Uma Bahia branca? Além de “Tieta”, veja outras oito novelas ambientadas no estado e que quase não têm negros no elenco


As novelas que têm a Bahia como cenário da trama frequentemente apresentam baixa representatividade negra, destoando da realidade do estado, onde 80,8% da população é preta ou parda. Em produções como ‘”Tieta” (1989) em reprise no ‘Vale a Pena Ver de Novo’, na Globo, “Gabriela” (1975 e 2012), “Porto dos Milagres” (2001), e “Segundo Sol” (2018), o número de atores negros no elenco principal é reduzido. Essa ausência reflete um problema histórico de embranquecimento nas narrativas televisivas, evidenciado também em outras novelas como Pedra Sobre Pedra (1992), O Bem Amado (1973), Renascer (1993) e Verão Vermelho (1970). Críticas sociais e demandas por diversidade têm questionado a fidelidade dessas produções à realidade cultural e racial da Bahia

*por Vitor Antunes

Com o retorno de “Tieta” ao Vale a Pena Ver de Novo, na Globo, um aspecto chama atenção: a novela, ambientada na fictícia cidade de Santana do Agreste, no litoral baiano, quase não apresenta personagens negros. Essa ausência contrasta com a realidade da Bahia, um estado majoritariamente negro. Junto ao Rio de Janeiro, a Bahia é um dos estados com maior proporção de negros e pardos no Brasil. Em 2022, conforme dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), 80,8% da população baiana se autodeclararam pretos ou pardos, o maior percentual entre os estados brasileiros, superando a média nacional (55,9%) e a do Nordeste (73,9%). Desse total, 23,9% eram pretos, 56,9% pardos, 18,0% brancos e 1,2% indígenas, amarelos ou pessoas sem declaração de cor ou raça.

A Bahia lidera entre os estados brasileiros com maior percentual de pessoas pretas, seguida pelo Rio de Janeiro (16,9%) e Maranhão (14,9%). A proporção de brancos na Bahia é de apenas 16,5%. Esse panorama demográfico está distante do que é retratado nas novelas que se passam no estado, onde negros frequentemente são minoria. O site Heloisa Tolipan listou oito produções — sendo nove novelas, já que Gabriela teve duas versões — em que o número de atores negros é reduzido. Com base nos dados do site Teledramaturgia, foram analisados apenas os elencos principais, considerando personagens com papéis relevantes e destacando aqueles fenotipicamente negros ou pardos. Em algumas dessas novelas, um único ator negro representava essa diversidade. Confira os números:

Luciana Braga e Ary Fontoura em cena da novela ‘Tieta’, em 1989. Novela tinha apenas um ator preto/pardo (Foto: Divulgação/Globo)

Tieta (1989): 1 ator, de 48

Na novela Tieta, apenas um ator preto ou pardo integrou o elenco principal: Roberto Bomfim, intérprete de Amintas. Vale destacar que a própria Tieta, de acordo com Jorge Amado, era descrita como uma mulher mestiça, contrastando com a escolha de Betty Faria para o papel, cuja aparência é mais branca. Segundo Amado, a “cabrita” tinha “cabelos negros, crespos, anéis como os dos anjos na igreja do seminário”, conforme a descrição de Ricardo, seu sobrinho, interpretado na novela por Cássio Gabus Mendes.

Ricardo (Cassio G. Mendes) e Tieta (Betty Faria), na novela que voltará no Vale a Pena Ver de Novo (Foto: Reprodução)

Gabriela (1975 e 2012): 3 atores de 34 (1975) e 3 de 68 (2012)

No romance Gabriela, Cravo e Canela, Jorge Amado apresenta a protagonista como “cozinheira, mulata (…) encontrada no mercado dos escravos”. Contudo, na versão de 1975, a personagem foi interpretada por Sônia Braga, de perfil mais caboclo. A escolha ocorreu mesmo em um período em que Zezé Motta já era um nome consolidado no cinema e Vera Manhães, mãe de Camila Pitanga, chegou a ser cogitada para o papel. Inicialmente, Gal Costa foi convidada, mas recusou. Na versão de 2012, Juliana Paes assumiu o papel principal. Em ambas as adaptações, o número de atores negros foi limitado: na primeira, apenas Cosme dos Santos, Maria das Graças e Ilcléia Magalhães; na segunda, Suyane Moreira, Ildi Silva e Heloísa Jorge.

Sônia Braga foi Gabriela, papel que originalmente era para uma “mulata” (Foto: Reprodução)

 

Porto dos Milagres (2001): 6 atores, de 50

Porto dos Milagres, baseada em obras de Jorge Amado, enfrentou críticas por sua baixa representatividade negra, apesar de ser ambientada na Bahia, estado com grande maioria de população preta e parda. No início, a trama também recebeu reações negativas de grupos religiosos por abordar elementos do candomblé e culto a Iemanjá, obrigando os autores a reduzir esse aspecto. Entre os poucos destaques negros estavam Camila Pitanga, Zezé Motta, Aldri D’Anunciação, Taís Araújo, Sérgio Menezes e Roberto Bomfim.

Camila Pitanga em “Porto dos Milagres” (Foto: Divulgação/Globo)

Segundo Sol (2018): 8 atores, de 41

Antes de sua estreia, Segundo Sol foi acusada de “embranquecer” a Bahia, já que os protagonistas apresentados nas chamadas iniciais não incluíam negros. Apesar de Fabrício Boliveira ter destaque na trama, os negros no elenco fixo eram minoria e, em sua maioria, relegados a papéis secundários. Isso motivou críticas de movimentos negros e uma notificação do Ministério Público do Trabalho, que solicitou à emissora maior diversidade racial em suas produções. Entre os oito atores negros estavam Roberto Bomfim, Fabrício Boliveira, Licínio Januário, Cláudia Di Moura, Roberta Rodrigues, Dan Ferreira, Gabriela Moreyra e Dja Martins.

Adriana Esteves em “Segundo Sol” (Foto: Divulgação/Globo)

Pedra Sobre Pedra (1992): 2 atores, de 50

A novela Pedra Sobre Pedra é ambientada na cidade fictícia de Resplendor, na Chapada Diamantina, onde se desenrolam disputas políticas entre as famílias Pontes e Batista. Murilo Pontes estava prestes a se casar com Pilar Farias, por quem Jerônimo, herdeiro dos Batista, também era apaixonado. No dia do casamento, Pilar recusa Murilo no altar ao desconfiar que ele seria o pai do filho que sua melhor amiga, Eliane, esperava. Na trama, apenas dois atores pretos ou pardos integraram um elenco de 50: Antônio Pompeu e Fernando Almeida (1974-2004).

Antonio Pompeo em “Pedra sobre Pedra” (Foto: Divulgação/Globo)

O Bem Amado (1973): 4 atores, de 40

Primeira novela colorida da TV brasileira, O Bem Amado se passa na fictícia Sucupira, governada pelo prefeito Odorico Paraguaçu, um político demagogo e corrupto que ilude a população com suas promessas. A principal meta de sua administração é inaugurar o cemitério local, enfrentando críticas da oposição, liderada pela família Medrado, pelo dentista Lulu Gouveia (Lutero Luiz) e pelo jornalista Neco Pedreira (Carlos Eduardo Dolabella [1937-2003]), editor do jornal A Trombeta. Entre os 40 atores do elenco, quatro eram pretos/pardos: Eliezer Motta, Ruth de Souza (1921–2019), Milton Gonçalves (1933–2022) e Lutero Luiz (1926–1989).

Ruth de Souza e Milton Gonçalves em “O Bem Amado” (Foto: Divulgação/Globo)

Renascer (1993): 4 atores, de 34

Renascer gira em torno de José Inocêncio, um latifundiário cacaueiro que sobrevive a uma emboscada, ganhando a fama de ter o “corpo fechado”. A trama foi um grande sucesso em 1993. Este texto analisa exclusivamente a versão original, pois o remake é contemporâneo e já incorporou debates sobre a inclusão de atores pretos em novelas ambientadas na Bahia. Do elenco principal da versão de 1993, quatro eram pretos: Roberto Bomfim, Cosme dos Santos, Isabel Fillardis e Chica Xavier (1932–2020).

Em Renascer, Maria Luísa Mendonça foi Buba. Uma das 30 atrizes brancas da novela (Foto: Reprodução/Globo)

Verão Vermelho (1970): 2 atores, de 36

Ambientada em Salvador, Verão Vermelho conta a história de Adriana (Dina Sfat [1938-1989]), que se muda para o interior da Bahia e descobre a verdadeira personalidade do marido, Carlos (Jardel Filho [1928-1983]), um homem rude e dominado pela mãe, Jandira (Ida Gomes [1923-2009]), que atormenta a vida da nora. Além disso, Adriana é assediada pelo cunhado, Irineu (Emiliano Queiroz [1936-2024]), um homem cínico e sem escrúpulos. Apesar de ambientada na Bahia, duas atrizes negras compuseram o elenco de 36 atores: Zeni Pereira (1924–2002) e Ruth de Souza (1921–2019).

Ruth de Souza em “Verão Vermelho” (Foto: Divulgação/Globo)