Elisa Lucinda tem um 2022 vitorioso nas artes, segue firme na luta antirracista e é esperançosa com o novo governo


Intensa e delicada como a poesia alinhavada e contundente como aquela que já foi ao papel, Elisa Lucinda celebra um ano de conquistas. Fala dos longas-metragens lançados este ano, “O Papai é Pop” e “O Pai da Rita” e “Nas ondas da fé”, que tem dias contados pra entrar em circuito; além de dar voz à personagem na bem-sucedida animação brasileira “Tromba trem”. Começou a gravação da novela global, “Vai na fé”, a ter os núcleos principais todos compostos por atores negros – além de estar no inédito momento histórico no qual a maior parte das tramas da TV Globo contará com atores não-brancos em papéis protagonistas. Lucinda faz análises do papel do negro na arte e na sociedade brasileira, coloca-se na luta antirracista, e analisa mercado editoral. Autora de 19 livros, o mais recente, “Quem me leva para passear” foi finalista no Prêmio Jabuti 2022. “Eu gosto de viver de cultura, tenho orgulho de ser uma artista. Me sinto partícipe, cidadã construtora de um país”, frisa

A pessoa que escolhe – ou é escolhida – ter a palavra como profissão tem como prerrogativa uma vida de intensidade. E sentir e expressar indicam movimento/sentimento. Este mover-enquanto-sente poderia traduzir o 2022 de Elisa Lucinda. Atriz, poeta, autora, artista, voz ativa na luta antirracista – com uma trajetória profissional de 35 anos -, ela teve um ano rico de artes e de palavras. Elisa iniciou as gravações de “Vai na Fé”, próxima novela das 19h, escrita por Rosane Svartman, na qual vive Marlene, mãe da protagonista, Sol (Sheron Menezzes); está, com destaque, nos longas “O Pai da Rita” e “Papai é Pop“, que estrearam com mega sucesso e, no próximo mês, poderá ser vista também nas telonas em “Nas Ondas da Fé”, filme de Felipe Joffily. Mais? Marcou com sua chancela a voz original da Rainha Cupim na animação nacional “Tromba trem”, de Zé Brandão. Ela é autora de 19 livros, o mais recente, “Quem me leva para passear” – segundo da coleção “O Pensamento de Edite” -, foi finalista no Prêmio Jabuti 2022, permitindo ao leitor conhecer o pensamento de Edite, que em seu monólogo interior com amor e humor nos conduz a aprimorar o olhar para a vida. Geradora de delicadezas e geratriz de poesia, Elisa relata que o poema, escrito e/ou observado tem fundamental papel em sua vida. Se não há um texto de literatura poética para si em determinado momento, ela cria uma. E vai fundo, no âmago das palavras:

A poesia ajeita a minha agonia, arruma a minha casa existencial. Sempre foi assim: se a poesia que existe escrita não der conta do meu conflito emocional, eu faço uma. Se a poesia não estiver na literatura mundial, que eu preciso como remédio, eu faço uma. Eu tomo remédio controlado pela beleza – Elisa Lucinda

“A importância de a gente ter preto protagonizando o audiovisual é uma questão de honestidade” (Foto: Jonathan Estrella)

POEMA DO SEMELHANTE

Não é comum ver um elenco majoritariamente negro nos cinemas. Quando um filme trata sobre escolas de samba, ainda que estas possuam alto coeficiente afrocentrado, o número é, também, diminuto. Quando o assunto é samba paulistano, facilmente se recaía ao embranquecimento, como se o cancioneiro da terra da garoa fosse restrito a alguns nomes consagrados. Em “O pai da Rita”, filme de Joel Zito Araújo, a história – e o elenco – são pretos. O longa narra a trajetória de Roque e Pudim, músicos, boêmios, e compositores da tradicional escola de samba paulistana Vai-Vai e tem como cenário o bairro do Bixiga. O espaço é um grande reduto negro da capital paulista. E, recentemente, em decorrência da demolição da quadra da escola, foi descoberto ali um sítio arqueológico quilombola erigido às margens do córrego Saracura – cujo afluente foi canalizado no rio Anhangabaú.

Sabedora ou não deste recorte histórico, Elisa, que interpreta Neide, atribui ao encontro com Aílton Graça, que vive Pudim, uma afinidade maior que uma mera parceria profissional, mas a uma ligação oriunda da ancestralidade: ” Eu amo aquele homem. Tenho com ele uma afinidade quilombola ancestral, eu não sei o que é assim como ele também não sabe. Mas nós dois temos um amor imenso que surgiu desse trabalho. A gente já intuía, a gente dizia ‘alguém tem que nos escalar’, e aí o Joel Zito fez isso e a gente faz um casal, a gente tem uma onda. Nós somos malandros parceiros. F** um amor interessantérrimo. E ainda tem no filme a Léa Garcia, o Wilson Rabelo… O branco é o Paulo Betti, que é bom para caramba. O filme é muito, muito interessante”.

Ainda sobre o longa-metragem, que tem como cenário a agremiação alvinegra do Bixiga, a atriz diz ter sido ele “uma delícia de fazer. Um projeto do qual me senti partícipe desde o seu embrião. Foi muito interessante que o Joel Zito fizesse essa ficção. Ele é um sociólogo do cinema, muito matreiro, mineiro, que faz uma sociologia muito discreta, sem bandeiras, sem essas coisas panfletárias. Ele vai ali mostrando um Bixiga que a gente não conhece. O Bixiga preto não é uma invenção dele, é uma verdade. Lá nasce a Vai-Vai. Então, é uma coisa que a gente não sabe, que não está no imaginário. Quando se fala do Bixiga, só se imagina italianos. Só por isso o filme já é “uau”!”

Outro projeto que a artista participou e cujo lançamento foi este ano, foi o filme “O papai é Pop”, filme de Caíto Ortiz, no qual vive a mãe de Lázaro Ramos. Neste longa, Lucinda interpreta Gladys, que vê a dificuldade do seu filho em se tornar pai de primeira viagem e enfrentar uma série de traumas. Elisa reforça novamente a importância de vermos negros protagonistas no audiovisual: “A importância de a gente ter preto com destaque no audiovisual se dá por uma questão de honestidade. É essa a vida brasileira. Nós somos protagonistas. Os pretos trabalham diuturnamente para esse país andar, e é uma coisa muito forte”.

O Brasil precisa desconstruir a ideia do branco como único vencedor. Tem que distribuir esse brinquedo, esse pão, ou nunca haverá paz. E o audiovisual tem um papel fundamental nessa educação – Elisa Lucinda

Como o longa de Ortiz trata, também, sobre a questão da educação no lar, Lucinda se apercebe dos desafios e as possibilidades múltiplas de entendimento sobre as formas de criar uma criança e fazê-la cidadã, diante das possíveis autocobranças maternas. “Eu me dei conta da questão das mães. Tenho ouvido muito isso, de descontruir a maternidade no feminino, e eu acho muito maluco que as mulheres acreditem que o trabalho de criar um filho seja algo  sobre-humano. Não é. Há várias criações, há vários modos. Então é preciso que a gente saiba que tudo passa pela educação”.

Ainda sobre o longa que traz o marido de Taís Araújo em papel protagonista, Elisa é só elogios: “‘Papai é pop’ foi uma delícia. Lázaro Ramos é um ser muito iluminado, fora do normal. É muito difícil escapar da sedução dele. Como pessoa humana, amorosa, linda, acho ele f**. Um homem errante também, normal, de uma sinceridade linda que coloca todo mundo falando a verdade. E foi um presente dos deuses ser mãe dele neste filme. Nós dois batemos também uma bola de mestre, porque a bola rola solta conosco. E quando a bola rola solta, meu bem, Nossa Senhora!… É uma delícia! Aconteceu entre mim e ele e entre mim e Ailton Graça, esse prazer de trabalhar com amigos. E ainda teve o Caíto Ortiz, diretor, que é nosso presente aquariano. Não quero largar o Caíto nunca mais!”.

Eu sou de uma geração que era um preto por elenco. Então é tão bom contracenar com outro preto. É bom brincar com essa bola, estar andando em um campo que a gente lutou para que ele existisse – Elisa Lucinda

Elisa vai estar na novela “Vai na Fé”, da Globo, e no longa “Nas Ondas da Fé” (Foto: Jonathan Estrella)

A CONSTRUÇÃO DE UMA EXISTÊNCIA

Elisa publicou 19 livros e traz a tinta potente em cada página que escreve. Perguntamos se dá para viver de cultura no Brasil, e ela foi assertiva: “Sim, claro que dá para viver de cultura no Brasil. É um país extremamente rico culturalmente e, uma pena, que nesses últimos quatro anos, desde que a Dilma Rousseff saiu, a cultura perdeu a importância no imaginário popular, por causa dos governantes recentes. Essa ignorância campeou, inverteu, achacou nossos heróis, ídolos e referências científicas como Paulo Freire (1921-1997). Isso é muito grave para a História de um país. Você não pode atacar aqueles que o desenvolveram. É muito pesado que tenha acontecido isso, mas a cultura é, sobretudo, sobre nós. Eu me senti muito humilhada, muitas vezes sofrendo. Não nos garantiram nada. Até a Lei Aldir Blanc, ninguém sabia o que fazer com ela”, disse, sobre a Lei de apoio aos artistas que ficaram desamparados de trabalho por conta da pandemia. Lucinda prossegue: “Nós que vivíamos das bilheterias suspendemos nossos shows, nossas apresentações, devolvemos os ingressos e as contas vieram. Eu acho muito importante que a gente reconecte isso”, argumenta.

Eu gosto de viver de cultura, tenho orgulho de ser uma artista. Me sinto partícipe, cidadã construtora de um país. Estou sempre ajudando a construir o Brasil. À minha maneira, com arte-educação que é tão importante e necessária na vida humana. A educação que a arte faz, toca num lugar que faz aquele saber tornar-se inesquecível – Elisa Lucinda

Coincidentemente, os próximos trabalhos da artista  trazem a palavra “fé” no título: Tanto a novela, “Vai na Fé”, da Globo, como o longa “Nas Ondas da Fé”. Diante deste tema, quisemos em saber como Elisa enxerga a Deus. “Deus para mim é uma forma de a gente não se perder da natureza. Saber que tem lua – crescente, minguante, cheia, nova… Que tem as estações, as marés, e nós estamos dentro desse movimento. Somos mamíferos, frutos dessa natureza, precisamos dessa natureza para o nosso sustento. Estamos envolvidos com ar, o fogo, a terra, a água, e para mim isso é Deus. Não existe nada, nada, que me lembre mais Deus que uma borboleta que voa, um mar que não para de bater, o vento que ninguém sabe onde ele estava quando ele vem, a chuva… O que é isso, como isso tudo existe? Quando eu bebo uma água de coco, eu penso: ‘É isso! O milagre é existir’. A existência é uma prova do milagre”.

Haver a vida… Esta é a prova mais perfeita da existência de Deus. Isso para mim é Deus. Por isso que eu gosto de entender que Deus não tem religião nenhuma, que o sagrado é uma dimensão do homem e ele se entende com ele bem entender com essa sua dimensão. Isso é da nossa liberdade, é íntimo, ninguém pode mandar nisso. Ninguém pode dizer que uma religião é a certa e a outra errada. Ninguém tem essa capacidade, nem Deus diria – Elisa Lucinda

O livro mais recente da autora, “Quem me leva para passear”, foi finalista no Prêmio Jabuti 2022, e permitiu ao leitor conhecer o pensamento de Edite – personagem principal da publicação – que em seu monólogo interior nos conduz a aprimorar o olhar para a vida, com amor e humor. Lucinda fala como lidou com a indicação: “Fiquei toda boba. Envaidecida, porque eu escrevi muito despretensiosamente, com cuidado, mas de forma despretensiosa. Escrevo uma literatura que estava ali saindo do meu peito com facilidade. Foi no período inicial da pandemia.(…) Comecei a fazer o livro como alguém que topa um passeio mesmo, deixando o pensamento levar a gente pela rua. E aí foi acontecendo uma escrita do que estava vivendo, transformando, e achando essa personagem. Eu adorei fazer e fiquei muito feliz que, entre 4.600 escritores que foram lidos, este livro ficou entre os 10. Isto para mim é um agrado, por terem entendido a onda da Edite”.

Tem um lugar para o bordado, porque a literatura é um tear – Elisa Lucinda

“Escrevo uma literatura que estava ali saindo do meu peito com facilidade” (Foto: Jonathan Estrella)

Machado de Assis (1839-1908), romancista, foi embranquecido pela História. Ivani Ribeiro (1922-1995), teledramaturga, também. Chiquinha Gonzaga (1845-1935), musicista, idem. A estes negros foi dada uma máscara branca, de modo que alguns teóricos da causa afro sinalizam que esta foi uma forma de fazê-las mais bem aceitas pela branquitude. Perguntamos à atriz o que ela achava do recente resgate à identidade étnica e realista dessas personalidades. Segundo Elisa, trata-se de algo “muito curativo para o Brasil, que tem uma doença. Há uma parte do nosso ‘corpo-país’ que não é conhecida pelo seu dono. O brasileiro não se reconhece preto, indígena, não se sente ofendido quando desmatam. Ele acha que o país não é o quintal dele. Isso é fruto de uma educação, de uma cultura colonialista, entregacionista. Uma espécie de ‘podem levar, isso não importa, é de quem conquistou’. E o Brasil não sabe que Machado de Assis era preto. Esta ficha caiu agora, praticamente. É tão verdadeiro esse fato, que demorou mais de um século, desde a fundação da Academia Brasileira de Letras, para ela ter um presidente negro, Domício Proença Filho, nos anos de 2016 e 2017. Entre Domício e Machado, 119 anos se passaram. Olha o que é isso. É muito sério! Então, eu acho que resgatar a negritude de quem a história embranqueceu é no mínimo um ato de honestidade”.

Ainda nesta toada, quando Carolina Maria de Jesus (1914-1977), escreveu “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, durante anos foi considerada pela intelligentsia branca como pouco formal e acadêmica, em razão de sua escrita ser pouco afeita à norma culta da língua. Tanto que os primeiros editores de seu livro tentaram “corrigir” sua linguagem. Até que, mais tarde, a autora foi reconhecida como uma das mais importantes escritoras negras do Brasil. Carolina propôs uma reflexão sobre as questões que sempre perpassaram o cotidiano dos invisibilizados, particularmente negros e pobres. Qual o paralelo que podemos fazer entre Carolina, enquanto autora pobre e preta, porém com a ótica da vivência social dos moradores de comunidades carentes, e uma pessoa que vive em regiões mais abastadas? “A linguagem de Carolina Maria de Jesus em ‘Quarto de Despejo’ foi muito mal-recebida, porque o preconceito define tudo. Um adolescente com maconha na Zona Sul, uma área nobre, é apenas um rapaz fazendo ‘coisinhas irresponsáveis de adolescente’. Mas esse menino, na mesma idade, se for da favela, ele é preso e, às vezes, morto. Uma falta de educação do rico é ‘excentricidade’. Do pobre, é falta de educação, de classe. Então esse paralelo está presente o tempo inteiro”.

O racismo é uma sucessão de gafes. Perguntar para uma pessoa que está convidada numa festa, se ela trabalha ali, é uma gafe imensa. É algo feio. Eu acho surreal estar falando isso aqui, mas é verdade. Até hoje, ao referirem-se à autora dizem: ‘a catadora de papel’ Carolina Maria de Jesus… Ela era uma catadora de papel, mas se tornou escritora. Qual a dificuldade de dizer: ‘escritora, que foi catadora’. Ninguém chama o Silvio Santos de camelô, porque há muitos anos ele não é mais um camelô. Ele é dono de uma rede de TV – Elisa Lucinda

“Eu sou uma ativista da vida humana” (Foto: Jonathan Estrella)

E como o mercado editorial enxerga a autora negra hoje? “O meio é muito racista. Ainda que tenha melhorado muito nos últimos tempos. Não teve muita saída. Foi pegando mal também para o segmento dizer-se ‘intelectual’. Se ele é ‘intelectual’ não pode ser racista, porque é uma burrice. Todo mundo foi correr atrás de ter o seu departamento étnico, de diversidade. O mercado teve que procurar, porque não tem Ailton Krenak – líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta, escritor – para todo mundo. Não tem Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro e Elisa Lucinda para todo mundo. E aí a Editora Malê – voltada para a literatura afro-brasileira com o objetivo de colaborar com a ampliação da diversidade do mercado nacional – está com um quilombo lindo. Parabéns, Editora Malê! Quatro finalistas no Prêmio Jabuti e dois premiados. Entre eles, Eliana Alves Cruz – autora de “A vestida: contos” -, que é um escândalo, veio para ficar, escrever seu nome na literatura brasileira. Então, tem uma grandeza aí, um avanço do mercado, por vários motivos. O povo negro foi para as universidades, é leitor, exigente e quer se ver na literatura que ele quer consumir. Tudo isso determina o mercado. Eu, por exemplo, não encalho. Minha poesia não encalha, meus livros são sucessivas edições. E é assim, vamos descolonizar a mente e o mercado”.

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Elisa Lucinda é a voz original da Rainha Cupim na animação infantil brasileiríssima “Tromba trem”, de Zé Brandão. Inspirada na série homônima, ela traz uma aventura inédita do elefante Gajah e seus amigos, além de novos personagens e uma trilha sonora original. Lançada em 2010, a série já foi exibida em mais de 20 países, e no Brasil, já marcou presença na TV a cabo (Cartoon), TV aberta (TV Brasil) e no streaming (Netflix). “Criei a voz da Rainha Cupim com a orientação do diretor. Foi lindo, meu Deus, que personagem maravilhosa. Ela é antipática, e equivocada, mas é adorável, adorável. Não sei se age como uma vilã, como uma heroína vilã, que adora o poder. Ela acha que houve um grande engano, que os cupins são os mais evoluídos do mundo e que um dia a nave mãe vem buscar, que eles estão no planeta errado. Adoro! Acho de uma inteligência, um filme brasileiro, uma animação brasileira. Prestem atenção na valente animação nacional. Linda, criativa. Parabéns, Zé Brandão”. Este último também é produtor do cartum “Irmão do Jorel“.

“Eu sou filha de uma cantora, de uma professora de ioga, uma pianista, uma violonista. Olha o ventre do qual eu vim” (Foto: Jonathan Estrella)

O SABER VIVER O REAL

Plenamente inserida dentro de uma realidade tecnológica, que muitas vezes substitui o tempo real pela conversa no digital, como atrair a geração Z para a leitura? “Essa geração Z deve ser atraída pela vida. É a vida que vai fazer sucesso com a Geração Z. São muito pouco tri dimensionados, são criados pela tela, a tela, a tela. Ela não alcança, não pega. Você acaba ficando tardio no pulsar da vida real. Essa doença de querer ser perfeito, do filtro. Na Áustria, você é obrigado a dizer, em cada propaganda, que está usando filtro. Cada pessoa que postar uma foto tem que dizer se tem filtro, porque os adolescentes estão querendo ser iguais às pessoas com filtro. É igual ao dente. Tem um branco de dente que nunca existiu que é o ultra branco. Minha dentista falou que é um branco que amedronta. Ele grita mais que tudo no rosto e os dentes não são assim. Um dente não pode gritar mais que tudo no rosto, parece coisa de vampiro. Que protagonismo é esse? Isso é coisa da loucura de ser a imagem que inventaram. Isso é a perdição do ser humano. Nós temos que encontrar um jeito de pulsar. Porque a vida, essa vida que pulsa mesmo, é inédita. Essa que a gente não segura na mão, não controla. Ela que é o babado. E é ela que a literatura tem que trazer. A literatura tem que avançar nas suas mídias de modo a entregar o que tem ali, a fazer uma entrega. Olha isso aqui, olha o que tem aqui dentro”.

Ela continua: “Se o cara pensar que “O Senhor dos Anéis“, as próprias séries, são inspiradas em livros… O roteiro é a literatura anterior ao audiovisual. Primeiro alguém escreveu para aquilo ser filmado. Não tem jeito, continua sendo assim. Então, as pessoas precisam ligar o nome à pessoa. Não adianta dizer: ‘Não gosto de literatura, quero ver série’. Mas isso é por que você gosta de literatura, razão pela qual você gosta da série. Com a vantagem da liberdade. Eu acho que a gente tem que aprimorar o gosto pela liberdade. Porque isto é o que faz você gostar da liberdade de criar a sua “Gabriela” [personagem de Jorge Amado]. De criar o seu Gladiador [personagem do filme dos anos 2000] . Meu Gladiador pode ser preto, o dele pode ser louro. Essa capacidade de imaginar é uma autonomia nossa. Por isso que é a educação pela autonomia, o conhecimento da própria liberdade. Toda a dor do ser humano, todo o atrapalhamento do ser humano, é fruto da inexperiência com a liberdade. É sempre tão proibida que ele não sabe ser livre, faz besteira, tem culpa de ser. É complicado”.

Em certa ocasião, Elisa disse ser “filha de um feminismo que quis usar calça comprida”. Pedimos para nos contar esta história: “Minha mãe tinha um posicionamento feminista. Por exemplo, quando se casou com meu pai, ela já era secretária, datilografava, tinha terminado o segundo grau [atual Ensino Médio]. Para minha mãe era importante trabalhar. Ela era feminista de necessidade e era importante, do ponto de vista da mulher, que ela sonhasse mais alto. Ela era inteligente, cantava, era uma artista. Eu sou filha de uma cantora, de uma professora de ioga, uma pianista, uma violonista. Olha o ventre do qual eu vim! Então, eu me lembro disso, papai e os homens da época não queriam que as suas mulheres usassem calça comprida. Não era uma questão de usar na frente dele, era de ter permissão para usar na vida. Era considerado roupa de homem. Para você ver como a coisa cresceu e como as pessoas de hoje não imaginam com que foi essa luta. Houve uma luta, minha mãe foi uma feminista dessa luta e eu sou filha dela, com muito orgulho”, diz.

Eu sou uma ativista da vida humana, dos direitos das mulheres, dos direitos dos pretos, dos direitos dos LGBTQIA+, dos direitos dos nordestinos, dos pobres, dos direitos dos favelados, dos rappers, dos funkeiros, dos direitos de quem pensa diferente, sabe? O direito da arte, dos artistas. Eu sou uma ativista. Das crianças, do direito à vida e ao respeito – Elisa Lucinda

“O Espírito Santo é pai da minha poesia, o capixabismo, meu sotaque” (Foto: Jonathan Estrella)

SONHO NOVO, VELHO SONHO, NOVO SONHO

Diante da possibilidade de um novo Governo, de uma renovação nos quadros políticos e culturais, como essa atriz-poeta-escritora-cantora vislumbra o cenário que ocupará o novo Governo e a Cultura? Lucinda é enfática: “Simplesmente o Brasil vai ser governado pelo maior líder mundial da atualidade. Eu vislumbro o melhor cenário. Enxergo uma vida republicana, de democracia. Viemos de um inferno, de um pesadelo atroz… Ver o estrago na Fundação Palmares, ver o Governo colocando o nosso povo contra seus artistas. Os artistas que trabalharam com cólica, com o filho doente. Os que não se aposentam e trabalham até o fim. A gente não merecia descaso e violência. Plantaram a dúvida em cima de todo artista, como se todos nós fôssemos ladrões. Isso foi muito violento para todos nós. Na pandemia, fomos os primeiros a parar. No entanto, não houve nenhum compromisso do Governo até que chegasse a Lei Aldir Blanc. Nesse período ficamos às moscas. Tudo isso é um preço emocional que não vai estar em nenhuma estatística”. Eu vejo no novo Governo a reparação”, frisa.

Agora nós teremos um governo com mulheres, com pretos, de um cara que não consegue governar sem que os pobres estejam incluídos. E estou vivendo uma utopia, trabalhei muito para que essa eleição tivesse esse desfecho e por isso que a roupa da posse já está pronta – Elisa Lucinda

Nascida em Cariacica, Região Metropolitana de Vitória (ES), a atriz não abandona suas origens e referenciais capixabas. Para ela, a região é sinônimo de pertencimento, de raiz, de origem. Guarda em suas memórias afetivas “O gosto do pastel e do caldo de cana Lira, na escadaria Maria Ortiz. O coentro, a panela de barro, a banana da terra frita… O Espírito Santo é pai da minha poesia, o capixabismo, meu sotaque. O coentro temperando tudo, inclusive o feijão, é capixaba. O mar sempre por perto, um rio passando. Minha alma é capixaba, rosa e azul, tal qual a bandeira do estado. Outro dia, eu fiquei emocionada, porque comprei um arco rosa e azul. E acho muito lindo aquele lugar e ele mora em mim, como se meu coração fosse uma panela de barro”, finaliza, emocionada.