Ana Flávia Cavalcanti exalta trama queer em ‘Garota do Momento’: “Reparação histórica para comunidade LGBT”


A atriz celebra Marlene, sua personagem em ‘Garota do Momento’, mãe solo, que reencontra Érico, vivido por Silvero Pereira, amigo de Ana na vida real e que, no folhetim, é seu ex-marido e pai do seu filho, E retorna após 18 anos, ganhando a vida como transformista. “Tem sido muito emocionante gravar com o Silvero. Trocamos muito sobre nossas vivências. Sou uma mulher bissexual, lésbica de saída; ele é um homem gay, que já se travestiu, fez muita montagem; então, aquele texto de regresso, na boca do personagem dele, me representou imediatamente, representou as pessoas que estavam no set e tinham vivências parecidas. Vê-lo em cena me levou para um lugar muito bom, afinal a trama se passa em 1958, é novela das seis, e nós ali, plantando essa semente. As famílias sempre foram de vários tipos e os arranjos sempre foram muitos. Essa história é uma espécie de reparação histórica/dramatúrgica para a comunidade LGBT”. Além do sucesso na novela, ela tem brilhado no cinema nacional em papéis plurais e vai trazer para o Rio de Janeiro no segundo semestre a peça ‘Conforto‘, que tem dramaturgia e direção suas, em que divide o palco com a mãe, Val Cavalcanti, falando de família, sonhos e memórias. O afetivo projeto pode virar filme.

*Por Brunna Condini

Ana Flávia Cavalcanti e Silvero Pereira são amigos na vida e agora também parceiros na teledramaturgia. Em ‘Garota do Momento’, trama das seis da Globo, Marlene (Ana Flávia) foi casada com  Érico (Silvero), com quem teve Carlito (Caio Cabral). Érico ganha a vida como transformista, se apresentando na noite como Verônica Queen, e se entendeu homossexual quando ainda era pequeno, acreditando ser melhor que Marlene o criasse sozinha, por conta do preconceito. As recentes cenas do reencontro entre Érico e Marlene, carregadas de emoção, renderam muitos elogios do público e da imprensa. “Foi meu primeiro ‘nota 10’ em 15 anos de carreira. Demorou, mas veio”, celebra Ana.

A trama de Alessandra Poggi só evidencia como as famílias e suas diversas configurações sempre existiram no final dos anos 1950. A diferença para hoje é que nesta época a opressão era avassaladora e essas famílias não ousavam nem pensar em ‘sair do armário’ para ter a vida a que tinham direito. “Tem sido muito emocionante gravar com o Silvero. Trocamos muito sobre nossas vivências. Sou uma mulher bissexual, lésbica de saída; ele é um homem gay, que já se travestiu, fez muita montagem. Então, aquele texto de regresso, na boca do personagem dele, me representou imediatamente, representou as pessoas que estavam no set e tinham vivências parecidas. Vê-lo em cena me levou para um lugar muito bom, afinal a trama se passa em 1958, é novela das seis, e nós ali, plantando essa semente. As famílias sempre foram de vários tipos e os arranjos foram muitos. Essa história é uma espécie de reparação histórica/dramatúrgica para a comunidade LGBT”, analisa.

Fico grata que nesses anos todos de trajetória profissional, eu tenha conseguido fazer tantas personagens que tocaram em temas que vão de encontro ao que acredito. Isso é uma boa sorte – Ana Flávia Cavalcanti

Ana Flávia Cavalcanti celebra trabalho em novela, fala da parceria com Silvero Pereira na vida e na arte, e dos planos com a mãe, que descobriu-se atriz na maturidade (Foto: Flavio Carrijo)

Ana Flávia Cavalcanti celebra trabalho em novela, fala da parceria com Silvero Pereira na vida e na arte, e dos planos com a mãe, que descobriu-se atriz na maturidade (Foto: Flavio Carrijo)

E continua analisando a partir da história da perfumista no folhetim. “Minha personagem foi mãe solo todos esses anos e não podemos esquecer que o Brasil tem a maior população de mães solo do mundo. Isso tudo está atrelado a resquícios da escravidão e à desestrutura desses lares negros, majoritariamente. Sou filha de uma mãe solo, meu pai foi embora quando eu tinha dois anos. O pai da minha mãe fez o mesmo com ela. Essa falta paterna não é rara, infelizmente. Por isso, quando o Érico volta, 18 anos depois, Marlene meio que consegue guardar a mágoa numa ‘gaveta’ e comemora pelo filho, porque ele quer o pai perto, merece isso. Passado esse primeiro momento, vou te dizer: Marlene e Érico vão se tornar melhores amigos, aliás, mais que amigos, friends (risos). E num lugar divertido, parceiro, bem queer. De uma amiga com seu amigo gay, com a força dessa união. Marlene vai acolher o Érico. Todo mundo tem o direito a ter sua família e uma vida como escolher”.

Caio Cabral, Silvero Pereira e Ana Flávia Cavalcanti em 'Garota do Momento' (Divulgação/Globo)

Caio Cabral, Silvero Pereira e Ana Flávia Cavalcanti em ‘Garota do Momento’ (Divulgação/Globo)

Além dessa trama representativa, vale destacar que demoramos muito tempo para termos famílias pretas nas novelas, então isso também é uma conquista. Não tínhamos cenários próprios, vida pessoal, relacionamentos, trilha sonora…termos hoje histórias mais desenvolvidas, complexas, é algo para celebrar – Ana Flávia Cavalcanti

No exercício da pluralidade

O trabalho de Ana Flávia também pode ser conferido no premiado ‘Baby‘, de Marcelo Caetano, em que faz par com Bruna Linzmeyer, já disponível na plataforma de streaming Mubi, e em ‘Continente‘, de David Pretto, que acaba de entrar para o catálogo Globoplay. Além de ‘O Deserto de Akin‘, filme de Bernard Lessa, que segue sendo exibido em festivais. “Vi a estreia destes três filmes no Festival do Rio do ano passado, foi algo inédito pra mim e muito bacana, porque são trabalhos muito diferentes e personagens também. No ‘Baby‘ retratamos a crueza de São Paulo; já ‘Continente‘ é um filme de terror, de vampiros, que se passa no extremo Sul do Brasil; e o ‘O Deserto de Akin’ em praias paradisíacas de Vitória e é uma espécie de reparação aos médicos cubanos. Ou seja, foi um exercício muito rico”.

E constata: “Em ‘Baby‘, apesar de toda dureza mostrada, tem o lado do amor, tem uma ressonância com a história da novela. São as famílias possíveis, que a gente quer, dá conta e merece ter. É isso, temos muitas chances e possibilidades de viver o amor”.

 "É bonito perceber meu amadurecimento no ofício e como fui entendendo como é fazer televisão, porque não é fácil" (Foto: Hanna Vadasz)

“É bonito perceber meu amadurecimento no ofício e como fui entendendo como é fazer televisão, porque não é fácil” (Foto: Hanna Vadasz)

Ressignificando através da arte

“Minha mãe é o sol da minha vida. Sem ela eu teria morrido”. Essa é a frase emocionada de Ana Flávia ao tentar elaborar o que a mãe, Val Cavalcanti, representa para ela. Além de toda admiração que sente pela mãe, que foi faxineira praticamente a vida toda, e a criou para ser quem quisesse, a artista dividiu o palco com Val no espetáculo ‘Conforto‘, em que assina a dramaturgia e a direção. “Ali trocamos nossas experiências de conforto, desconforto, família, sonhos e memórias”, diz, sobre a montagem que proporciona uma reflexão sobre a desigualdade social. “Quero trazer esse espetáculo para o Rio de Janeiro no segundo semestre e pretendo rodar o Brasil com ele. E tenho vontade de transformar essa história em um filme”, anuncia, sobre o projeto que também inspirou um podcast ‘Histórias de Conforto‘, que vai ter sua segunda temporada gravada esse ano ainda.

Ana Flávia Cavalcanti e a mãe Val (Foto: Reprodução/Instagram)

Ana Flávia Cavalcanti e a mãe Val (Foto: Reprodução/Instagram)

Ao constatar que primeiro ela foi na ‘trilha’ da mãe, e antes de conseguir se tornar atriz, também precisou trabalhar como diarista e babá; mas agora é a mãe que vem na sua ‘trilha’ e investe no sonho de uma carreira como atriz aos 68 anos, Ana Flávia se comove. “É bonito ver desta forma, nunca tinha pensado assim. Escrevi essa peça para sentir em cena outras sensações que não fossem só as de histórias tristes. Ressignificamos muito no palco. E é impressionante como minha mãe conseguiu ter distanciamento e me deixar falar de sua vivência ali de uma forma fiel. Ela conta a história dessa mulher que foi faxineira durante quase 60 anos, que morou na rua, que foi dada pela mãe, que criou três filhos sozinha. Teve uma vida dura, ao mesmo tempo muito solar, com muitas viradas e agora é atriz”.

Ver minha mãe se tornando atriz aos 68 anos me emociona. E me faz perceber o quanto a vida é grande, quantas coisas, viradas podem acontecer ao longo dela. A vida tem muitas portas e janelas, muitas possibilidades –  Ana Flávia Cavalcanti

"É incrível constatar que a vida tem muitas possibildiades e viradas" (Foto: Hanna Vadasz)

“É incrível constatar que a vida tem muitas possibilidades e viradas” (Foto: Hanna Vadasz)

E conclui: “Termino esse espetáculo falando da minha colheita, do que construí, como a minha casa de 28 portas no Sul da Bahia, na Praia de Algodões, que chamo de Casa Palco. É um sonho levar ‘Conforto‘ para se apresentar lá também. Então, é uma história que começa na escassez, mas tem uma virada bonita. Antes eu ficava tímida de falar da minha casa com tantas portas, de parecer esnobe, mas é isso mesmo: é uma casa que fiz com meu trabalho de atriz, no Brasil, sendo filha de uma empregada doméstica. É para exaltar”.