Flávio Bauraqui sobre polêmica entre ‘Medida Provisória’ e Ancine: “Só é impedido quem incomoda”


O ator marca presença no Festival do Rio para lançar mais um trabalho com Lázaro Ramos: o polêmico e esperado “Medida Provisória”, longa no qual Lázaro estreia na direção e tem sido alvo de embargos da Agência Nacional de Cinema (Ancine) na tentativa de lançar no circuito nacional. “Vamos e precisamos incomodar. Não podemos ficar sempre no lugar da pessoa que reclama e fica inerte”, frisa, acrescentando: “O cinema é muito poderoso na sua essência e na sua provocação, porque ele é modificador de pensamentos”. Flávio estará na segunda temporada de “Arcanjo Renegado”, série da Globoplay

Flávio Bauraqui sobre polêmica entre 'Medida Provisória' e Ancine: “Só é impedido quem incomoda”

*Por Thaissa Barzellai

O Festival do Rio, hoje o maior da América Latina, realizou a sua primeira edição em 1999, mas foi em 2002 que o evento do cinema de referência internacional transpassou a trajetória do ator Flávio Bauraqui. Foi neste ano que o agora clássico “Madame Satã”, que trazia Bauraqui no elenco ao lado de nomes como Renata Sorrah e Marcélia Cartaxo, chegou às telonas brasileiras do Cine Odeon, na Cinelândia, depois de ser alvo de polêmicas em Cannes. Mesmo sem estar presente na exibição, o momento rendeu ao ator memórias inesquecíveis que foram essenciais na construção do artista que é hoje. 

Agora, 19 anos depois, Flávio marca presença no Festival do Rio para lançar mais um trabalho com Lázaro Ramos: o polêmico e esperado “Medida Provisória”, longa no qual Lázaro estreia na direção e tem sido alvo de embargos da Agência Nacional de Cinema (Ancine) na tentativa de lançar no circuito nacional. “Só é impedido quem incomoda. Então, vamos e precisamos incomodar. Não podemos ficar sempre no lugar da pessoa que reclama e fica inerte”, declara o ator que já deu vida a figuras célebres, dentre eles Pelé, Luís Gama (aqui dirigido novamente por Lázaro Ramos para o especial “Falas Negras”, exibido em 2020 na Rede Globo), Cartola Jair Rodrigues.

Em 2002, Flávio Bauraqui fez a sua estreia no Festival do Rio com o longa-metragem “Madame Satã”. Foto: Flávio Bauraqui

 Para o ator, a coibição – racista – por parte do órgão federal simboliza a efervescência e a impetuosidade da luta negra. O que está acontecendo de forma muito nítida é esse efeito de ação e reação para todos os lados. Estamos vivos e os vivos se movimentam, alguns gostarão e outros não, completa. 

Baseado na peça “Namíbia, não!”, de Aldri Anunciação – que também integra o elenco ao lado de Renata Sorrah, Adriana Esteves, Seu Jorge e Taís Araújo -, o filme explora uma sociedade distópica liderada por um governo que demanda que os negros do país retornem para à África como uma reparação histórica dos tempos de escravidão. Nessa realidade nem tão paralela, a produção, que já provocou comentários injuriosos do presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, no Twitter (“pura lacração vitimista e ataque difamatório contra o nosso presidente”), traz luz a tópicos como miscigenação, ancestralidade e hegemonia sociopolítica.

Internacionalmente, o longa-metragem tem sido recebido com críticas positivas em festivais renomados no âmbito cinematográfico, dentre eles o Indie Memphis que laureou o projeto com o prêmio de Melhor Roteiro. O caso enfrentado por “Medida Provisória” é semelhante ao de “Marighella”, de Wagner Moura, e “Revolta dos Malês”, de Antônio Pitanga, e o fato de todos terem a narrativa preta como protagonista levanta questionamentos. 

Esses três trabalhos frutos do cinema contemporâneo tiveram que enfrentar em diferentes níveis não apenas as políticas de desmonte cultural como também os ditames burocráticos que tentam velar uma indústria ainda racista. De um lado, uma cinebiografia de um dos principais militantes comunistas negros do Brasil, que sofreu com obstáculos para estrear e só conseguiu fundos financeiros por ter, por exemplo, apresentado o projeto com um título diferente; do outro, o retrato de uma das revoltas de escravos mais emblemáticas da história brasileira que há 10 anos busca investimento e só agora adquiriu uma parte do orçamento necessário.

Essas situações refletem um país que não quer quebrar com a tradição do olhar hegemônico, visando manter o controle das narrativas e, portanto, do passado, presente e futuro de uma sociedade que não conhece nem um terço da sua identidade. É nesse cenário que, para Flávio Bauraqui, o cinema entra em cena como ferramenta de reflexão e transformação. “O cinema é muito poderoso na sua essência e na sua provocação, porque ele é modificador de pensamentos”, aponta. 

Mais do que produzir, no entanto, é preciso que a arte chegue ao público para além do seu nicho, quebrando com as fronteiras ideológicas e estabelecendo diálogos progressistas. Festivais de cinema, como o do Rio, são um essencial ponto de partida. “Para termos mais simpatizantes do cinema, é preciso que o cinema vá até as pessoas, porque eu acho que o caminho contrário não vai acontecer. É preciso que o cinema dê o primeiro passo para cativá-las e chegar mais perto delas, porque, caso contrário, nós ficamos fazendo um trabalho dentro da nossa bolha, que só nos satisfaz e fica parecendo algo mais do nosso ego do que efetivamente uma atitude para que algo aconteça, reflete o ator que faz uma participação especial no longa-metragem “Ela e Eu”, de Gustavo Rosa de Moura, e estará na segunda temporada de “Arcanjo Renegado”, série da Globoplay, mostrando que a inércia não lhe convém.