Depois de ganhar Troféu Raça Negra por ‘Vai na Fé’, Elisa Lucinda reflete sobre potência como mulher preta e poetisa


Elisa Lucinda ainda colhe os louros pela participação em “Vai na Fé” e foi indicada ao Troféu Raça Negra pelo papel como a matriarca Marlene. Ao mesmo tempo, a atuação dela no reprise de “Mulheres Apaixonadas” chamou a atenção dos espectadores. A artista também iluminou a faceta como escritora. “A minha palavra é um encontro. O meu leitor acredita que tem muita intimidade comigo e, de fato, tem. Porque ele leu o que escorre de mim. A literatura escorre de mim. A escrita é o meu grito, o meu choro, o meu inconformismo, o meu amor, a minha saudade e o meu prazer. Tudo de mim está ali”.

A escritora e atriz Elisa Lucinda se coloca como uma artista militante na luta antirracista

*por Luísa Giraldo

A atriz Elisa Lucinda se destaca como uma das principais figuras simbólicas na luta antirracista no Brasil. Um reflexo da atuação ativa e de seus posicionamentos é a homenagem que a artista recebeu pelo trabalho na novela “Vai na Fé”. Não é a primeira vez que Elisa é homenageada pelo Troféu Raça Negra. A categoria de “Melhor Atriz”, conquistada por ela na edição deste ano, implica uma representação coesa, com dignidade e maestria da população negra e por melhorias das condições de vida de pessoas pretas no país. Emocionada diante de tantas possibilidades no mundo cultural, a artista reflete sobre sua potência como poetisa, a influência política como mulher negra e artista a relação que estabelece com o próprio corpo e as palavras.

Elisa explica que escritores e escritoras desejam se conectar com o mundo a partir das palavras. “A minha palavra é um encontro. O meu leitor acredita que tem muita intimidade comigo e, de fato, tem. Porque ele leu o que escorre de mim. A literatura escorre de mim. Nunca falei essa frase, mas nunca disse algo com tanta verdade e que ressoasse tão forte no meu peito. A escrita é o meu grito, o meu choro, o meu inconformismo, o meu amor, a minha saudade e o meu prazer. Tudo de mim está ali”, atesta a estrela.

A minha palavra é um encontro comigo. A literatura escorre de mim — Elisa Lucinda

Nos trabalhos como escritora, Elisa afirma buscar uma “conversa com a humanidade”. Em consonância, acredita que o escritor, sobretudo o poeta, tem seu “coração no mundo”. Entregue a diversos tipos de expressão artística e cultural, a poetisa deseja compartilhar com o mundo as epifanias, o que descobre nas cores e como desvenda as pessoas à sua volta.

A atriz Elisa Lucinda confessa não saber que era de esquerda, ela apenas se achava "uma pessoa boa"

A atriz Elisa Lucinda confessa não saber que era de esquerda, ela apenas se achava “uma pessoa boa” (Foto: Jonathan Estrella)

Tenho muita necessidade de compartilhar tudo. Quase não sei ser feliz sozinha nos sentidos de amor e de coletividade. Essa conversa com o meu tempo, com as pessoas e com as gerações me faz muito feliz. Porque eu sou uma devota e discípula das palavras. Acredito na mágica das palavras. Elas podem fazer revolução, mas não do tipo das guerras sangrentas, mas a revolução pela poesia, feita pelos poetas — Elisa Lucinda.

Ao relembrar da trajetória como escritora, revela ter entrado para a escola de declamação aos 11 anos, quando já havia se apaixonado pela poesia. Assim que começou a rascunhar, a estrela percebeu que teria um caso de amor com a palavra poética. “Encantei e atrai muita gente que não gostava de poesia ou nem de ler com o meu trabalho. Essa iniciação que eu chamo de encantamento não é excesso de vaidade, mas um jeito de dar nome ao amor que eu tenho pela palavra poética. É algo que eu acredito que deveria chegar a todas as pessoas”, pontua a autora de 19 livros, finalista no Prêmio Jabuti 2022 pela obra “Quem me leva para passear”.

Publicado em 2021, o segundo livro da coleção O Pensamento de Edite”, “Quem me leva para passear”, permite que os leitores adentrem à mente da protagonista Edite e mergulhem seus pensamentos íntimos. Elisa propõe um monólogo interior que aprimora o olhar para a vida com amor e o humor. Em uma entrevista ao site, a autora revelou não esperar pela indicação ao prêmio por ter escrito a obra “muito despretensiosamente”.

Posicionamentos políticos

Ciente da relevância que tem com o público jovem pelos trabalhos como Pérola, em “Mulheres Apaixonadas”, de 2003, e Marlene, em “Vai na Fé”, Elisa classifica o contato com múltiplas gerações como prazeroso. Um dos grandes objetivos da carreira da estrela é se conectar com a juventude.

“Um dos meus maiores temores sempre foi não estar no meu tempo. Acho muito triste as pessoas que são retrógradas, atrasadas e medievais depois de tanta coisa bacana que o mundo descobriu e que a gente refletiu, como sociedade. Eu sempre quis que as gerações mais novas me compreendessem e procurei esse ar de renovação. Sou uma pessoa das artes políticas e convocatórias. Sou uma provocadora, mas não no lugar de provocar para irritar, mas para provocar pensamentos”, reflete.

Elisa Lucinda diz acreditar na revolução pela poesia e pela arte

Elisa Lucinda diz acreditar na revolução pela poesia e pela arte (Foto: Jonathan Estrella)

A artista identifica mesclar uma “pegada de humor para tratar da política do dia a dia”, por entender que a melhor forma de passar a mensagem que acredita é de uma forma leve. Em contrapartida, a poetisa afirma que não poderia deixar de abordar tópicos políticos em seus trabalhos por conta da personalidade profundamente inclinada para pautas sociais e coletivas.

Passei muito tempo achando que defender o amor entre pessoas do mesmo sexo e não ter preconceito com o amor de gente velha com gente jovem era o natural. Como vou respeitar uma pessoa me baseando na classe social dela? Respeito qualquer pessoa, de qualquer classe social, independentemente da sua expressão sexual. Achava que fazer isso era apenas ser uma pessoa boa. Só depois, fui entender que defender esses tópicos é ser de esquerda — Elisa Lucinda.

Segundo Elisa, as expressões política e cultural atravessam suas poesias e visões dos personagens que desenvolveu em tramas audiovisuais. A partir desses meios, ela orienta as provocações reflexivas relacionadas às lutas contra o racismo, classismo e machismo estruturais. Orgulhosa das origens e referências de Cariacica, em Vitória, a atriz mescla elementos da cultura capixaba às obras literárias, já que entende que a região é sinônimo de pertencimento, de raiz, de origem.

Relação com o físico

Elisa Lucinda transpõe parte da lógica de acolhimento que tem com as palavras para o corpo. Pouco antes da homenagem pelo Troféu Raça Negra, em 7 de novembro, a atriz publicou uma fotografia nua na praia. O registro compõe um ensaio poético realizado pelo marido dela, Jonathan dos Reis Estrella. Internautas elogiaram a atitude desprendida da atriz de ignorar um inatingível padrão estético imposto socialmente para mulheres maduras.

Atriz Elisa Lucinda não tem medo de se colocar politicamente nas obras literárias

Atriz Elisa Lucinda não tem medo de se colocar politicamente nas obras literárias (Foto: Jonathan Estrella)

“Reconheço o tempo em mim e gosto do que vejo. Quase nunca faço uma postagem assim [nua] porque não é a tônica da minha da minha página. Recentemente, fizemos esse ensaio lindo e eu vi que estava satisfeita do ponto de vista de ser uma mulher bacana, madura e coerente. Não sou mais como eu era no exterior, mas é para frente que se anda. Estou caminhando para um lugar que eu sonhei muito: a velhice”, detalha.

De acordo com a autora, a aparência nunca foi um fator determinante para a família. Pelo contrário, ela foi criada em uma lógica em que “se era bonita pela inteligência”. Até hoje, Elisa carrega como herança a percepção do brilhantismo intelectual como verdadeira beleza.

A artista constata a liberdade como forma de beleza e opta por viver respeitando a sua própria.

A liberdade na qual eu lutei, defendi e conquistei me permite cada vez mais conquistar a liberdade que eu sonhei. Essa liberdade é a coisa mais preciosa para mim, o que eu não negociei aos 20 anos e que não vou abrir mão dela agora. Não vim pelo caminho oficial porque sou uma mulher negra em um país racista. Encontrei uma situação racista em cada esquina da desigualdade racial e criei estratégias para combatê-las. Olho para o meu caminho e realmente me sinto vitoriosa em relação à minha liberdade e àquilo que eu conquistei do meu jeito — Elisa Lucinda

Vai na Fé

Na novela “Vai na Fé”, Elisa Lucinda deu vida à matriarca Marlene da Silva, avó materna da protagonista Sol, interpretada por Sheron Menezzes. O produto audiovisual conta com um elenco de peso, como Renata Sorrah, Emílio Dantas, Carolina Dieckmann e José Loreto. A atriz se mostrou orgulhosa por fazer parte de um projeto que deu tanta visibilidade à pauta antirracista.

A poetisa Elisa Lucinda representa uma personagem negra matriarca na novela "Vai na Fé"

Elisa Lucinda representou uma personagem negra matriarca na novela “Vai na Fé” (Foto: Jonathan Estrella)

“É uma honra participar dessa colheita dos meus, daqueles que vieram antes de mim, do primeiro negro que sonhou em ser livre um dia há não sei quantos anos. Hoje, o elenco negro compõe 80% da novela. Ali aconteceu uma coisa muito séria: a novela foi ousadíssima ao abordar o racismo, o estupro de vulnerável e outros temas às 7 horas da noite. Ela mostrou um abismo social e uma série de discussões que nunca haviam sido abordadas na televisão”, explica a intérprete.

Troféu Raça Negra

Idealizado pela Organização Não Governamental (ONG) Afrobras em 2000, o Troféu Raça Negra premia personalidades com feitos que conversem com os avanços sociais, culturais e políticos de pautas raciais. O evento para as homenagens passou a ser realizado desde 2004.

Elisa Lucinda relembra que recebeu seu primeiro prêmio no ano de 2010, na categoria “Teatro”. “O Raça Negra foi o primeiro festival que eu vivi que fazia um sistema de premiações para pessoas negras. Ele era o único que olhava para a nossa arte e para a nossa luta e dava algum troféu. Eles observavam as nossas peças, os nossos filmes e discos”, recorda com gratidão.

Ao refletir sobre o papel do troféu, a artista conclui que o processo de reconhecimento do trabalho de pessoas pretas no Brasil é lento e falho. A homenageada deste ano esclarece que há falta de patrocínio e de ferramentas para os artistas negros. Ela frisa não ser “mimimi”, mas um drama real de toda classe artística afro-brasileira.