Fernanda Montenegro volta ao cinema interpretando idosa que denuncia o tráfico e, no teatro, fala de feminismo


O retorno da imortal. Fernanda Montenegro estará no longa “Vitória”, filme de Andrucha Waddington e Breno Silveira que revisita a idosa Dona Vitória – cujo nome real era Joana – e que instalou câmeras escondidas na sua janela para flagrar movimento do tráfico na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana. Fernanda também poderá ser vista na leitura de “A Cerimônia do Adeus”, de Simone de Beauvoir, que estará durante todo o mês de março no Teatro Trio, no Rio. Site HT localizou uma entrevista de Fernanda Montenegro na Revista Manchete em que a atriz criticava a filósofa. Veja!

* Por Vítor Antunes

Uma das maiores frustrações de José de Alencar (1829-1877) era nunca ter virado ópera ou receber o devido reconhecimento popular por uma de suas mais importantes obras, “Iracema”. Iracema só ganharia contornos populares em 2017, quando a Beija Flor de Nilópolis transformou a beleza do livro numa exuberância em desfile de carnaval. Algo semelhante aconteceu com Dona Vitória, ou melhor, com Dona Joana Zeferino da Paz (1925-2023). Falecida em 2023, quando finalmente pôde deixar de usar a alcunha que a fez famosa no início da década por haver ajudado a desbaratar o crime organizado em Copacabana. Dona Vitória/Joana será interpretada por Fernanda Montenegro no filme “Vitória”, livremente inspirado na vida da idosa que por dois anos filmou da sua janela a consolidação do tráfico de drogas na Ladeira dos Tabajaras, via de acesso à comunidade existente no bairro.

Após entrar para o Programa de Proteção à Testemunha e transitar por diversas cidades brasileiras, Vitória/Joana só tinha um desejo, segundo o jornalista Fábio Gusmão, que lhe tornou conhecida a história: “Ter o reconhecimento público”. Vitória/Joana não viveu a tempo de ver Fernanda Montenegro, única atriz brasileira indicada ao Oscar, voltar a atuar no cinema com protagonismo, sendo o principal nome de “Vitória“, longa de Andrucha Waddington e Breno Silveira (1964-2022).

Fernanda Montenegro é “Vitória” no filme homônimo (Foto: Divulgação)

COMPASSO DE VITÓRIA

Toda vida, quando olhada por olhos sublimes, pode ser transformada em filme. No caso de Dona Vitória/Joana, não era preciso sequer uma ótica profundamente sensível. Nascida no Alagoas, ela foi violentada pelo filho de um fazendeiro da cidade onde nasceu e dele engravidou Com sacrifício, transitou por algumas outras cidades nordestinas até chegar no Rio de Janeiro. Aqui, juntou dinheiro e conseguiu financiar um apartamento em Copacabana, em 1967. Local onde morou por 38 anos e viu crescer a desigualdade social e o tráfico de drogas. O movimento da biqueira acontecia diante dos seus olhos. E a cada vez se avolumava. Foi quando resolveu comprar uma câmera filmadora – parcelada em 12 vezes numa loja de departamentos – e se pôs a filmar, escondida, tudo o que via. E não só a filmar, mas a indignar-se:

Olha aí o futuro do Brasil. Não é possível, minha gente, essas crianças cheirando pó e ninguém fazer nada! Não vou dizer que não tenho medo delas, mas deixar de filmar esses bandidos, isso não vou mesmo! Estão enganados, estão enganados… – Dona Vitória/Joana

Em março de 2004, há 20 anos portanto, o repórter Fábio Gusmão teve acesso a esse material. Gravado por dois anos, eram 22 fitas que, somadas, chegavam a 33 horas de gravações. Na impossibilidade de chamá-la pelo nome real, o ex-editor executivo do Jornal Extra, Octavio Guedes batizou a com o nome que a fez famosa. Entre março e a publicação da reportagem 18 meses se passaram. A Polícia aconselhou Dona Vitória a mudar de endereço para a garantia de sua segurança. A história de Dona Vitória ganhou o mundo. “Aquele era o mais impressionante relato em vídeo feito sobre a rotina do tráfico e o impacto disso na vida de uma pessoa que não aceitou ficar calada”, disse Fábio Gusmão em O Globo. A filmagem foi o último ato desesperado de Vitória/Joana. Anteriormente a isso ela já havia processado o Estado, cobrando indenização pela desvalorização de seu imóvel.

“Atenção: Estas fotos não podem mostrar o rosto do personagem”. Essa era a legenda interna a qual os jornalistas tinham acesso à foto de Dona Vitória/Joana (Foto: Fábio Guimarães)

Dirigido por Andrucha Waddington e Breno Silveira (1964-2022), com roteiro de Paula Fiúza, o longa “Vitória” é o primeiro filme Original Globoplay. E uma estreia luxuosa, com Fernanda Montenegro dando vida à personagem principal. O filme tem estreia prevista nos cinemas para 15 de agosto.

Joana da Paz e Fábio Gusmão (Foto: Arquivo/Extra)

A FORÇA DAS COISAS

A impressão que tenho é a de não ter envelhecido, ainda que eu esteja instalada na velhice”. Tanto a frase acima quanto a que nomeia este trecho da matéria – “A força das coisas” – são de Simone de Beauvoir (1908-1986).  Fernanda Montenegro apresentará a leitura dramática extraída da obra “A Cerimônia do Adeus“, de Simone de Beauvoir, autora fundamental do feminismo contemporâneo. O Teatro Prio, na Gávea, em comemoração ao Mês da Mulher, apresentará, entre os dias 8 e 31 de Março uma programação voltada a elas. E entre as atrações também estará Fernanda Montenegro, fazendo uma leitura dramática de trechos do livro “A Cerimônia do Adeus”, da pensadora francesa. A adaptação, direção, pesquisa e seleção musical, são da própria Fernanda, que é, importante ressaltar, imortal da Academia Brasileira de Letras.

No livro, Beauvoir toma por base o próprio diário e sua vivência com seu marido, o  filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980) para abordar, reflexões  acerca da velhice e da morte, algo que a imortal Fernanda também o fará, nesta obra poderosa, estruturada por Simone de Beauvoir para falar do feminismo. “A Cerimônia do Adeus” já inspirou outra obra, homônima, escrita por Mauro Rasi (1949-2003) que, recentemente, foi encenada no Teatro Copacabana e dirigida por Beth Goulart. Esse encontro de Fernanda e Simone não é exatamente novo, já que há alguns anos a atriz faz a leitura de “Viver sem Tempos Mortos”, baseado em cartas da filósofa.

Antes disso, em 1977, em entrevista à Manchete, Fernanda foi perguntada pela jornalista – e feminista Heloneida Studart – sobre como conciliou a vida de grande atriz com a de dona de casa, e ela diz “Não conciliei. Fui fazendo. Fui no desmancha aqui, recomeça ali”. Mas a frase definitiva de Fernanda, e que poderia encerrar esta matéria, é aquela na qual compara o fazer teatral às mulheres: “Teatro é um espaço perfeito para as mulheres: Sempre marginalizado e posto em questão, ele é como nós. E sempre estão questionando o nosso papel. Não é mesmo?” Teria essa pergunta envelhecido quarenta e tantos anos depois? E, com a ousadia dos deuses equivalentes, Fernanda questiona a assertiva de Beauvoir quando diz que a maternidade não faz parte da essência feminina. “Discordo. Pois faz. (…) Simone não sabe, porque não experimentou”. Fernanda e Simone têm a força mais atávica das coisas de serem seres: Têm a força de serem mulheres.

Fernanda Montenegro, em 1977, contestou Simone de Beauvoir (Foto: Arquivo/Globo)