*por Vítor Antunes
Ele é autor de um dos maiores sucessos históricos do horário das 19h. Carlos Lombardi é detentor também de alguns epítetos que talvez ajudem a entender como sua carreira foi construída, mas que não o definem com clareza. “O autor dos descamisados”, “o autor cômico”, ou o das “novelas ousadas” podem traduzir suas novelas, mas não a ele, que, na última semana, voltou aos holofotes diante da possibilidade de retornar ao ar com uma novela na Globo – para onde não faz um folhetim inédito desde 2006. Porém, em entrevista exclusiva ao Site Heloisa Tolipan, ele contextualizou a história e diminuiu a expectativa dos fãs: “As notícias são exageradas. Eu havia preparado uma novela, do tamanho de “O Quinto dos Infernos” [48 capítulos], e mandei para a pessoa responsável pela seleção das novelas, que deixou muito claro na correspondência de volta que não havia gostado. Agora estou trabalhando em cima de outra ideia que tem um pé firme na comédia”. Lombardi conta que ainda está numa fase bem inicial da trama, “rascunhando à caneta”, mas com seu estilo sempre presente: “Eu sempre parto do dramalhão. A comédia vem no tom da narrativa, e não na temática, né? Os temas que eu uso como pontos de partida são claramente dramáticos. Só que eu vou tentando, na narração, colocar dados mais leves”.
Dois trabalhos de Lombardi ganham destaque novamente. Um deles é “Quatro por Quatro“, que neste ano completa 30 anos. Outro é “Pé na Jaca“, que ainda que tenha tido uma audiência mediana, é recorrentemente lembrada. Quer por ser a trama que consolidou Rodrigo Lombardi na Globo num papel de destaque, quer por haver trazido Murilo Benício no papel do divertido Arthur Fortuna, e que voltará ao Globoplay. Era a única obra das favoritas de Lombardi a não estar no Globoplay. Além de “Pé na Jaca“, “Quatro por Quatro“, “O Quinto dos Infernos” e “Kubanacan” são os trabalhos dos quais ele mais gosta.
Tenho uma lista de novelas favoritas, mas tirando ‘Pé na Jaca’, as minhas favoritas já estão no Globoplay – Carlos Lombardi
Lombardi também é detentor de um título insólito: o de ser o único autor a ter uma novela editada em uma reexibição no canal Viva. “Bebê a Bordo” (1988) foi compreendida pelo telespectador de 2018 como excessiva, tanto pelo ritmo – veloz – como pela sensualidade/sexualidade de seus personagens. A audiência, muito baixa para o Viva, exigiu que a novela fosse editada para sair do ar mais rápido. E seus 209 capítulos foram editados para 131. Para Lombardi, este é um reflexo de uma sociedade “mais conservadora, mais moralista. Mas sou otimista, porque acredito que tudo que é demais enjoa. E isso vale tanto para a modernidade quanto para a caretice. Quando vejo um filme politicamente incorreto como ‘Deadpool’ fazer tanto sucesso, percebo que o pêndulo está voltando. As pessoas se cansam dos excessos. Existem muitas coisas hoje que são consideradas ofensivas, mas que não são. E as pessoas têm o direito de usar o controle remoto e dizer: ‘Isso aqui não é para mim‘”. Mesmo na época de sua exibição original, “Bebê a Bordo” teve um público mais conservador que não gostou da novela. Em compensação, a pesquisa mostrou que eu tinha resgatado o público adolescente para o horário, o que foi importante em termos de faturamento.
Não quero chocar ninguém; quero divertir e emocionar as pessoas, por isso escolhi o veículo da novela. Nunca quis revolucionar nada; quando uma história minha sai moderninha, é porque foi assim que ela nasceu – Carlos Lombardi
LINHAS TORTAS
A dita popular diz que Deus escreve certo por linhas tortas. Carlos Lombardi escreve. Se certo, aí depende do ponto de vista. Para a audiência, sim, muitas vezes. Foi uma das maiores audiências da Tupi à beira da falência com “Como Salvar Meu Casamento“, de 1979/1980, encerrada às pressas e sem final em face da falência da emissora. Esteve como colaborador em “Guerra dos Sexos“, igualmente icônica, e assinou “Vereda Tropical” e “Bebê a Bordo“. A maior audiência dos anos 90 é dele bem como a do ano 2000. A contrário de seus detratores que enxergavam nudez e vulgaridade, o público, não. Se identificava naquela história de andamento rápido, tipo quadrinhos e com muita malícia. Porém entre as novelas às quais o sucesso não chegou nem na exibição original foi “Vira Lata“, trama na qual tudo deu errado. “Deu tudo errado mesmo, foi uma trombada atrás da outra”, confirma.
O que nem todo telespectador pode ter percebido na obra de Lombardi é que ele é fã da cantora Marina Lima. A maior parte das suas novelas tem uma música da cantora, e “Vira Lata” não foi exceção. Neste caso, a música chamava ‘Linhas Tortas‘. Talvez fosse algo premonitório. “Aprendi algo com “Vira Lata”: a bater mais o pé nas escalações. Eu achava que a novela estava mal escalada e percebi isso, infelizmente, no final do primeiro capítulo. Meu colaborador estava ao meu lado e disse: ‘Cara, é isso, Lombardi, no máximo’. Eu falei: ‘Não, deu tudo errado’. No final do primeiro capítulo me veio muito claro que eu devia ter insistido mais na escalação, que estava errada. Adoraria dizer que no dia seguinte, quando fui escrever o próximo capítulo, tudo veio na minha cabeça, mas demorei para ajustar a trama. Escrevi a novela arrastando, indo para frente com dificuldade. Mas, aí, achei um plot para centralizar a história e recomeçar a novela. Demorei dois meses para conseguir isso. Primeiro, o Jorge Fernando (1955-2019) saiu da direção – e nós estávamos em ritmos diferentes. Além de tudo a Andréa Beltrão ficou doente e precisou se afastar. Foi aí que eu encontrei a personagem da Carolina Dieckmann, que virou a mocinha. O tom da novela mudou com a assinatura do Rogério Gomes (Papinha). Facilitou muito”. Lombardi revela que sua primeira opção de escolha para protagonista era Malu Mader, e não Andréa Beltrão.
A saída também de Glória Menezes de “Vira Lata“, segundo Lombardi, “foi algo completamente inesperado. Desconfio que ela não leu a sinopse em detalhes, porque ficou ofendida achando que eu estava usando coisas da vida dela para a personagem, e eu confesso que não sabia de absolutamente nada disso. Seria muito desagradável, não faria isso com alguém com quem eu queria muito trabalhar. Isso foi um infortúnio, mas já passou, sem mágoas”.
Felicidade de uns é tristeza de outros. E eu nunca tento agradar a todos, porque sei que não dá certo. Tentar agradar a todos é como comer o strogonoff que dormiu fora da geladeira. Eu sei que, como autor, agrado a uns e desagrado a outros. E como a TV ainda é de graça, as pessoas não valorizam tanto – Carlos Lombardi
Entre os trabalhos que também não foram escritos em trilhos retilíneos, outro seria “Bang Bang“, de 2005. Inicialmente escrita por Mário Prata, o titular deixou a novela ainda antes do capítulo 20, e ela foi assumida por Lombardi. “Foi o trabalho mais difícil, porque havia muitos problemas desde o início, e a novela parecia ser uma colcha de retalhos. Meu primeiro passo ao assumir foi tentar dar foco nos protagonistas, porque a novela estava se perdendo. Apesar das dificuldades, gostei do desafio e me diverti escrevendo. Os últimos capítulos são meus favoritos, embora eu estivesse exausto”, desabafa.
E, em se falando de Deus, Lombardi saiu da Globo no ano de 2012 e foi para a Record fazer “Pecado Mortal“, novela que trazia os descamisados, um núcleo de bicheiros, um vilão que se assume gay no trecho final da novela. Algo que nem parece ter sido produzido pela Record. Lombardi analisa desta maneira sua passagem pela emissora dos bispos. “Naquela emissora nunca fui pressionado para apelar. O diretor artístico sempre dizia que a novela era boa, mas que não encontrou o público certo. Talvez a gente quisesse fazer uma novela sofisticada demais para o público da Record. Fui muito bem tratado naquela casa, mas logo depois desta novela, fui diagnosticado com câncer e precisei me afastar. Quando voltei, a emissora já havia mudado o foco para novelas bíblicas, e eu não era a pessoa ideal para escrever essas histórias. Porém, meu relacionamento com a Record sempre foi educado”, pontua. À casa caberia a realização de uma série sobre os Mamonas Assassinas, que acabou virando filme e não teve um resultado tão positivo. “Eu preferia que a minissérie tivesse sido realizada, porque acho que ela era melhor que o filme. Mas a decisão foi da produtora”, afirma.
No cenário contemporâneo da produção audiovisual, especialmente com a ascensão das plataformas de streaming, o modelo de contratação de roteiristas passou por uma transformação significativa. A era dos contratos longos e estáveis, comuns nas grandes emissoras de televisão, está sendo gradualmente substituída por contratos mais flexíveis e pontuais, adaptados às necessidades voláteis das produções on demand. Nesse contexto, as relações entre roteiristas e produtores tornaram-se mais dinâmicas, mas também mais incertas, refletindo as mudanças estruturais da indústria.
Carlos Lombardi observa com cautela essa transição. Ele destaca que, embora os contratos por obra possam oferecer flexibilidade, eles também impõem desafios consideráveis para a continuidade e previsibilidade, elementos cruciais para o funcionamento eficaz de uma emissora tradicional: “Sobre os contratos atuais para roteiristas, acho que o mercado ainda está se encontrando. Contratos por obra podem funcionar, mas uma emissora precisa de continuidade e previsibilidade, e contratos por obra podem dificultar isso. Ainda não chegamos a um consenso sobre o melhor formato.”
RELEMBRANDO ‘QUATRO POR QUATRO’
Em 2024, “Quatro por Quatro” completa neste ano 30 anos de lançamento. Um sucesso. Mas o surgimento da trama foi profundamente caótico. “Essa novela foi completamente improvisada. Eu não iria fazer novela naquele momento, estava começando a desenvolver um projeto, e aí o Mário Lúcio Vaz (1933-2019) me chamou para contar sobre uma nova novela. Levei o perfil de 15 personagens, ainda sem trama elaborada ainda, mas tinha apenas a ideia das mulheres se vingarem por terem sido abandonadas, traídas, e que eu teria que apoiar a outra perna da novela num clichê tradicional. A única inovação seria que eu usaria o recurso do melodrama com dois personagens masculinos e se questionar quem era o pai da criança: O que criou ou o que gerou. A Globo gostou, achou os personagens fortes, disse que iria sublinhar o que é mais forte em cada um deles e eu disse que voltaria para São Paulo para terminar de escrever a sinopse e desenvolver o resto dos personagens. E, então, o Homero Icaza Sánchez (1925-2011), diretor da Globo, disse: ‘Não, senhor! Você vai escrever o primeiro capítulo da novela!'”
A correria se justificava por conta do sucesso de “A Viagem” (1994), da Ivani Ribeiro (1922-1995), uma novela que tinha estourado todos os números de audiência na Tupi e na Globo. O Mário Lúcio Vaz pediu para a Ivani Ribeiro escrever mais um mês de novela, mas ela negou Então, era um mês para instalar a trama. “Escrevi correndo, e a novela se caracterizou por ser tudo de última hora, não por escolha minha ou da emissora. Simplesmente aconteceu. Foi uma correria que mudou muitas coisas. Algumas ideias de escalação mudaram”. Ele relembra: “Inicialmente, na minha cabeça, a Auxiliadora seria a Eliane Giardini, a Bibi, a Bruna Lombardi, a Tatiana, a Malu Mader e Babalu, a Adriana Esteves“. Por fim, as personagens ficaram com Elizabeth Savalla, Betty Lago (1955-2015), Cristiana Oliveira e Letícia Spiller.
A produção era tensa, segundo conta Lombardi. “A produção de capítulos era insana. Não tínhamos quase nada gravado. A novela estreou com uma frente de gravação muito pequena. Se não me engano, na semana da estreia, tínhamos apenas quatro capítulos gravados”. Fora isso, houve problema com o elenco. Dois atores protagonistas encrencaram com a obra e um pediu para sair. “Quanto ao Diogo Vilela, não me lembro de ter entendido completamente qual era o problema dele. Já a Elizabeth Savalla pediu uma reunião comigo e trouxe uma série de questões, dizendo que um ator tinha mais cenas que ela e ele não era protagonista. A situação ficou mais equilibrada, mas conforme a novela avançava, às vezes dava mais cenas para ele. Eu estava sendo honesto e realista no tratamento, não tinha dúvidas morais sobre a situação”.
RELEMBRANDO ‘PÉ NA JACA’
A premissa de “Pé na Jaca” surgiu de uma forma aleatória: “Estava num momento de crise, não queria mais fazer novela. Alguém disse: ‘Pede emprego para o seu sogro, que é dono de fazenda’”. E surgiu a ideia. O que aconteceria se eu fosse parar num ambiente rural? Aí conseguiria fazer uma novela de cidade pequena. O protagonista era um operador da bolsa quebrado, era um olhar de fora”. Lombardi conta que queria “fazer algo diferente, uma história sobre amizade, não necessariamente sobre o amor, mas sobre como essa amizade evolui em diferentes momentos dos personagens. E uma música veio à cabeça, “Fazenda“, de Milton Nascimento. Tenho a impressão de que inventei a história ouvindo essa música”. E destaca também a trilha sonora da trama e os bons temas principais que eram “Cheiro de Amor“, de Maria Bethânia e “Ainda Bem“, da Vanessa da Matta.
Assim como “Quatro por Quatro” “Pé na Jaca” também teve problemas de escalação: “Seria o último trabalho da Nair Bello (1931-2007) que chegou a gravar cenas, e Luana Piovani, que também saiu pouco antes das gravações, sendo substituída por Flávia Alessandra“. Lombardi prossegue dizendo que “depois, tudo se acalmou, e o bastidor foi fácil, muito simpático em “Pé na Jaca”, porque eu tinha dois protagonistas masculinos extremamente confiáveis, aquelas pessoas que decoram, chegam na hora e gravam, como o Murilo Benício e o Marcos Pasquim.
A baixa audiência da trama, para o autor, deveu-se à data de estreia, que não era boa. “Estava tudo certo para a novela estrear em janeiro. Frequentemente, minhas novelas fazem essa ponte, atravessam o Natal e o Réveillon para entregar o horário no final de janeiro para a novela nova. Só que, quando chegou a minha vez, a novela estreou no período horroroso da última semana de novembro, com todo mundo fazendo compras de Natal, etc. e tal. Eu sabia, a partir daquele momento, que a gente estava destinado ao fracasso. A novela continuou até o final de janeiro, onde eu poderia ter feito uma espécie de relançamento da história sem mudanças graves, apenas ajustando o rumo. Mas eu sabia que estávamos condenados a esse problema. Isso não tira meu afeto por ela. Adoro a novela, é um dos meus trabalhos favoritos. Foi muito gostoso de escrever e de fazer, gosto muito. Estou bastante curioso para poder finalmente ver direitinho no Globoplay”.
Não haveria motivos para incensar – ainda mais – Carlos Lombardi. Mas não se pode dizer que suas novelas são apenas um delírio, um divertimento engraçado e com homens seminus. Não. É a verdade da vida – que mescla dramalhão, farsa, cinismo e, por que não dizer, sexo. O próprio Lombardi já disse certa vez que “novela é um monte de gente correndo atrás da felicidade e outro monte torcendo por isso”. E ele está certo. Tanto que finaliza dizendo. “Fico satisfeito quando olho para trás e vejo que escrevi coisas boas. ‘Bebê a Bordo‘ teve Dina Sfat (1938-1989), que já estava com a saúde frágil durante a novela e faleceu logo depois de concluir sua participação. Poder escrever para ela foi especial. Tem uma história sobre isso: os médicos queriam afastá-la da novela, mas um deles me disse que mantê-la trabalhando poderia prolongar sua vida. E foi o que fizemos”. Há de se lastimar que pelo menos por enquanto Lombardi não esteja com uma trama inédita no ar, diante de tantas novelas medianas. Fica no ar a torcida para um retorno da ousadia, da picardia e da inteligência do autor na telinha.
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