a de aprender a inventar e criar autonomias. É uma escolha de vida que agrega responsabilidade à ludicidade, e isso é muito revigorante”, ressalta. “É um caminho para praticar o encontro com a coletividade, exercitando a cooperação, a generosidade, a criatividade, a alegria, o entusiasmo, e isso promove o surgimento e a troca de recursos para a realização dos processos de criação”, afirma.
Para a criadora, a arte também alimenta os processos de autoconhecimento e por isso, está de mãos dadas com a educação. Ela comentou que na época do sonho que deu origem a esse projeto estava finalizando a graduação em dança na Faculdade Angel Vianna e escrevendo sobre as relações do corpo e da palavra em processos de criação artística. “A palavra sempre foi para mim uma motivação de criação de poéticas e sempre fez parte das minhas criações em dança. Algumas perguntas insistem em me acompanhar: o que a bailarina pensa enquanto dança? É possível escrever dançando? Qual a implicação do corpo durante o ato de escrever? De que maneira ‘razão’ e ‘sensibilidade’ dialogam na construção do corpo-pensamento? Essas e tantas outras perguntas povoam o meu corpo e me conduziram à concepção do livro performance Decopulagem que é uma jornada de andarilhagens, alfaiatarias e artesanias”, explica Aline.
A escrita em estado de dança é a base dos percursos metodológicos criados pela bailarina e dela nascem diversas camadas para a criação de Decopulagem, seja na elaboração de um livro-obra em edição especial, com montagem artesanal, capa e contracapa de cerâmica e desenhos exclusivos do artista Kammal João; seja nas composições coreográfica e dramatúrgica do solo a partir das prosas compostas por Aline, que convocam simultaneamente espectador e leitor a uma relação com o tempo que questiona o hiperestímulo tecnológico que marca a sociedade contemporânea. “Criamos uma dramaturgia adaptável aos diferentes espaços e porosa aos muitos suportes, que se transforma e cria texturas a partir da poética do universo Decopulagem. Todo esse período de investigação me ensinou a acolher os ciclos de morte do processo, aprender a lidar com as transformações do trabalho. É preciso que saibamos abrir essa escuta na vida – convoca a artista, que iniciou o processo criativo há seis anos”, pontua a dançarina.
Aline nos conta que o nome Decopulagem é um neologismo que surgiu em um dia em que ela acordou com a ideia pulsando no corpo-pensamento. “Já havia iniciado experimentos da escrita dançada, de alguns caminhos para aproximar a palavra de uma fisicalidade, de um ‘estado de dança’. Decopulagem é uma brincadeira com a palavra ‘cópula’ , que remete à nascimento, e as palavras ‘decolar’ e ‘decupar'”. Segunda a bailarina a ideia é permitir o nascimento das coisas, “estamos a todo momento fazendo escolhas, para experimentar nosso primeiro sopro, e a vertigem de nossos vôos, temos que cortar o cordão umbilical. Ciclos de nascimentos e mortes constantes”, define a escritora.
O projeto é um entrelaçamento de pessoas e lugares e é conduzido por três títeres: a andarilha, a alfaiate e a artesã. A Andarilha é aquela que dialoga com diferentes lugares percorridos – grandes metrópoles, cidades pequenas, cidades interioranas, locais de natureza – desde uma grande capital europeia a uma ecovila no interior de Minas Gerais. A artesã interage com artistas, as obras e as ideias que marcam/marcaram a minha trajetória como performer e bailarina. A alfaiate pratica uma interlocução com a maternidade, tanto na geração de uma vida dentro de um ventre materno, como na gestação dos processos artísticos. “Um processo de criação, a meu ver, precisa sustentar seus ciclos de vida-morte-vida. Escutar o momento de gerar intensidades e os outros momentos de silenciamentos e decantações.
A poética para nascer exige uma relação rigorosa com a temporalidade das coisas, das matérias-primas que escolhemos trabalhar em cada criação. E esse é sempre um convite aos aprendizados”, conta a bailarina, e completa. “E esse é também um dos fatores que mais me motivam à dedicação do processo de criação: não saber onde a criação artística vai desembocar, mas seguir caminhando e persistindo com rigor, disciplina e amor na lapidação das perguntas que me impulsionam. De repente, algo emerge, algo nasce, e isso é fruto de muita transpiração, muito suor, de muita insistência para deixar o sonho ganhar sua estrutura, seu contorno e seu sopro”, pontua.
Gestos, movimentos e palavras se afetam mutuamente, criando múltiplos ritmos de escrita, construções textuais imprevisíveis e instigantes imagens poéticas. Componentes essenciais na cena, a trilha sonora original, o figurino e adereços evocam o esmero e a celebração aos processos artesanais que marcam o projeto. “O figurino propõe modulações de dobras feito um origami, sendo uma peça bidimensional que ganha tridimensionalidade quando posta no corpo em movimento; e os objetos de cena ressaltam retalhos e colagens colhidos ao longo do processo de criação, ambos assinados por Clarice Rito. A trilha sonora original foi composta minuciosamente pelo diretor musical Renato Frazão, evocando um Brasil profundo e recheado de particularidades rítmicas e melódicas.
No fim do nosso papo, a bailarina ressalta a sua vocação para a dança e as artes. “Acredito que eu não tenha me descoberto bailarina. Eu vou sendo o que meu corpo pede para ser. E o corpo é algo muito mutável, curioso, múltiplo e extremamente vibrátil. Eu sou uma pessoa desejosa de trabalhar essa capacidade vibrátil do corpo e a dança é uma linguagem que me convida a esse trabalho, que me desafia, que me provoca. Sou fascinada pela força da vida de uma célula, e um corpo é uma dança infinita dessas muitas células que nos constituem. Isso me fascina e me faz querer investigar a dança”, salienta a performer. “Ah! Há também um momento daqueles que me fizeram perceber a inteligência do corpo ao se movimentar: foi quando comecei a andar à cavalo. Digo mesmo que aprendi a dançar com os cavalos, foi meu primeiro parceiro de dança, ali, cavalgando nos pastos, me emocionei com a potência vibrátil do corpo em relação com o ambiente e com outro corpo”.
O diretor do solo, Guilherme Frederico ressalta a riqueza dessa apresentação. “Decopulagem é como uma janela que se abre, ou uma rachadura que surge em algum muro. Algo que nos leva a uma outra relação com o tempo e o espaço em que vivemos tão intensamente mergulhados que na maioria das vezes nem percebemos de verdade onde estamos, com quem estamos e o que estamos fazendo”.
SERVIÇO
Performance Decopulagem e lançamento do livro homônimo
25 e 26 de maio, às 16 horas.
Entrada Gratuita
Classificação: Livre
Centro Cultural Municipal Parque das Ruínas – R. Murtinho Nobre, 169 – Santa Teresa
Telefones: 21 2215-0621 | 21 2224-3922
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