Uma das pioneiras do feminismo nos 80’s cantora Joanna reivindica transparência das plataformas de streaming


Uma das cantoras de vanguarda no posicionamento feminino – desde sempre cantou o amor entre duas mulheres -, Joanna lançou “Aqui e agora” e diz: ‘Não acredito no sucesso fabricado, que é efêmero. O streaming remunera o artista de forma equivocada”

*Por Vítor Antunes

Ícone oitentista e uma das cantoras de vanguarda no posicionamento feminino na MPB, Joanna colhe os louros do seu mais recente álbum “Aqui e agora“, lançado no ápice da pandemia. O trabalho marca a singularidade musical da artista, que disponibilizou o álbum, majoritariamente com canções inéditas, depois de quase 20 anos. Firme sempre na questão feminista e feminina, ela, lá no início dos 80’s, polemizou com a canção e o clipe de “Teu caso sou eu”, que trata sobre o amor lésbico. Joanna, cujo nome de batismo é Maria de Fátima Gomes Nogueira, é incisiva com o atual mercado fonográfico: “O streaming remunera o artista de forma equivocada. As pessoas acontecem do nada e vão embora na mesma proporção”.

“Não acredito no sucesso fabricado, que é efêmero. Acredito na carreira construída paulatinamente, como eu fiz com a minha – Joanna, cantora

Joanna e os streamings: “Acho um sistema que remunera o artista de forma equivocada. Precisamos urgentemente de transparência” (Foto: Divulgação/Washington Possato)

Marca dos 41 anos de carreira, o álbum “Aqui e Agora” foi inicialmente apresentado pela cantora em Portugal, mas, por conta da pandemia da Covid, ela seguiu divulgando as músicas em lives nas redes sociais. O trabalho marca ainda o retorno da parceria da cantora com Sarah Benchimol, com quem escreveu várias canções em seus seis primeiros discos. O primeiro LP de Joanna foi lançado em 1979, momento em que o historiador musical Rodrigo Faour costuma chamar de “Boom Feminino na MPB”. À época, Joanna participou, inclusive, do especial “Mulher 80”, um dos primeiros a trazer um elenco de mulheres para discutir questões inerentes ao gênero. Joanna frisa que ainda hoje “a luta da mulher não acabou. Estamos longe disso”.

A onda atual de ódio, preconceito, homofobia, lesbofobia, transfobia

Embora seja hoje uma pauta recorrentemente discutida entre as artistas e seus conteúdos, Joanna trouxe, através de “Teu Caso sou Eu“, de 1986, uma das primeiras músicas de sucesso popular a ter um casal lésbico como personagem central: “Achei super pertinente, como acho até hoje, dar destaque a esse tema. À época houve algum alvoroço, mas acho que a arte se presta a isso, por ser, em si, polêmica”. Não apenas a canção gerou celeuma, mas o clipe da canção, também. Produzido pela extinta TV Manchete, o número musical trazia de maneira discreta, porém, contundente, as mulheres ali representadas. A TV dos Bloch recebeu uma enxurrada de críticas e cartas reativas. “O clipe era super elegante ao abordar um relacionamento conturbado entre mulheres. Hoje, mais que nunca, precisamos de conscientização, de liberdade com seu próprio corpo, e não dessa onda de ódio, de preconceitos, de homofobia, lesbofobia, transfobia e outros. A diversidade precisa ser respeitada e, como diz Milton Nascimento, ‘qualquer maneira de amor vale a pena’…”

À época achei super pertinente – como acho até hoje – dar destaque a esse tema. Houve algum alvoroço, mas acho que a arte se presta a isso, por ser, em si, polêmica. (…) .A diversidade precisa ser respeitada – Joanna, cantora

“É super pertinente dar destaque a esse tema. A diversidade precisa ser respeitada” (Foto: Divulgação/Washington Possato)

Novo álbum e streaming

Em 2019, após haver completado 40 anos do lançamento de seu primeiro LP, “Nascente”, a cantora ainda estava preparando “Aqui e Agora”, quando explodiu a pandemia de Covid-19. A crise sanitária oriunda do Coronavírus forçou a mudança de planos tanto das gravações como do lançamento. Porém, o elo que une os dois discos está ali presente e não apenas através da presença da voz que os compõem, mas a da compositora Sarah Benchimol: “Minha parceria com ela é coisa de alma, simbiose mesmo. Estamos juntas neste projeto e ter podido ouvir seu coração foi um dos grandes presentes desse ano”, exalta.

Sarah esteve presente em canções como “Descaminhos” (1979) e Momentos (1980), que serviram para apresentá-la ao mercado fonográfico brasileiro. Entre ambas a parceria foi mais intensa, pelo menos até 1984. Em 1986, a carreira da cantora toma um rumo mais popular e é alavancada com canções escritas pelos hitmakers Michael Sullivan e Paulo Massadas. Essa mudança estilística incomodou os mais puristas, acostumados com uma Joanna mais cult.

Esse novo conceito dos streamings, pois que é uma realidade, mas, sinceramente, acho um sistema que remunera o artista de forma equivocada. Precisamos urgentemente de transparência, isso é voz geral dentro do meio – Joanna, cantora

Perguntamos à cantora se essa transição se deveu a uma questão, pessoal ou a uma pressão da gravadora de então – a RCA Victor. Ela explica: “Dediquei meu canto para que milhões de pessoas pudessem me ouvir e através daquilo que acredito que possa modificar a vida das pessoas pra melhor. Se sou uma artista consagrada foi por manter essa sintonia fina com todos os tipos de público. Um artista na sua inteireza canta aquilo que lhe toca o coração. Nada do que fiz no passado destoa em grandeza do que faço hoje. O artista tem essa liberdade. Fazer um repertório popular não quer dizer que minimiza o que já foi feito. Eu continuo gravando os grandes compositores, mas abro meu leque para ser uma cantora das multidões. Quanto à gravadora, nunca deixei que houvesse nenhum tipo de interferência por parte dela. Não acredito no sucesso fabricado, que é efêmero. Acredito na carreira construída paulatinamente, como eu fiz com a minha”.

A artista ressalta também que o panorama atual da fonografia brasileira mudou muito. Oriunda da época da mídia física, a cantora é crítica do streaming tanto pela remuneração, que acredita acontecer de maneira equivocada, como o atual lançamento de singles, que para ela, acontecem de maneira “fria”: “Nós da geração do vinil, de qualquer forma, temos que adotar esse novo conceito dos streamings, pois que é uma realidade, mas, sinceramente, acho um sistema que remunera o artista de forma equivocada. Precisamos urgentemente de transparência, isso é voz geral dentro do meio. (…) Nas década de 1980 e 1990 havia todo um marketing preparado para aquele determinado artista, algo que acontecia com meses de antecedência, com toda uma delicadeza para um lançamento. Embora não se possa dizer que não haja isso hoje, os enfoques são diferentes. Essa coisa sexista me incomoda os ouvidos, a internet pulverizou muito isso, as pessoas acontecem do nada e vão embora na mesma proporção. Democratizou? Sim, mas perdeu o glamour!”. Quanto aos singles, a cantor também é direta: “A feitura do single virtual é muito fria, muito mecânico. O único aspecto positivo é a liberdade de direcionar seu trabalho sem interferências de uma multinacional. Isso foi uma conquista: ser dona daquilo que é seu”.

Joanna, Canção Mulher

O já citado “Nascente” trouxe um forte protagonismo feminino, tanto na voz, como nas composições. Momento em que as mulheres conseguiram conquistar espaço no mercado fonográfico brasileiro. Isso aconteceu de forma tão intensa que faz nascer a alcunha de que o Brasil era “o país das cantoras”. Esse ponto de partida costuma ser atribuído ao ano de 1979. Perguntamos à Joanna se ela enxerga a si como uma das pioneiras desse levante feminino. Ela diz: “Eu, enquanto mulher suburbana, tive que sair de casa, de uma família tradicional, atrás do sonho de ser ouvida. Enfrentei muitos preconceitos na época, frutos de uma herança histórica patriarcalista que sempre nos podou de forma cruel (…) A nossa voz em 1979 ecoou de forma muito bem-vinda no cenário da música brasileira. Me sinto responsável por abrir caminhos para outras que queriam o mesmo destino, sim. Nós hoje somos as vozes de muitas!”

Ainda sobre o ano de 1979, tido como marco musical feminino, e momento em que foi lançada, Joanna conta-nos sobre as razões que a fizeram escolher este como seu nome artístico, já que seu nome de batismo é Maria de Fátima: “Enquanto escolhia meu repertório meu produtor na época acompanhava esse boom de nomes femininos , eram várias as “Fátimas”. Como não sabiam qual delas iria vingar fui sugerida a escolher um, entre três nomes. Optei por Joanna, que achei super simpático por trazer o meu olhar sempre guerreiro pela vida”. Segundo apuramos, os outros nomes eram Mariana e Juliana.

Eu, enquanto mulher suburbana, tive que sair de casa, de uma família tradicional, atrás do sonho de ser ouvida. Enfrentei muitos preconceitos na época, frutos de uma herança histórica patriarcalista que sempre nos podou de forma cruel – Joanna, cantora

Joanna em “Mulher 80”. Especial discutiu o protagonismo feminino na sociedade (Foto: CEDOC TV Globo)

O último ano da década de 1970 marca, também, a estreia de “Malu Mulher”, seriado que afamou-se por discutir questões sensíveis como a emancipação feminina, o direito ao aborto e ao orgasmo em plenos Anos de Chumbo. O sucesso absoluto do seriado acabou por gerar, no ano seguinte, o programa “Mulher 80”, movimento que há 42 anos já reivindicava o protagonismo feminino e o posicionamento afirmativo das moças. E Joanna, as lutas da mulher de 1980 são as mesmas da mulher de 2022? E, havendo um programa como aquele quais poderiam ser as pautas de um hipotético “Mulher 2022“. Conta-nos ela: “Discutíamos, no programa, a importância de todas as liberdades que nós mulheres sempre reivindicamos. Nós éramos porta-vozes de muitas vozes caladas o que deu ao programa uma chancela de audiência incomum na época. Acho que temos muito boa gente para compor um “Mulher 2022”, as possibilidades são muitas. Agora dizer que a luta acabou, longe disso. Estamos mais fortalecidas, mas a luta é a mesma. Com algumas conquistas, é claro. Porém, me angustia e entristece ver um Brasil protagonizando o feminicídio, por exemplo. Precisamos mudar esse país!”, frisa.

Ainda sob o impacto de “Malu Mulher” e “Mulher 80”, quando a Globo deixou de exibir a série protagonizada por Regina Duarte, a atriz foi contratada por uma produtora independente, onde esteve à frente da série “Joana”, razão pela qual a cantora homônima foi escolhida para cantar o tema de abertura da série, que tal como aquela emitida pela Vênus Platinada, também discutia questões inerentes à causa femininas.

Me angustia e entristece ver um Brasil protagonizando o feminicídio, por exemplo. Precisamos mudar esse país!  – Joanna

Pandemia e sentimentos

Para Joanna, o início do período pandêmico foi fase de releitura de sentimentos: “A gestação de “Aqui e Agora” foi acompanhada de muitos sentimentos. A pandemia no seu auge me proporcionou uma reflexão sobre a vida, sobre aspectos que passam ao largo de nossa caminhada. A minha grata surpresa foi a de poder subestimar as minhas índoles más e valorizar o meu lado generoso, diante do exercício de olhar o outro com a mesma gratidão com que olhamos para nós mesmos. Ter olhado para mim mesma me fez emocionar em muitas vezes. Acho mesmo que a vida é isso: vivemos numa sociedade  planetária, cheias de contradições, precisamos fazer o nosso melhor”.

“A pandemia no seu auge me proporcionou uma reflexão sobre a vida, sobre coisas que passam ao largo de nossa caminhada” (Foto: Washington Possato)

Em um dos manuscritos de Fernando Pessoa (1888-1935), ele diz que “o artista como artista sente menos do que os outros homens, porque produz ao mesmo tempo que sente (…) Para o poder fazer, deve poder lembrar-se e o lembrar-se indica o ter sentido realmente, ainda que sem consciência disso”. Entre lembranças, questionamentos e potência, Joanna transita entre o aqui e o agora, com a atemporal coragem de ser o que é, e como ela própria diz no texto de apresentação de seu novo álbum: “vive um tempo sem tempo”.