Amor de boteco: a arte do encontro na Rua Alice, ponto de cultura no Rio de ontem e hoje em tempos de pandemia


Nessa crônica, o jornalista Alexei Waichenberg afirma: “Amor de boteco devia ser como amor de boate, sem dia seguinte. Mas, se foi num sonho lindo, peço a gentileza de não me acordarem”

Ilustração (feita exclusivamente para essa crônica), assinada pelo artista plástico Leandro Figueiredo, atualmente morando no Porto, em Portugal

*Por Alexei Waichenberg

A proposta da semana passada era continuar uma série sobre o Amor Astral, a traçar alguns perfis nada vetoriais. No entanto, quando estive no Rio de Janeiro, na semana passada, tudo o que eu mais queria era juntar os amigos e sentar num boteco para molhar a palavra, contar e ouvir os causos de amor na pandemia.

E sigo na proposta astrológica, a tentar driblar Saturno, o Sr. do Tempo. O fato é que o material humano está em falta. Já não há respiradores suficientes, tampouco arroubos de envolvimentos e a criatividade se esvai. Decidi, portanto, relembrar um amor de boteco. Que sirva de inspiração, entre um traçado e uma brevidade.

Uma discussão inflamada na esquina da Rua Alice, ponto de cultura na cidade, chamava a atenção dos jovens estudantes de artes cênicas, que por ali circulam. É que falávamos da produção, do texto, da direção, do figurino, da cenografia, da interpretação dos atores de um grande espetáculo às vésperas de sua estreia.

Eu só não podia imaginar que antes estrearia um novo sentimento, ao que cabe o trocadilho, da máxima do poetinha, de que a vida é a arte do encontro. Pois bem, o que rolou foi um encontro de arte.

Na diagonal do desejo, quase histérico, de uma jovem linda e suas aspirações, avistei um corpo esguio de um homem, que disfarçava a beleza nos olhos ingênuos e azuis, na boca suave, na pele rosada, no seu criterioso cuidado de ser percebido. O garçom Manu ia trazendo mais uma, sem sequer imaginar que abria devagar as portas de um novo desejo. Nada de petiscos, o olhar já me alimentava sem os cuidados de sua resposta impulsiva. Sem imaginar o poder que a despretensão promove e a sedução da singeleza, arrisquei um convite para sairmos dali e podermos dividir as nossas almas com alguma privacidade, desconsiderando a combustão do desejo em sigilo. Àquelas tantas que o Manu nos serviu, acrescentaram-se doses envelhecidas, cortaram-nos o pudor e  a corte. Trouxeram-nos o ardor e a noite. Mandaram-me um amor e a sorte.

Amor de boteco devia ser como amor de boate, sem dia seguinte. Mas, se foi num sonho lindo, peço a gentileza de não me acordarem.

*Alexei Waichenberg, jornalista on the rocks