*Por Jeff Lessa
No fim da semana passada, sexta-feira, 10 de janeiro, às 15h08, o cartunista, poeta e artista plástico carioca André Dahmer publicou em sua página no Facebook o seguinte recado: “Após quase 18 anos, deixo de desenhar a série ‘Malvados’. Considero que o formato estava se esgotando. Continuarei publicando outras séries na @folha”. O comunicado, que também foi ao ar no Twitter, gerou 8,2 mil reações, que foram do choro (a maioria, com 4,2 mil votos) à gargalhada (sete), passando por Joinha (3,1 mil), Oohh (760), Amei (79) e Grrr (11). Setecentos e sessenta usuários compartilharam a novidade, que gerou inúmeros agradecimentos dos fãs pelos anos de convivência com os dois seres indefinidos que muitos achavam parecidos com flores e que, por isso, acabaram apelidados de Flores do Mal. Um rapaz chegou a dizer dramaticamente que estava se desligando totalmente da internet.
“Você acha mesmo que isso é notícia?”, pergunta Dahmer quando o repórter informa o motivo do telefonema. “Tenho certeza”. Afinal, não é todo dia que ícones culturais sucumbem a uma morte tão abrupta. Foi assim em dezembro de 1987, quando Angeli matou sua personagem de maior sucesso, a junkie alcoólatra e ninfomaníaca Rê Bordosa, criada apenas três anos antes. Ela morreu infectada pelo vírus tedius matrimonius – fórmula encontrada pelo cartunista para simbolizar a falta de sentido e o infinito tédio da vida contemporânea. De uma hora para outra, Rê Bordosa apenas… explodiu. Na época, Angeli explicou que a personagem havia se tornado uma muleta: “Quando não sabia o que fazer, eu desenhava a Rê Bordosa, pois tinha certeza de que faria sucesso”.
Dahmer se lembra bem dessa morte: “Eu senti bastante quando ele matou a Rê Bordosa. Senti falta dela, foi um baque. O e-mail do Angeli é angeli.matador, justamente porque ele gosta de matar seus personagens”. O caso dele foi mais ou menos parecido: o cartunista carioca acredita que o formato dos “Malvados” se esgotou. “Já tinha mais ou menos um ano que eu não queria mais fazer. Devo ter desenhado umas seis mil tiras, já estava esgotado. Estou velho para trabalhar sem vontade”, explica Dahmer, que vai completar 46 anos em setembro.
Ele decidiu que não haveria tirinha de despedida – e sequer chegou a avisar ao editor da “Ilustrada”, caderno da “Folha de S.Paulo” onde eram publicadas as histórias dos “Malvados”, que também saíam no jornal “O Globo” desde 2008. “Liguei para lá e avisei que ia precisar trocar o título. Que a partir do dia 14 ia se chamar ‘Não Há Nada Acontecendo’. E é verdade, né? Nada acontece no Brasil. Agora não fico preso a uma série, também”, exulta, acrescentando que não sente a menor culpa ou arrependimento. “No budismo existe o conceito da impermanência. As coisas precisam mudar, seguir em frente”.
Os “Malvados” surgiram como uma maneira de experimentar a web. “Em 2001, quase ninguém estava publicando. Foi bem no começo da internet. Comecei a desenhar porque queria aprender a mexer com aquele meio novo e desconhecido. Fiz desenhos simples para poder repetir rapidamente”, conta o artista, que, de lá para cá, recebeu quatro prêmios HQMix, o Oscar dos quadrinhos brasileiros. Ele também se beneficiou com a mudança da visão tradicional em relação aos cartoons, que, já há algumas décadas, vêm sendo encarados como uma forma de arte, e não mais como um trabalho menor. Basta pensar em nomes como Robert Crumb, George Herriman, Keren Katz, Benjamin Marra, John Broadley e Saul Steinberg, entre outros.
Ao longo desses quase 18 anos, esse morador de Botafogo – “Nascido, criado e que pretende morrer no bairro” – manteve o estilo ácido e sarcástico em relação às idiossincrasias sociais e políticas do país. Nos últimos tempos, a falta de empatia tornou-se tema recorrente, bem como a intolerância e a violência no cotidiano. A guinada do mundo para a direita no espectro político também forneceu material para novas piadas (amargas, sempre). Apesar do ceticismo, Dahmer garante que nunca sofreu qualquer tipo de censura. “Já houve caso de algum leitor reclamar. O editor encaminha a carta para eu tomar conhecimento e para por aí. Também já fui citado pelo ombudsman da ‘Folha’, mas jamais me disseram que não posso fazer isso ou aquilo.
O (cartunista gaúcho) Adão Iturrusgarai desenha uns pênis enormes e ninguém reclama, ele tem liberdade total”, comenta, acrescentando que, para produzir cartoons diários, é importante se manter muito bem informado. “E, para isso, infelizmente ainda tenho de recorrer ao Twitter, que se tornou um ambiente extremamente tóxico e desagradável”.
É justamente com a informação que o artista conta para educar as duas filhas, Nina, de oito anos, e Lola, de quatro, de uma maneira independente e saudável: “Elas são privilegiadas por estudarem em uma escola progressista onde se fala sobre aquecimento global, gênero, racismo”.
Apesar do tom sarcástico de suas tiras, Dahmer não é pessimista em relação aos rumos do país, muito pelo contrário. Tranquilo, chega a falar num tom suave e paternal que acalma quem escuta seus prognósticos para o futuro.
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