‘Cardiografia do olhar’: projeto assinado por Bruno Alsiv propõe mergulho nas filosofias africanas


O artista pontua que o projeto aborda “uma cosmo-percepção sensorial, onde a imagem dialoga, reverbera e viabiliza um espaço plural. É o descolonizar o olhar e se apoderar de uma perspectiva afrocêntrica. Além das filosofias africanas abordadas, todas as imagens articulam com itans – termo em iorubá para o conjunto de todos os mitos, canções, histórias e outros componentes culturais dos iorubás. A intenção é contar essa narrativa de forma desconstruída”

Bruno Alsiv (Foto: Renata Duarte)

Bruno Alsiv (DuHarte Fotografia)

Todos os holofotes para a múltipla arte de Bruno Alsiv, 36 anos, coreógrafo, bailarino e make up hair dos mais requisitados na moda. Nascido em Aracaju, ele mora no Rio de Janeiro há 10 anos. Deixou a terra natal para estudar dança na capital fluminense e, como nos conta, “acabou descobrindo a maquiagem com umas das possibilidade de dialogar não apenas com a beleza, mas também com a arte”. E venho apresentar a vocês um trabalho lindo que ele começou a desenvolver nestes meses de isolamento social: o projeto batizado “Cardiografia do olhar“.

Antes de entrar em detalhes, eu preciso pontuar que desde o início da pandemia, Bruno mergulhou profundamente em um processo de auto-conhecimento ligado à ancestralidade e iniciou estudos a cerca das filosofias africanas. Paralelamente, ele lançou mão desse processo para um olhar plural em sinergia com a prática da solidariedade ao aderir ao Estilo Solidário, movimento colaborativo idealizado pelo marido, o stylist Anderson Vescah, que viralizou em uma onda de amor na distribuição de quentinhas, kits com roupas limpas e produtos de higiene pessoal para pessoas em vulnerabilidade nas ruas do Rio.

Bom, sigamos em frente. Segundo Bruno Alsiv, “Cardiografia do olhar” é um projeto visual e sensorial, que capta o engajamento dos interlocutores, partindo dos pressupostos filosóficos africano e kemetismo, uma leitura contemporânea da religião do Antigo Egito. Kemet, que significa Terra Negra, era uma das formas que o Egito era chamado na época dos faraós. Kemet vem de km.t, a transliteração de uma sequência de hieróglifos que os antigos egípcios usavam sobre a terra.

“Os antigos egípcios acreditavam que o coração é a morada da consciência. Mas, infelizmente, muitos povos usaram os sentidos e a intuição de seus homens para desumanizar e escravizar os povos africanos. O que vimos foi  um modo universal de pensamento filosófico hegemônico, o Ocidental, que julga a razão como único caminho. Hoje, posso dizer que essa intuição que pulsa não nos engana mais e, sim, nos torna povos potentes e pluversais”, pontua Bruno Alsiv.

O artista acrescenta que o projeto aborda “uma cosmo-percepção sensorial, onde a imagem dialoga, reverbera e viabiliza um espaço plural. “É o descolonizar o olhar e se apoderar de uma perspectiva afrocêntrica. Além das filosofias africanas abordadas, todas as imagens articulam com itans – termo em iorubá para o conjunto de todos os mitos, canções, histórias e outros componentes culturais dos iorubás. A intenção é contar essa narrativa de forma desconstruída”.

Ibejis Foto: Prema Surya

A diáspora africana, ou diáspora negra, fenômeno sociocultural e histórico de de africanos tirados à força do seu continente para fins escravagistas mercantis também é lembrada no projeto de Bruno. “Uma reflexão a partir de uma dimensão antropológica”, frisa.

Bruno coordenou uma série de sessão de fotos e todos os modelos escolhidos são negros. “As fotos foram feitas com o cuidado de passar todo esse conhecimento que adquiri. Como pessoa preta, gay e nordestina, tudo vai contra o tal pensamento ‘Universal’ Ocidental. Achei importante que as pessoas possam entender e conhecer a sua história. E a que eu conto é sobre a história roubada, apagada, invisibilizada, calada por uma perspectiva da branquitude durante séculos. Além das trocas de conhecimentos com as pessoas fotografadas, eu quis propor um trabalho corporal, de gestos significativos para a foto não ser apenas uma imagem engessada ou estática. Desejo que quem as visualize reflita e sinta com seu próprio olhar o reverberar de um grito”, observa o autor do projeto.

As sessões de fotos foram realizadas no Rio de Janeiro e em Aracaju. Na série há fotos assinadas por Leonardo Pequiar sobre o mito do Ajalá  – o oleiro primordial. A parte de Oxalá responsável pela criação física dos homens, por seu corpo, sua cabeça (onde vive Ori) -, que faz a cabeça de três amigos, mas também fala sobre o afeto e o masculino.

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Em seguida, Ensaio Elementos e cabelos geométricos inspirados no grupo étnico Dagara do Oeste da África, onde acreditava-se que o amor e harmonia são uma ação coletiva, regido por um sistema de 5 elementos-chaves que simbolizam sua alma. As fotos foram feitas por Prema Surya, seguindo pelo ensaio que conta um pouco sobre a história das tranças, mas também sobre as ibejis que enganam a morte.

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Em Aracaju foram feitos dois ensaios. O primeiro com três mulheres trans candomblecistas: Quésia Sonza, Marina Bispo e Maluh Andrade, que simbolizaram o mito da criação pelo fotógrafo Mavi.

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O segundo, com a fotógrafa Elisa Lemos  sobre o caso que amor de Oxum e Iansã, mas que dialoga com o Folclore dos Parafusos, em Sergipe, uma alusão à fuga dos escravos das senzalas, sendo o “parafuso” conhecido como a dança dessa fuga. Eles usavam as peças das sinhazinhas e saiam rodopiando e pulando em busca da liberdade e que contribuiu para criar a superstição de almas sem cabeça.

Foto: Elisa Lemos

E, por último, a fotógrafa Renata Duarte dirigiu e ajudou na criação do  conceito do vídeo Orìkí, que é uma saudação à Iemanjá e Exú e no qual Bruno Alsiv protagoniza uma das mais lindas danças. Orìkí é uma experiência visual e sensorial  parte do projeto ‘Cardiografia do Olhar’. “Orìkí é louvor, uma saudação a ancestralidade. Orìkí é poesia que move as águas matripotenciais de Yemanjá e o fogo que reverbera nos caminhos de Exú”.

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