*Por Rafael Moura
O site Heloisa Tolipan acompanhou duas lives: uma do Ilê Kitchen Quilombo Digital, com a chef Andressa Cabral, do Meza Bar, falando sobre ‘Cozinha Ancestral’ e ‘Gastronomia e Espiritualidade’ e outra com o ator e apresentador Sergio Loroza. Ambas recheadas de muito amor, afeto e conhecimento e com o tempero de Dona Carmem Virgínia, nome à frente do Altar Cozinha Ancestral, no Recife (PE).
“Eu nunca quis ser chef, nem cozinheira. Fui escolhida pelos orixás com sete anos de idade”, revela Dona Carmem Virgínia. A recifense com raízes africanas na Nigéria transborda alegria e alto astral. Orgulhosa do seu axé, sua comida e história, a pesquisadora nos conta que sua dança entre colheres e panelas começou cedo. “Minha vida sempre foi dentro da cozinha. Minha avó era merendeira de escola pública e minhas tias são boas cozinheiras”, destaca.
A pernambucana é praticante do candomblé e tem um papel importante no terreiro: uma Iyabassé, com 14 anos já responsável pelo preparo dos alimentos sagrados na religião. “A mãe da cozinha é como se fosse uma chef de cozinha dentro da cozinha de santo”, explica durante a conversa. Ela ainda admite que nunca quis trabalhar cozinhando, sonhava em ser jornalista, e que foi escolhida pelos orixás quando era criança. “Na verdade, eu queria ser jornalista, sou formada em rádio e TV, mas as funções nas cozinhas dentro do terreiro foram tomando muito do meu tempo. A minha comida ficou de um jeito que os pais e mães de santo me chamavam pra cozinhar”. Desde então, Dona Carmem revela que vem se preparando com muito primor para ocupar esse posto de bastante responsabilidade. “Além dos cursos de gastronomia, o conhecimento que adquiri dentro dos terreiros foram uma grande escola nessa minha jornada”.
Carmem Virgínia é um exemplo de representatividade na luta pelos direitos humanos e pelo povo negro. “Os pretos têm que fortalecer os pretos. E, se eu puder, eu vou colocar os holofotes em toda a pretaiada”, frisa. A cozinheira fez sua estreia na TV, em 2017, como jurada do programa ‘Cozinheiros em Ação’, do canal GNT, com apresentação de Thiago Castanho. O convite foi uma sugestão da atriz Taís Araújo, que na época apresentava o programa Superbonita. Em 2019, ela foi parar na TV aberta, no SBT, no reality ‘Família Frente à Frente, comandado por Tiago Abravanel.
Durante toda a conversa, Andressa Cabral ressalta que as pessoas buscam uma comida com mais afeto e histórias e menos afetação. “Quem come precisa perceber que aquele prato é de verdade, que ele tem afeto, carinho, amor. É a ideia da cozinha afetiva que vem dominando o mercado, só que agora além daquele toque de mãe ou avó, os chefs estão trazendo as história por trás desses pratos unindo gastronomia e história”.
Um tema em comum nas duas lives foi o respeito às tradições da cultura e gastronomia ancestral. Afinal cada comida é uma oferenda ao divino. A apresentadora Ana Maria Braga se envolveu em uma polêmica por conta de ‘acarajé de milho’, sendo criticada ao trocar feijão fradinho por milho o bolinho. Além de um prato símbolo da Bahia, vendido em todas as esquinas de Salvador, o acarajé é a comida de um orixá. “É uma oferenda feita para Iansã, no terreiro de candomblé. A hóstia está para a igreja católica assim como o acarajé e o abará estão para as religiões de matriz africana. Todos têm a mesma importância”, explica a chef. O acarajé, na África, na língua iorubá, é chamado de àkàrà, que significa ‘bola de fogo’. E Andressa completa. “Para as religiões de matriz africana, Iansã, deusa dos ventos e das tempestades, buscou o oráculo Ifá, para fazer um alimento para seu marido, Xangó, o orixá da justiça, dos raios, do trovão e do fogo. A orientação foi que, após comer, Xangô deveria falar para seu povo. Quando ele fez isso, labaredas de fogo começaram a sair de sua boca, o mesmo acontecendo com Iansã”.
Já com Sergio Loroza, que se tornou um expert em finger foods e gastronomia de rua viajando RJ e SP provando o melhor da nossa comida em barraquinhas, kombis e tabuleiros, em seu programa ‘Rua pra toda gula’, no canal TLC, recebeu a chef com o ‘Rap das Divindades’, uma composição sua que exalta todas as religiões:
“Javé, Jeová, Jesus Cristo e Jah
Maomé, Buda, Krishna e Oxalá
Zeus e Tupã, Omulú e Alah
Todos os Anjos e Santos
Todos Caboclos e Orixás
Vão Abençoar”, o que foi uma benção para essa conversa.
“Eu sou nascido e criado na igreja católica, ainda que seja negão. O tempo que passei lá, eu descobri coisas pra caramba, principalmente, meu ídolo, Jesus Cristo. Não existe uma religião que não respeite esse ‘religare’, religar ao divino”, explica. E completa. “Se a religião não for para juntar as pessoas, pelo amor de Deus, eu estou fora. Eu acredito em todas as religiões e o respeito irá nos unir sempre. É a única lei nessa Zorra do Loroza”.
“Dona Carmem é minha versão feminina”, brinca Loroza. “A gente tem que se meter com gente que compra a nossa briga. Sou macumbeira, gorda, preta, eu não aturo gente preconceituosa no meu estabelecimento”, conta Dona Carmem. E acrescenta: “Eu sei que você cozinha bem, que gosta de comida, que tem um cachaça maravilhosa que eu já provei, Do Loroza. Precisamos reunir a negraiada toda e dizer que somos nós que estamos no comando”, diz a chef.
O cantor é nascido e criado no bairro de Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro e já a cozinheira é de Santo Amaro das Salinas, uma comunidade de Pernambuco. “Eu nem pensava em ter essa responsabilidade social, que vem junto com o pacote. Eu só queria subir ao palco e por mais que a gente não queira acabamos levando essa responsabilidade”, conta Loroza.
“É um orgulho ver as pessoas saírem de suas casas, de seus estados para visitarem o meu restaurante e comerem a minha comida, na comunidade de Santo Amaro das Salinas. Eu gosto de sentar à mesa, beber junto, dar risada, etc. O que torna uma experiência única”, conta a empreendedora. O autor Celso Athayde destaca sempre que a oportunidade é o que falta para transformar as comunidades carentes em comunidades potentes. “Se você saiu de lá, olha que potência”, enfatiza o cantor. “Quando a gente ascende na vida, o bacana é a gente investir onde começamos e servir de exemplo para as pessoas, ser esse espelho para os jovens na comunidade. A cozinha muitas vezes foi o lugar que eu achei para chorar (Dona Carmem sofreu um relacionamento abusivo) e eu transformei esse choro em talento para aprimorar minha profissão”, frisa. O Altar está fechado há 125 dias por conta da pandemia mundial do novo coronavírus.
A chef conta que odeia o Sítio do Pica Pau Amarelo, de Monteiro Lobato, pois considera a obra uma reforço ao racismo estrutural no país. “Tia Anastácia fazia comida o dia inteiro e cuidava daquela boneca irritante, além de uma menina insossa e um garoto pedante. E o que Dona Benta fazia? Passava o dia todo sentada naquela cadeira de balanço conta histórias. O sítio é um dos primeiros casos de apropriação cultural, porque Dona Benta se apropriou das receitas de Tia Anastácia, que não sabia ler. Ela escreveu as receitas, botou seu nome e hoje esse ainda é um dos livros mais vendidos do segmento de culinária. E ainda tem um detalhe: a bondosa vovozinha se vestia de linho e Tia Anastácia usava roupas de tecido cru, de saco. É por isso que ando toda brilhosa, maquiada, cheia de joias, de turbante para você ver de longe. Quero ofuscar essas donas bentas e que elas se lasquem”, dispara.
O amor pela comida pauta o restante dessa conversa em que Dona Carmem revela ser fundamental para ela se apaixonar por um sabor, seja em suas andanças pelo Brasil ou como jurada na TV. “O que a pessoa tem dentro dela é crucial para eu poder gostar da comida. É isso que faz eu me emocionar. É como um combustível”. Loroza corrobora com a chef dizendo que “todos os locais que eu visito e como no meu programa, as pessoas falam muito sobre o amor, parece uma propaganda de tempero e isso faz uma grande diferencial na hora de servir o outro”. A chef completa. “A grande intersecção cozinha africana e pernambucana é o uso do dendê, da pimenta, dos temperos. Eu faço uma culinária para todo mundo comer, sem cor nem credo. E tem que gostar de comer para gostar da minha comida. E já deixo claro que não vai ser uma experiência natural. A pessoa não vai se alimentar da minha comida, vai se alimentar da energia da minha comida, do meu axé. Eu tenho orgulho do meu axé”.
Serjão dá um spoiler contando que acaba de ser convidado para interpretar Jesus em uma séria da Netflix. E a chef lembra que teve uma experiência em 2017 como atriz ao interpretar a negra Otília, uma quituteira de mão cheia que comprou a própria liberdade (além de a de várias outras escravas), graças aos dotes culinários que punha à venda em seu tabuleiro, no docudrama ‘1817 — A Revolução Esquecida’, de Tizuka Yamasaki. A produção foi encomendada pela TV Escola para marcar os 200 anos do evento que ficou conhecido como Revolução dos Pobres — movimento que explodiu em Pernambuco em 6 de março de 1817 e queria a independência do Brasil. “Tudo começou quando a Tizuka chegou aqui em Recife e apresentou os personagens pra uma equipe de produtores locais. Quando ela falou sobre a negra Otília, que é a mãe da revolução, todos disseram que a personagem tinha tudo a ver comigo. A diretora esteve no meu restaurante para me convidar a fazer o teste. Eu li o texto e ela pediu para me ver cozinhar. Lá mesmo, na cozinha, ela disse que o papel seria meu”, uma benção.
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