*por Vítor Antunes (colaborou Sebastião Uellington Pereira)
“Em setembro, se Vênus ajudar, virá alguém“, assim dizia a música de abertura de “O Astro“. Curiosamente, não foi setembro, mas novembro que trouxe de volta Herculano Quintanilha e “O Astro“, novela de Janete Clair (1925-1983) ao Globoplay. A trama foi reapresentada em duas ocasiões: em 11 de fevereiro de 1980 como um telefilme de uma hora e meia, e, depois, entre 2 de fevereiro de 1981 e 3 de abril de 1981 reduzida em 45 capítulos. Ou seja, a trama nunca foi reapresentada, ou disponibilizada, na íntegra. Protagonizada por Francisco Cuoco, em um de seus maiores sucessos da televisão, a novela de 1977/1978 ganhou um remake em 2011, que contou com a participação de Cuoco, porém com o protagonismo de Rodrigo Lombardi. Francisco Cuoco sempre disse que “Herculano foi uma das melhores criações de Janete. Ele tinha uma personalidade versátil, positiva e negativa, e se relacionou com todos os personagens da novela. Foi amado e odiado”.
O personagem de Cuoco era inspirado em Lopez Rega (1916-1989), conselheiro de Isabelita Peron, que era mago, vidente, adivinho e chegou a ser ministro do Bem-Estar Social da Argentina, mas que terminou a vida trabalhando num cabaré no Panamá. Assim foi montada a plataforma de Herculano Quintanilha, que deixou de ser um astrólogo de churrascaria para virar diretor de empresa. Descoberto, acaba a novela como foragido e proibido de voltar ao Brasil. Sobre a escrita do personagem, Janete Clair descreveu, em O Globo: “Eu estava de férias, em Paris. Quando assistia à ópera “Ivan, o terrível”, entrei num clima de entusiasmo necessário. Fui para um hotel onde estava hospedada e em um bloco e papel de carta passei a anotar o que sentia. Imaginei toda a historia do personagem e assim, inclusive, nasceu seu nome: Herculano Quintanilha'”.
A novela foi alvo da Censura, que não deixou que Lili (Elizabeth Savalla) tivesse um filho de Márcio (Tony Ramos) sem que eles fossem casados. Segundo a filosofia dos censores, isso configuraria “amor livre”. Então Janete disse ter que “inserir um casamento muito forçado em um capítulo que já estava totalmente gravado”. Assim sendo, o desenvolvimento da história ficou truncado.
TRANSPARENTES, FEITO BIJUTERIAS
Segundo a Revista Manchete, “O Astro” estreou num momento bem turbulento de audiência, em que, inclusive, dizia-se ser um dos piores tanto da televisão como das novelas. “A audiência média da TV caiu 11 pontos. “Espelho Mágico” [antecessora de O Astro] faz 53% de audiência. Há falta de entusiasmo”, dizia o semanário. Na época, todas as novelas que estavam no ar tinham problemas de audiência. “Sem Lenço, Sem Documento“, novela das 19h; “Nina” e “O Pulo do Gato”, novelas das 22h; e Sinhazinha Flô, das 18h tinham audiências também pouco expressivas. Tanto que Maria Helena Dutra, do JB, disse: “Nunca vivemos um ano com novelas tão ruins”. Mais uma das coincidências: exibidas ao mesmo tempo, na TV aberta, tanto “O Astro“, como “Sinhazinha” voltam ao ar, no Globoplay, no mesmo mês”.
“O Astro” entrou substituindo “Espelho Mágico“. Porém, era uma espécie de “Plano B”, já que a substituta direta da trama de Lauro César Muniz seria “Dancin’Days“, de Gilberto Braga (1945-2021). Esta última foi adiada em razão de Gilberto Braga estar com o ombro deslocado e não poder escrever tanto os capítulos iniciais de “Dancin” como os finais de “Dona Xepa“, que ainda estavam sendo produzidos. Tanto que Gilberto teve que ditar os últimos episódios de “Xepa” num gravador, e o conteúdo era transcrito e digitado por uma datilógrafa.
Conforme “O Astro” avançava, suas virtudes apareciam. Artur da Távola (1936-2008) elogiou a trama e destacava principalmente dois nomes: Tony Ramos e Elizabeth Savala. O protagonista vivido por Francisco Cuoco era, segundo Távola, um misto de “picareta e bom caráter”, em crítica assinada na Revista Amiga. Na mesma, ele aproveitava para críticar outra novela contemporânea a “O Astro“, exibida às 22h, “O Pulo do Gato“, dizendo-a arrastada.
Os bons ficam maus, os doces ficam feras, as feras se amansam. Mas que O Astro se anima cada vez mais, não duvidemos – Artur da Távola, em 1978, sobre O Astro.
BRUXO VERSUS PROFETA
“Crise. Cuoco veste o turbante para salvar as novelas“, dizia a Manchete da época. De fato, os folhetins de televisão não iam bem. Talvez em razão de insucesso de “Espelho Mágico“, “O Profeta“, da Tupi, acabou ganhando repercussão e audiência. Tanto que em situações episódicas, “O Astro” foi vencida por “O Profeta“, mesmo com a Pioneira já estando mal das pernas. Segundo a Revista Amiga, em São Paulo a novela da Tupi fez 37 pontos (arredondados), versus 33 da Globo. Em outras praças a vitória era ainda mais acachapante: 76 em Recife, 75 em Belém e 85 em Florianópolis. Depois, quando a trama global já estava estabelecida em audiência, Lucia Leme (1938-2021) disse: “As duas seleções brasileiras imbatíveis: A canarinho e a de O Astro”. O último capítulo da novela deu 90,3% de audiência no Rio. O jogo do Brasil, 88,3%.
Um dos nomes provisórios de “O Astro” era “O Bruxo“, mudado também para não parecer uma provocação ou uma referência à trama de Ivani Ribeiro (1922-1995). Outro nome proposto para “O Astro” foi “O Todo Poderoso“, que acabou batizando uma novela da Band no ano seguinte. Dionísio Azevedo (1922-1994), que deu vida a Salomão Hayalla, não ia fazer a trama, mas “O Profeta“. O ator preferiu ir para a Globo, não para fazer a novela a qual acabou trabalhando, mas “Que Rei Sou Eu?” novela de Bráulio Pedroso (1931-1990) que 11 anos depois chegaria às mãos de Cassiano Gabus Mendes (1929-1993). Dionísio, segundo consta em O Globo, se inspirou em personagens donos de grandes empresas, como Adolpho Bloch (1908-1995), Assis Chateuabriand (1862-1968) e Rizkalla – um amigo seu, de São Paulo segundo consta na Revista Amiga. Outra das coincidências: Rizkhalla era o primeiro sobrenome cotado para a família de libaneses a qual ele fazia parte, e que mais tarde virou Hayalla. Salomão estaria em 20 capítulos mas ficou em 42. Depois, voltou para o episódio 75.
Quando ainda atendia pelo nome provisório de “O Bruxo”, a novela já contava com 20 atores. Tony Ramos, Elizabeth Savalla, Flavio Migliaccio (1934-2020) e Eloisa Mafalda (1924-2018) já estavam escalados. Consolação, personagem de Mafalda, passou a existir após uma popular contar a sua própria vida à Janete Clair na fila do médico. “Uma senhora, numa sala de espera de consultório, me abordou e disse que a vida dela daria uma novela. E daria mesmo”. Na escalação inicial, também cotava-se que Fernanda Montenegro daria vida à Clô Hayalla, que acabou ficando com Tereza Rachel (1934-2016). O nome da atriz chegou a ser ventilado para viver Amanda, que acabou ficando com Dina Sfat (1938-1988).
Denis Carvalho também estava cotado para fazer a trama, o que acabou não se realizando. Em seu lugar foi escalado Stepan Nercessian, que daria vida ao personagem Márcio. Tony Ramos viveria Alan. Por fim, os papéis foram invertidos e Stepan fez Alan e Tony, Márcio, o protagonista jovem. Por haver sido “rebaixado” em “O Astro“, Stepan ganhou de presente o mocinho da próxima novela das 19h, “Feijão Maravilha“.
Durante a novela, Tereza Rachel sofreu um acidente de carro, no qual fraturou o tornozelo. Seu Passat se chocou contra um ônibus na Estrada da Gávea, no Rio. Já era a reta final da novela. Janete Clair sequer cogitou eliminar a personagem da trama. “Se Tereza não se recuperar a tempo, outra atriz grava em seu lugar. Em momento algum pensei em matar a Clô”, disse à Revista Amiga em reportagem de Arnaldo Rosemberg e Carmen Klay. Por fim, a atriz gravou sentada. Na festa de encerramento da novela, Tereza esteve com a perna engessada. A personagem era tão importante à trama que no remake de 2011 foi ela a assassina de Salomão Hayalla, e foi vivida por Regina Duarte, em seu último grande papel nas novelas.
TRÍVIA
- Daniel Filho dirigiu os 20 primeiros capítulos e o último, de “O Astro“. Gonzaga Blota (1928-2017) o resto da trama.
- O turbante de Francisco Cuoco era uma calça de veludo que foi dobrada como a um torso e colocada na cabeça do ator.
- Para despistar o público, Janete chegou a falar que parte da trama seria inspirada na história do assassinato de Claudia Lessin Rodrigues, em 1977, e o enfoque seria “o desespero de um pai [por Justiça]”, segundo publicado em O Globo. De fato, ela usou algum elementos da história de Cláudia Lessin, segundo consta no Site Teledramaturgia: “Os acusados do crime do Caso Cláudia eram um rapaz viciado em cocaína, Michel Frank, e seu amigo Georges Khour, um cabeleireiro. Na novela, os assassinos foram Felipe Cerqueira (Edwin Luisi), um toxicômano mau-caráter, e Henri (José Luiz Rodi), seu amigo cabeleireiro, o cúmplice. Felipe matou Salomão com uma coronhada de revólver na cabeça”.
- Mesmo tendo sido um dos primeiros nomes a constar na novela, Herculano inicialmente seria vivido por Paulo Gracindo (1911-1995), mas Janete decidiu rejuvenescer o personagem e assim ele foi parar nas mãos de Cuoco.
- O papel que acabou ficando com Carlos Eduardo Dolabella (1937-2003), Natal, inicialmente seria vivido por Roberto Bomfim, que foi remanejado para “Pecado Rasgado“. Dolabella foi fazer laboratório em um açougue, já que na trama era açougueiro. Muitas mulheres o reconheciam, mas uma delas, ao vê-lo num açougue, achou que ele estivesse na bancorrota e disse: “O mundo dá voltas, meu filho. Um dia você chega lá”.
- O assassino da trama seria revelado no capítulo 43. Acabou sendo no último, o 186. Três dias antes da exibição, o Jornal do Brasil publicou em primeira mão: “O assassino de Salomão Hayalla é Felipe”. Janete disse em entrevista à Revista Amiga que, inicialmente, não intencionava usar o recurso do “quem matou”: “[Acho-o] banal, mas infalível”.
- Na novela, o personagem de Tony Ramos tocava trompete, mas na verdade era o filho de Janete, Guilherme Dias Gomes, quem tocava.
- O personagem que mais trocou de roupa foi o de Francisco Cuoco – oito por dia. O que menos trocou foi o de Rubens de Falco (1931-2008). Usou apenas um terno preto por toda a trama
- Cada capítulo de “O Astro” tinha de 10 a 15 páginas datilografadas. Hoje, um capítulo de novela pode passar das 40 – mesmo assim, não impressas, mas disponibilizadas digitalmente em tablets
- Numa época sem Projac/Estúdios Globo, as gravações da série “Ciranda Cirandinha” chegaram a atrapalhar a produção de “O Astro“. Equipamentos também eram divididos, o que faziam com que a novela acabasse sendo gravada nos sábados.
- Na ocasião, dizia-se que “O Astro” era a novela que mais tinha crianças no elenco. Elas ganhavam cachê de figurantes. Cerca de 200 cruzeiros. O salário mínimo em maio de 1978 era Cr$ 1.560,00.
- Inicialmente chamado “Luís“, o personagem foi transformado em mulher para que a atriz Rejane Marques o fizesse. Assim, ele passou a ser chamado “Luísa”
- Conforme citado anteriormente, a família libanesa se chamaria Riskala. Quando a novela deixou de ser “O Bruxo” para “O Astro” o sobrenome dos personagens virou Hayalla
- Anti-herói, estimava-se dois finais para Herculano: em um deles, ele conseguindo envolver de novo a família Hayalla, dividindo com Marcio (Tony Ramos) o comando da família, e outro com ele fugindo após ter seus truques descobertos. O último prevaleceu.
- Os cotados para o assassinato de Salomão Hayalla eram 10, inicialmente: Felipe (Edwin Luisi), Samir (Rubens de Falco), Clô (Teresa Raquel), Youseff (Isaac Bardavid [1931-2022]), Magda (Ida Gomes [1923-2009]), Assunção (Hélio Ary [1930-2011], Pirilo (Ênio Santos [1922-2002]) , Herculano, e Henri (José Luiz Rodi).
- Janete afirmou ao JB que “O Astro” deu muito certo. Foi uma das novelas mais faceis de fazer. Foi até o final, mais ou menos com tudo encadeado”. A autora ressaltou também que chegou a ser ameaçada por telespectadores. “Recebia ameaças em carta e pessoalmente, de telespectadores que não admitiam o fim do relacionamento de Marcio e Lili (Tony Ramos e Savalla, respectivamente)”.
- A trilha internacional de “O Astro” foi editada em duas maneiras: Uma com a logo da Som Livre em espiral azul e verde, típico dos Anos 1970, e outra com o famoso “S” azul e branco que era uma das marcas do selo.
Entre destinos traçados e estrelas imprevisíveis, “O Astro” retorna como quem revive um eclipse do passado, iluminando o presente com seu brilho renovado. A trama de Janete Clair, que em 1977 desafiou crises e encantou plateias, ressurge como uma janela para um tempo em que a ficção tecia debates e sonhos com igual intensidade. No vaivém dos personagens – picaretas e visionários, vítimas e algozes – resplandece o talento que transformou os folhetins em espelhos da alma brasileira.
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