Neusa Borges nega volta às novelas por acidente no carnaval e vê movimento negro atual criticamente: “Modismo”


Aos 66 anos de carreira, 82 de idade, a atriz, após inúmeras novelas de TV foi, recentemente redescoberta pelo cinema e pelo streaming. Nas telonas, ganhou o Kikito por “Mussum, o Films”, que participa também do Festival de Cinema do Rio, e reconciliou-se com Aílton Graça, com quem havia se desentendido em 2005. Na vida, a liberdade de ser o que é. Nesta entrevista especial, a artista fala sobre preconceito racial, sabotagem da gravadora que frustrou seu sonho de ser cantora, e sobre como enxerga o movimento negro atualmente – a seu ver essa valorização da negritude é um modismo. Neusa também relembra sua participação em “Carmem”, novela da Manchete que teve uma Pombagira como protagonista: “A Pombagira me tirou do chão da casa da minha mãe, me deu o lugar que eu morava, passei a  ter uma vida de rainha. Ela me deu joias e dinheiro. Quando eu chegava em casa tinha caixas e caixas de champagne, presentes enviados para a Pombagira”

*por Vítor Antunes

Recentemente, por conta da ruidosa separação de Chico Moedas e Luiza Sonza, a música “Folhetim”, de Chico Buarque voltou a ser tema de discussões na Internet por conta de uma citação incidental na música da cantora gaúcha. Famosa na voz de Gal Costa, a canção foi, inicialmente, gravada por… Neusa Borges, mas foi retirada do catálogo da gravadora, algo que a machuca até hoje. Uma das mais importantes novelas da carreira de Neusa Borges, “Escrava Isaura“, estará de volta no Globoplay a partir do dia 23. Desta novela, Neusa tem boas recordações, especialmente por haver trabalhando com Léa Garcia (1933-2023) e Zeni Pereira (1924-2002), duas figuras icônicas da teledramaturgia e do elenco preto brasileiro: “Léa Garcia, sempre foi tudo na minha vida. Minhas duas filhas foram batizadas por ela”. Sobre voltar às novelas e ao teatro, Neusa descarta. Não por vontade própria, mas ainda reflexo do acidente que sofreu quando caiu do alto de um carro alegórico no desfile da Unidos da Tijuca em 2003: “Ainda tenho muitas complicações. Não posso fazer muita coisa, como ficar muito tempo em pé, tenho que viver sentada. Afinal, eu tenho 22 parafusos e três placas nos ossos, uma prótese na cabeça do fêmur e o cóccix quebrado. Mas, eu tenho que olhar para o céu e agradecer”. 

Com falas de uma sinceridade profunda, Neusa Borges, com quase 66 anos de carreira, diz gostar da profissão, mas renega o deslumbramento de muitos da classe artística: “Eu não tenho esse deslumbre artístico, eu sou muito mais pé no chão e isso vem da maneira com a qual fui criada. Não tenho esse ranço artístico, não vivo o glamour. Não sei se ficam chateados ou não, mas não sou muito chegada a artista, eu não tenho amizade íntima. Para mim, são meus colegas de trabalho e eu os respeito mas não são meus amigos”. Em 2005, Neusa atou em “América”, novela de Glória Perez, na qual foi mãe de Aílton Graça, e nos bastidores, ambos se indispuseram. Em “Mussum – O filmis“, récem-lançado, os atores voltaram a ser mãe e filho e também a ter boas relações, bem como foram, os dois, premiados com um Kikito.

Neusa acredita que essa valorização atual da negritude é passageira: “É moda. Tudo é racismo, é racista. Não pode falar negro, não pode falar preto, não pode falar isso, não pode falar aquilo. É tudo processo. Eu não entro nessa. Não acredito nessas coisas de moda no Brasil. Brasileiro inventa moda e parece que não tem passado”. Orgulhosa de sua etnia, Neusa diz que por esta razão tem mágoa de seu estado natal, Santa Catarina. “Eu não preciso de Santa Catarina porque onde eu vou no Brasil e no exterior eu sou respeitada, a contrário de lá (…). Antigamente, negro não podia entrar em restaurante, nem passar pela calçada, não podia isso, não podia aquilo, não podia nem entrar em clubes”, relembra.

Eu sempre fui pobre, negra e até hoje está difícil de sair do tronco, da chibata. Tiraram a senzala, acabaram com ela, mas a maneira de tratar o negro não mudou. Eu me cuido, mas essa coisa de ‘agora é a nossa vez, agora os negros isso, aquilo’ não me comove. Eu estou com o meu pezinho firme no chão, a mim não vem dar rasteira não. Para mim isso é um modismo. Ao usar black, nos 70’s, fui humilhada, xingada, chamada de ‘crioulinha’,  porca, suja, que parece um bicho’. Eu chegava a chorar – Neusa Borges

A primeira semana de outubro marcou os 36 anos de estreia da novela “Carmem”, da TV Manchete. Polêmica trama de Gloria Perez que trouxe Lucélia Santos no papel protagonista, vivendo uma mulher que fazia um pacto espiritual com uma Pombagira, a novela foi um sucesso no Rio e até hoje é tema de discussões. Neusa deu vida à entidade de matriz afro sem ao menos saber do que se tratava. E inspirada em Fafá de Belém (!) nasceu a personagem. Ainda que temida pelas crianças, Neusa passou a ser associada à mulher-catiço de tal maneira que ganhou jóias, presentes, as pessoas pediam consultas e ela própria passou a enxergar a si como “A Pombagira do Brasil“.

A Pombagira da novela “Carmem”, foi a personagem que mais me fez ganhar dinheiro na minha vida, rios de dinheiro. Eu fazia muitos shows, viajava pelo Brasil. Estava na onda. Foi a melhor época artística da minha vida até hoje. Não sei se me dessem para fazê-la hoje se eu saberia – Neusa Borges

Ainda que tenha vivido a entidade que mais representa o desejo sexual feminino, Neusa hoje diz que não querer casar-se novamente pois não acredita nos homens. “Eu nunca na minha vida acreditei nos homens, por isso que eu casei nove vezes. É melhor viver com uma pessoa como amigo do que como inimigo e eu só vivo o êxtase da lua de mel. Acabou a lua de mel, acabou o casamento. Não vem com essa coisa de marido ser meu melhor amigo não porque eu não vou gozar com meu melhor amigo. Eu gosto do calor da lua de mel”. 

Eu me amo como mulher preta. Eu sempre digo que eu nasci negra, vivo como negra e vou morrer negra. Eu não sou morena, não sou mulata, não sou. Eu me amo tanto que eu até casava comigo – Neusa Borges

Neusa Borges no Festival do Rio com "Mussum, o Films" (Foto: Agnews)

Neusa Borges no Festival do Rio com “Mussum, o Films” (Foto: Agnews)

NÊGA BORGES

“O Grande Otelo (1915-1993) dizia: ‘Isso é coisa da Nêga Borges‘. Ele enchia a boca para falar isso. Otelo era outro que era meu compadre. Eu fui muito ligada, muito chegada nele. Por eu fazer coisas do arco da velha, ele sempre lançava mão dessa expressão”. Diante de tantos talentos, Neusa Borges abriu o verbo e bateu um papo muito sincero e emocionado conosco. Diante de uma conversa sem filtro e muita verdade, ela se lembrou de muitas histórias, inclusive algumas que achava haver esquecido. “São praticamente 66 anos de carreira. É difícil  de lembrar de tudo. O mundo só gira como a uma bola de neve e só vai para a frente e a gente vai esquecendo da gente mesmo, principalmente quando se trata de trabalho”.

Inclusive, se há algo nesses anos de carreira que ela conquistou foram prêmios, algo inversamente proporcional à quantidade de amigos no meio artístico: “É aquela coisa que eu sempre falo e pela qual sou muito criticada: artistas são meus colegas de trabalho. Eu não gosto dessas amizades de ‘oi’ . Artista tem essa mania. Amigo é uma coisa muito diferente de colega. Meus amigos não são artistas. Eu não gosto deste ranço artístico. Se eu não trabalhar eu não como, não vivo, não ajudo a minha família. Ganhar um prêmio me faz feliz, mas eu não posso ir com esse prêmio para o supermercado, para a farmácia, e dizer ‘olha aqui o prêmio que eu ganhei, me vê um quilo de arroz, um quilo de feijão'”, dispara. “Se eu, por exemplo, gravar um texto agora, ao terminá-lo eu dou como missão cumprida e rasgo aquele texto. E de uma maneira que se eu tiver que ir gravar no dia seguinte, eu tenho que decorar de novo. Eu não trago o personagem para a minha casa, eu o risco da memória”.

Deus não me pôs no mundo para ser dentista, advogada, engenheira. Ele me deu essa profissão. E eu acho que tenho que fazer bem feita. Todo mundo acha que quem trabalha na Globo tem sempre obrigação de estar bem, ter casa com piscina, ter não sei quantos carros na garagem, morar bem. A gente não ganha igual. O momento que eu fico mais chateada, aborrecida na minha vida é abrir a minha carteira e não poder nada. Todo mundo acha que por ser artista se é rico. A sociedade quer que a gente viva em um glamour artístico e não tem como – Neusa Borges

Tema debatido hoje em dia, é a subalternização de personagens pretos na televisão. Por anos só eram oferecidos a eles, pesnagens de escravo, de empregado. Neusa diz nunca haver se aborrecido em fazê-los. “Não me afetou em nada. Fiz trabalhos como escrava, empregada ou subalterna e tenho prêmios que eu acho que um artista branco não tem. Tudo que eu faço, desde “Escrava Isaura“, dá certo e acaba sendo premiado. O meu propósito na vida é fazer os meus trabalhos bem feitos”. Eu me entrego de corpo e alma para os personagens, de modo que tem diretores que dizem que eu ‘escondo o leite‘. Eu não escondo nem de mim, eu faço o meu trabalho com afinco e com verdade. Eu entro no trabalho. Eu vivo a personagem”.

Para mim, personagens são tipos de entidades que vêm para terra para algum resgate. É isso que eu acho. Então, eu tenho que fazer bem fundo para ele se conter e se resgatar de alguma coisa. Sei lá, para mim são entidades. É coisa de Deus – Neusa Borges

Um dos primeiros trabalhos de Neusa na Globo foi justamente “Escrava Isaura” (1976). Uma das novelas basilares da teledramaturgia brasileira, que revelou Lucélia Santos para o mundo. Por anos, a história da escrava branca foi a mais vendida do Brasil e ainda hoje consta entre as 10 mais comercializadas. Sobre a novela escrita por Gilberto Braga (1945-2021), ela ressalta a parceria com Zeni Pereira (1924-2002), Léa Garcia (1933-2023) e Haroldo de Oliveira (1942-2003) e que seu papel não seria grande: “Eu ia fazer três capítulos. Eu acho que eu só fui chamada para fazer “Isaura” por causa da peça A Menina que Viu o Brasil Nascer“. Na novela, conhecer a Zeni Pereira, e a Léa… que vi no filme “Orfeu do Carnaval” (1959) além daqueles outros negros maravilhosos. Jamais pensei que fosse conhecer pessoalmente a Léa Garcia. Trabalhar com a sua ídola é inexplicável. E ter Milton Gonçalves (1933-2022) dirigindo foi algo sensacional”.

Neusa Borges em “Escrava Isaura”. (Foto: Reprodução)

Da mesma forma, Neusa foi chamada a fazer “Dancin’ Days“. Seriam apenas alguns capítulos como a presidiária Madá. Mas o papel engrenou – ainda que ela tenha sido contratada como figurante. “Eu já cantava, já viajava pelos shows também e, veja só, eu ganhei Disco de Ouro cantando”, mas, assim ela também descobriu as artimanhas do showbiz: “O que a gravadora fez comigo não se faz com ninguém. O Brasil parou para me ver cantar no Fantástico a música “Folhetim”. Eu fui a primeira cantora que, em uma novela, lançou música tal qual o Roberto Carlos. Depois de lançada a música tiraram do álbum da novela, tiraram a preta de todos os canais de televisão, de todas as rádios, de tudo que foi lugar e lançaram a Gal Costa (1945-2002) cantando a mesma música”.

Eu fiquei tão desgostosa dessa coisa de cantora que eu não quis cantar nunca mais. Foi assim que descobri essas sacanagens de gravadora. Isso me deu um trauma psicológico que eu não quis mais cantar de maneira nenhuma. Hoje em dia, eu não canto mais. Foi um baque – Neusa Borges

Neusa Borges cantando “Folhetim”, no Fantástico, em 1978 (Foto: Reprodução/Tv Globo)

Ainda que tenha consolidado uma carreira na TV e no teatro, Neusa não pretende voltar nem às novelas nem às peças. Reflexo do acidente que sofreu no carnaval de 2003, quando caiu de um carro alegórico da Unidos da Tijuca. “Desde o acidente tive sequelas. Com mudança de tempo eu passo mal, tenho parafusos e próteses, a dor é insuportável. Por vezes, recorro às muletas e é impossível gravar. Tive uma reconstrução de bacia, e já passei dos 80 anos. Além dessas, duas coisas que eu peguei uma grande dificuldade: subir escada e de varrer casa”. A última novela inteira de Neusa, na Globo, foi “Salve Jorge” (2012).

Desfile da Unidos da Tijuca de 2003. Neusa Borges caiu deste carro, que represenatava a Mesquita de Uidá, no Benin (Foto: Reprodução/TV Globo)

Fortemente associada ao Rio de Janeiro ou à Bahia, Neusa, ainda que more nas duas cidades, nasceu em Florianópolis. Local de onde não tem boas memórias, assim como a Dercy Gonçalves (1907-2008), que tinha um ranço da cidade onde nasceu, Santa Maria Madalena (RJ). “Eu, com certeza, não vou ser enterrada em Santa Catarina. Não me dei lá por causa do racismo. Eu não vou a Santa Catarina. Talvez, por eu ser negra, eles nunca deram a mínima para mim, não me convidam nem para tomar um cafezinho. Mas eu não ligo. Sei que é a minha terra natal, sei que é a da minha mãe, lá que eu fui batizada, abençoada, mas eu nunca fui respeitada.

Eu nem gosto de falar de Santa Catarina, onde nasci, porque eu sei o que é sentir na pele essa coisa de racismo, de preconceito e sei que isso é muito duro, muito difícil. Nunca me trataram com dignidade. Eu não tenho problema com a minha terra, ao invés disso eu tenho mágoa. Deixei isso para lá e estou muito feliz com a minha Bahia e muito feliz no meu Rio de Janeiro – Neusa Borges

Originária de uma época em que o racismo era algo menos discutido e/ou problematizado que hoje, mas também partífice de um movimento de orgulho étnico dos Anos 1970, quando canções como “Black is beautiful” – música que, aliás, fez sucesso na voz de Elis Regina (1945-1982) e foi escrita por Paulo Sérgio e Marcos Valle, brancos os três – Neusa acredita que essa prerrogrativa afro atual é passageira “Se me perguntarem o que eu acho do que está acontecendo agora com o negro, eu diria: abram os olhos! Eu sou da época do ‘black is beautiful’, dos artistas negros fantásticos dos anos 50 e 60. Onde enfiaram esses negros? Eles sumiram. E ainda hoje há quem diga que não tem racismo no Brasil’. Não existe mais gente idiota! Não tem preconceito? Não existe racismo no Brasil? Ah, pelo amor de Deus. É preto aqui e branco lá”.

Neusa estende sua crítica à invasão de influencers na profissão de atriz:

Agora são todos influencers. Antes, eram as modelos. Formavam-se como modelos, mas queriam fazer novela. Agora, são os influenciadores, ex-BBB’s… E a gente não ganha ¼ do que essa gente faz hoje. É muito dinheiro. Eu não ganharia o que eles ganham – Neusa Borges

ELA É BONITA, ELA É MULHER 

O trecho acima citado é parte de uma cantiga de Pombagira. Em 1987, Neusa Borges deu vida à controversa entidade do candomblé na novela “Carmem”, da TV Manchete, vivendo a própria Pombagira encarnada. Extravagante, expansiva, sexual e sensual, a personagem manifestava-se naquela vivida por Lucélia Santos, e que dava nome à novela. Para Neusa, este “foi o trabalho mais difícil, mais complicado da minha vida. “Eu não sabia o que era uma Pombagira. Desta maneira, cria não saber representá-la. Além disto havia perdido o meu marido, o sétimo dos nove. Naquela ocasião, estava morando num condomínio popular, dormindo no chão da casa da minha mãe com as minhas duas filhas. Sem trabalho, recém-viúva. O telefone público tocou e era a produção da Manchete chamando para três – eram sempre três – capítulos em “Carmem”. Como eu não sabia o que era uma Pombagira, perguntei às minhas amigas travestis, como Rogéria (1943-2017), o que era isso e ela achou que eu estivesse brincando. No fim, falou: Interprete a si mesma e ria igual à Fafá de Belém. Quando fomos gravar, a primeira coisa que veio foi a gargalhada e dali puseram fogo. Outra coisa, me deram um cigarro –  eu não fumo – e a cena aconteceu. Na chamada da novela exibiam sempre a cena. Até o último capítulo eu não sabia como eu fazia aquele personagem”. A cena do pacto de Carmem (Lucélia Santos), com a Pombagira durou ao menos dois capítulos e, só ela, tinha quase 45 minutos.

Quando eu chegava em casa, tinha caixas e caixas de champagne, presente para a Pombagira. Um homem chegou a mim com uma aliança do Século XIX e disse que a Pombagira havia mandado me entregar. Tive que aceitar e eu guardei. Tempos depois fiquei devendo 11 meses de aluguel e  sem nenhum dinheiro. Vendi a aliança, paguei os 11 meses de aluguel, adiantei mais seis e com dinheiro que sobrou eu aluguei outro apartamento no Rio de Janeiro – Neusa Borges

Neusa Borges em cena de “Carmem”. Ousadia na Manchete (Foto: Biblioteca Nacional/Revista Manchete)

E ela prossegue: “Um cara riquíssimo quis me dar um cheque em branco, um apartamento, o que eu quisesse, contanto que eu recebesse a Pombagira na sala da casa dele. Claro que eu não fui. Havia quem achasse que eu ficava incorporada de verdade. Tem uma cena que eu gravei, no bairro da Glória, no Rio, no qual havia uma fogueira. Quando tiraram foto, saiu um rosto de mulher nas chamas. Essa foto sumiu da Manchete. Sempre tinha alguém que levava rosas [à Pombagira]. Num show que fiz, dei uma gargalhada como a da personagem e uma mulher recebeu uma Pombagira no restaurante. Tivemos que parar o show. Essa foi a época na qual ganhei mais dinheiro. Fora isso,  houve uma cena em que uma taça de champanhe caiu no chão, no nosso pé e não quebrou”. Mas Neusa pondera que “nesta época, minhas filhas se agarravam nas pernas da minha mãe e gritavam apavoradas. Eu não podia chegar perto das minhas filhas.  Elas e as crianças tinham medo [de mim]”.

PALAVRA DE PRETA

Diante de uma vida tão prolífica, perguntamos se Neusa publicaria em algum momento uma biografia: “Nunca! Nunca! Falar de mim é uma coisa muito chata. Autobiografia é coisa muito chata! Eu não sou deusa, eu não vivo a vida de Neusa Borges, eu sou Neusa Maria! Minha vida está em tudo quanto é revista porque quando eu gosto, eu falo. E para falar de mim quero que escrevam a verdade. Fico danada quando ficam inventando coisas. [Mas nunca se questionaram se] com tanto sucesso, tantos anos, por que eu nunca fui capa de revista?”

Em mais de 60 anos de carreira e eu nunca fui capa de revista. Sempre apareci lá embaixo, numa foto pequenininha, mas capa nunca. Sempre vendi jornal e revistas. Ser negro é muito complicado no Brasil. Só a gente mesmo sabe – Neusa Borges

Com muitos projetos a caminho e prêmios – um deles foi a cinebiografia de Mussum. “O filme eu já sabia que ia ganhar tudo quanto é prêmio. O Aílton Graça vai ganhar porque não havia outro ator no Brasil que faria o Mussum (1941-1991)”. O comediante foi vivido pelo Aílton Graça. “Eu fui amiga, amiga de Mussum, então eu sabia que a vida dele daria um livro, um filme, uma peça de teatro. Por esse personagem ganhei o Kikito. Eu nem sabia se estava concorrendo a alguma coisa. Foi a minha maior surpresa, juro por Deus. Eu estou embasbacada até agora porque eu falei ‘gente, só pode ser por causa de uma cena’ e, de fato, eu acho que eu só ganhei esse Kikito por causa dessa cena. Para mim, eu posso até dizer que foi uma missão cumprida”. No longa, Neusa vive a mãe do personagem principal. O filme também marca o retorno da amizade entre ela e Aílton, que havia sido estremecida durante a novela “América” (2005).

Neusa Borges e Aílton Graça em “Mussum” (Foto: Divulgação)

Quando encerra a entrevista, Neusa dá falas definitivas. Tão francas como a tônica que norteou toda a conversa: “Eu sou, na vida, uma Neusa Borges no lado avesso. Na época, eu tive tudo na vida: marido, sucesso, dinheiro, mas a coisa que eu mais gostaria eu não consegui: tocar violão e dirigir. Tudo na vida tem um sentido, tudo tem um propósito. Aqui, na face da Terra, temos um verbo. Os virginianos são ‘eu faço“. Os piscianos como eu, tem dois: “eu quero” e “eu posso”. Fazemos tudo com uma força tão grande, com uma verdade tão grande que supera tudo. Eu sou assim. E não admito morrer. Sou nega velha cansada de guerra, mas eu tenho vida, eu amo isso aqui, eu estou querendo viver. Não vim à Terra fazer piquenique. Se eu perder o tesão e a vontade de viver, é por que o fim chegou”. E punto e basta.