Em entrevista exclusiva, Guti Fraga, fundador do Nós do Morro, fala da expansão da ONG, Dilma, maioridade penal e editais de cultura: “são utópicos”


Em entrevista ao HT, lembrou agressão no Vidigal e ainda falou sobre o bolsa-família. Tudo enquanto acontece a mostra 2015 da ONG. Na programação, um programa de variedades comandado pelo próprio, filmes e peças teatrais

Quando o ator e diretor Guti Fraga se mudou para o Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, logo foi trabalhar como jornalista de “O Pasquim”. Sua primeira matéria de capa foi sobre a vinda de João Paulo II ao país em 1980. Seria a primeira vez que um líder da Igreja Católica viria ao Brasil. Ele juntou a reportagem para o jornal com a que estava fazendo para o “Jornal Mural”, uma espécie de informativo em painéis espalhados em vários pontos da comunidade. Além de revelar que o pontífice passaria por duas bocas de fumo, questionou o fato de calçarem um caminho apenas para João Paulo II passar, sendo que “uma senhora no seu dia-a-dia passava com seus filhos por aquele lugar” e nada era feito. Reportagens publicadas, ele foi beber com amigos no Vidigal. Eis que um carro para, um homem desce, bate em seu ombro, o agride e sai com o aviso: “isso aqui é para você, jornalista filha da puta (sic)”. Morria ali o Guti jornalista, mas estava por ganhar cada vez mais força o Guti agitador cultural, fundador do Nós do Morro na mesma comunidade.

602560_222906521174164_227298191_n

(Foto: Reprodução)

“Via muitas crianças no morro sem acompanhamento escolar. Pedi ao centro espírita um espaço, criei uma metodologia e passei a dar aulas de reforço escolar. Queria montar um projeto de teatro no Vidigal, mas não simplesmente montar um grupo de teatro, e sim um grupo de teatro com filosofia de vida. A ideia era de pensamento coletivo.” Há 29 anos ele leva arte e cultura para um público à margem do processo, mesmo tendo enfrentado a falta de apoio do Estado e facções criminosas. “É questão de respeito. Eu acho que são pessoas que sempre respeitaram a gente também. Hoje a nossa respeitabilidade é a mesma. Se você está, seja em Nova York ou em Paris, e se você não pode fumar, não pode. No Vidigal é a mesma coisa”, disse. Hoje, o Nós do Morro chegou a Saquarema, ainda no Rio, e continua tirando crianças da criminalidade e formando artistas cênicos a níveis de muitos que hoje frequentam a sua televisão: Thiago Martins, Roberta Rodrigues e Jonathan Haagensen, por exemplo.

Em entrevista ao HT, Guti falou de PT, redução da maioridade penal, bolsa família e editais de cultura. Tudo enquanto o Vigidal recebe a mostra 2015 do Nós do Morro. Na programação, um programa de variedades comandado pelo próprio, filmes e peças teatrais. Até a segunda semana de agosto, três peças de William Shakespeare serão encenadas pelas próprias crianças, revivendo um dos dramaturgos que sempre fez parte da história do projeto. Vem!

HT: Por que você saiu de Goiânia e veio para o Rio de Janeiro?

GF: Eu fazia parte de um grupo de teatro goiano e a gente queria se expandir. Tínhamos uma kombi e viajávamos para o Paraná, São Paulo e Minas Gerais apresentando “Sonho de Uma Noite de Verão”, de William Shakespeare. No Festival de Ouro Preto eu recebi a recusa de uma bolsa de estudos para estudar em Moscou. Aí decidi ir para a Argentina morar com alguns amigos. Morei em Medonza e Córdoba fazendo Medicina pela manhã, Agronomia pela tarde e Teatro à noite. Nunca mais quis voltar para Goiás e decidi ir morar no Rio, onde fiz Jornalismo na Universidade Estadual.

HT: E chegado ao Rio, escolheu o Vidigal por qual motivo?

GF: Eu sempre fui apaixonado por Veneza e achava o Vidigal a cara da cidade. Sempre teve um astral único. Tinha uma coisa importante porque onde eu fui criado não tinham diferenças sociais. As pessoas se igualavam pela cultura. Na época, tudo no morro era de madeira, era uma favela e eu me mudei para um duplex. Ali perto, só moravam artistas como Gal Costa, Lima Duarte, Claudio Marzo e pessoal do Barão [Vermelho]. O lugar respirava cultura.

HT: Instalado no morro, quando nasceu a ideia de criar a ONG?

GF: Trabalhava com a Marília Pêra e fomos para Nova York. Lá, eu, do morro, queria ir para o Brooklyn enquanto todo mundo ia para a Broadway. Eu ia às peças da off Broadway em salas que cabiam poucas pessoas, mas tudo era muito bem acabado. Isso inspirou loucamente a minha vida e voltei à estaca zero. Falei: “vou fundar um projeto”. Cheguei no Vidigal, agradeci a Marília e fundei o Nós do Morro.

HT: Você criou um coletivo em uma favela. Como era a condição da sua família?

GF: Paupérrima. Não existia essas coisas de escola particular. As pessoas disputavam a escola pública. A maioria dos meus amigos tinha muita grana. Eu comia farofa e eles caviar, mas nunca fui discriminado.

Guti no Vidigal com o Dream Team do Passinho (Foto: Divulgação)

Guti no Vidigal com o Dream Team do Passinho (Foto: Divulgação)

HT: Este ano o Nós do Morro apresenta os resultados de uma intensa pesquisa feita em 2014 em comemoração ao aniversário de 450 anos de William Shakespeare. Por que escolher o dramaturgo para trabalhar com os meninos do projeto?

GF: Além de, como você disse, ser aniversário do Shakespeare, eu costumo falar que ele é nosso brother há muitos anos. Foi com trabalhos dele que conseguimos o patrocínio do Programa Petrobras Cultural, além do apoio social que a organização mantém com a Petrobras. E ele atravessa gerações. Eu estava assistindo as crianças apresentando “Romeu e Julieta” e chorei muito com aquela nova geração com tanta entrega, com tantas possibilidades na vida. Essas coisas me emocionam muito. Então por isso estamos com três peças: “Tempestade”, “Romeu e Julieta” e “A Megera Domada”.

HT:  A 16ª edição da Mostra Nós do Morro tem também o “Campinho Show”, programa que você apresenta como se fosse um show de calouros do Chacrinha com crianças. Como surgiu essa ideia?

GF: Ele é uma inspiração que veio em 1997. Eu fazia uma peça de Martins Pena e só trabalhava com adolescentes. Tinha uma cena que uma senhora que morava perto fazia uma participação. Ela era uma escrava e não fazia nada na peça. E tinha o filho dela, George, que na época, era um bebê. Ele, na verdade, era um presente por eles serem negros. E a Mary Sheila, que hoje todos conhecem, ficava no meu portão chorando querendo também fazer a peça. Acabou que eu criei uma cena minimalista para ela e passei a  ver que precisava de mais espaço para essas crianças. Começou com o “Show das Cinco”, um programa de auditório, que eu tinha uma câmera de isopor e contracenava, tinham as gutetes e o grupo Nós do Pagode cantava nos meus inventados intervalos comerciais.Dali nasceu o “Show das Sete” que lançou vários funkeiros. Eu cheguei a juntar 500 pessoas.

11057749_996504083734620_5957277122370562263_n

Guti durante uma edição do “Campinho Show” (Foto: Divulgação)

HT: Mas o “Campinho Show” tem uma diferença que é a questão da localização…

GF: O Vidigal é muito partido. Se o garoto vier do campinho à noite para onde eu fazia o “Show da Cinco” ele ia ter que gastar com mototáxi. Com esse dinheiro ele conseguiria comprar oito pães. E era uma fase de briga de facção, a gente se apavorava. Então decidimos armar tudo lá no Campinho e onde fazemos atualmente.

HT: De segunda a quinta, você está no Vidigal, à frente dos novos projetos da companhia, e de quinta a domingo, coordena as atividades em Saquarema. Por que expandir para lá?

GF: Minha mãe mora lá e eu tenho uma casa lá. O teatro que a gente usava era em Bacaxá [bairro de Saquarema] e não conseguimos mais pagar o aluguel. Aí minha irmã cedeu um terreno e eu consegui improvisar um teatro. É uma temporada em pleno meio do mato.

HT: Mesmo com essas dificuldades, permanece firme e forte?

GF: É um novo momento de transformações na sociedade. A sociedade atual necessita de oportunidades, de sonhar. Lá estamos com duas histórias de Machado de Assis.

11246979_622955631169249_2872883942558198161_n

(Foto: Reprodução)

HT: Já que falou em sociedade, o que achou da aprovação da redução da maioridade penal para crimes hediondos?

GF: Eu acho que, pelo amor de Deus, vamos criar uma estrutura legal. Vamos acompanhar essas crianças na escola, vamos fazer um segundo turno escolar, vamos dar oportunidade delas comerem direito.

HT: Eduardo Cunha, o presidente da Câmara dos Deputados, é um golpista?

GF: (Gargalha).

HT: É ou não?

GF: Quero que minha resposta seja essa gargalhada. (Ri mais).

HT: E o Bolsa-Família? É assistencialismo ou uma medida eficiente?

GF: Eu acho que a ideia é até legal. Talvez necessite que se limpe alguma coisa nessa história. Mas temos que ver que favoreceu muita gente que precisava. Eu conheço famílias bem pobres que o Bolsa-Família realmente salva.

HT: Falemos de Dilma: deixa ela onde está ou impeachment?

GF: (Gargalhada). Não, impeachment não. O que tem que fazer é mexer nessa equipe. A conturbação que acontece hoje na política brasileira é por uma questão partidarista. E eu falo isso, particularmente, porque sou da arte. A arte não tem partido político.

HT: E os editais culturais, como a Lei Rouanet do Ministério da Cultura? Abraçam ou excluem?

GF: São utópicos. Se você comparar um grupo de teatro do Rio e São Paulo com um do interior não rola. A centralização é muito grande. Temos que descentralizar. Tem que ter uma parceria tipo os Pontos de Cultura do Ministério. É importante os municípios participarem mais. As coisas tem que acontecer de dentro para fora. E o Gil [Gilberto, ex-Ministro da Cultura] teve esse olhar. O nosso desejo em Saquarema, por exemplo, é fazer seis meses de temporada no meio do mato e depois rodar pela Região dos Lagos. E só depois vir para o Rio. Sabe por que? Porque as coisas tem que acontecer de dentro para fora.

Serviço

MOSTRA NÓS DO MORRO 2015

Espetáculos:

“Era uma vez a tempestade – Um Shakespeare para todas as idades”

Elenco: 25 alunos/atores adultos do grupo

Direção: Cico Caseira

Local: Teatro do Vidigal

Dias e horários: De 3 de julho a 02 de agosto. Sábados e domingos, às 21h.

“Romeu e Julieta”, de William Shakespeare

Local: Casarão do Nós do Morro

Rua Doutor Olinto de Magalhães, nº54, Vidigal.

Dias e horários: De 11 de julho a 02 de agosto. Sábados e domingos, às 19h.

“Domando a megera”, de William Shakespeare

Local: Teatro do Vidigal

Rua Doutor Olinto de Magalhães, nº16 – Vidigal

Dias e horários: De 7 a 9 de agosto. De sexta a domingo, às 21h.

“Abalou – Um musical funk”

Local: Casarão do Nós do Morro

Rua Doutor Olinto de Magalhães, nº54, Vidigal.

Dia e horário: 5 de agosto. Quarta, às 19h30

“É proibido Brincar”

Local: Casarão do Nós do Morro

Rua Doutor Olinto de Magalhães, nº54, Vidigal.

Dia e horário: 12 de agosto. Quarta, às 19h30

Cinema:

Cineclube especial “Ciclo: Processos Criativos”

De 06 de julho a 03 de agosto.

Segunda, às 19h30

“Nós do Morro Domando a Megera”

De 27 de julho a 02 de agosto.

Segunda, às 19h30

Cine Infantil de Férias

Dias e horários: De 23 a 26 de julho. De quinta a domingo, às 17h.