O bom filho à casa retorna e O Rappa está de volta à sua casa. A caravana intergaláctica rastafári retornou neste fim de semana à Fundição Progresso para saudar seus súditos e demarcar sua cadeira cativa, com direito à matinê no domingo – afinal, seu público é predominantemente jovem. Desde a estreia da turnê “Nunca Tem Fim…”, ano passado no Citibank Hall RJ, o grupo fez como a turma que o segue, passeou bastante, visitou vários “picos”, curtiu altas “ondas” pelo Brasil afora e participou de festivais de prestigiados como o Lollapalooza.
Agora, o grupo finalmente volta ao lado B. A inclinação se reafirma na abertura do show, que levantou a plateia abrindo espaço para a dupla de funk Cidinho e Doca cantando “Eu só quero é ser feliz/Andar tranquilamente na favela onde eu nasci/E poder me orgulhar/E ter a consciência que o pobre tem seu lugar/Fé em Deus, DJ!”. A casa tremeu, carioca que não se levanta com um funk, não faz jus ao título.
Mas quando o vocalista Marcelo Falcão entra em campo, o público de cinco mil pessoas da Fundição Progresso vai ao êxtase. Punho em riste, saudação a um novo (e velho) Jeová… É quase isso. Falcão começa falando de Deus, de fé, de orgulho do trabalho, da luta da periferia e das mazelas sociais. E parece fascinar aquela multidão jovem que o segue religiosamente há anos com estas mensagens de protesto e luta, sempre com antídotos de força e otimismo. A maioria tem de 20 a 30 anos e já o segue em todos os shows há pelo menos 10 anos.
O novo show leva a mesma receita de sempre, esculpida em dub, reggae, rock e hip hop, mas abre mais espaço para falar de fé e de Deus. Nas primeiras músicas, essa juventude com cara de quem só pensa em se divertir delira ao som de “Anjos”, que diz “Pra quem tem fé, a vida nunca tem fim”, e em “O horizonte é logo ali”, fecha os olhinhos com os versos “Antes de soprar o vento louco/O equilíbrio, o equilíbrio de Deus/Elevando, elevando os pensamentos/Pensamentos meus e seus”.
Pensamentos parecem mesmo convergir entre criador e expectador. O músico de 29 anos Carlos Alberto Valentim disse ter fé no seu trabalho e na sua música, que o fazem chegar a Deus. E, quanto ao O Rappa, tem muita fé também. “Levo fé no Falcão sim, ele parece ser bom e espiritual, ele sempre me incentiva desde pequeno”, afirma. A produtora de eventos da mesma idade, Sabrina Bezerra, diz ter fé na família, nos amigos e, é claro, no Falcão: “A mensagem dele é boa”, diz. Já o vocalista da banda que fez a abertura do show, ZNVG (Zona Norte e Vigário Geral), André Machado, vai mais além: “tenho fé na luz suprema que vem de outras galáxias, nos ensinamentos ancestrais e milenares, em Deus que é a natureza, a água das cachoeiras, as folhas que curam…”. (É melhor parar antes que ele chegue depressinha ao Nirvana…)
As músicas novas do álbum já se tornaram hit nas rádios e são cantadas pelos fãs durante o show, mas clássicos de 20 anos de estrada como “Mar de gente” (aquela que diz “Aiôa ê ê, Aiôa é!”) e “Hey Joe” (versão do clássico de Jimmy Hendrix, que anda embalando a trilha do polêmico longa “Ninfomaníaca”, de Lars Von Trier, na voz de Charlotte Gainsbourg) ainda alucinam. Nesta segunda, a empolgação é tanta que uma situação inusitada acontece enquanto Falcão versa algo como dizer que “o crime não compensa”. Uma multidão abre espaço na pista. Do alto parece uma briga. Socorro! Engano. É aquela famosa roda de roqueiros, onde eles se lançam uns aos outros. Mas tudo orquestrado pela turma, parecendo ser controlado telepaticamente pelo guru espiritual Falcão.
Nada foge do controle dessa versão brasuca do Sai Baba, um espécie de avatar Rastafári-Falcão. Bom, na verdade, quase nada, pois, em um dado momento a música subitamente para e as luzes se apagam. Falcão percebe a briga na pista, antes de todos, e manda desligar tudo: “Ah! Não acredito, a gente é uma família e vocês estão se desentendendo. Vou parar tudo para vocês pensarem no que estão fazendo”, diz, enquanto aguarda junto com a multidão os dois valentões esfriarem suas cabecinhas de 220 volts. Em instantes a briga acaba, a multidão tem medo que ele nem volte mais ao palco, ovaciona os desviados e clama por ele. E Falcão volta como aquele mestre oriental que deu o devido corretivo. A difícil missão de apresentar um manual de noção e boas práticas para esta geração, na linguagem “malandreada” da rapaziada, essa sim, parece nunca ter fim.
Num momento mais dub do show, o maestro Falcão baixa o clima e puxa um solo poderoso do baixista Lauro Farias. Ele escolhe três pessoas da plateia e os coloca no palco. Uma menina, orgulhosa, cantava com a mão no peito para o público. Era quase um culto de alguma seita de doidões. Mas parece funcionar, pois quase todos têm fé em alguma coisa, ao menos no mestre Falcão. Agora fica fácil entender como Falcão namorou as mulheres mais lindas do Brasil. Se essa espécie de hipnose funciona com a multidão, com uma mulher apenas deve funcionar em segundos.
Além dos alternativos, patricinhas e descoladas vidradas também não faltam no espetáculo. A jornalista esportiva de 34 anos, Samira Ponce, que faz parte do time das bonitinhas, disse que tem fé em Jesus Cristo, e no O Rappa, já que acompanha há muito tempo “e com muito amor” a banda, diz ela. Amor, ou qualquer outra coisa que o valha ou saia fumaça, parece ser o ingrediente secreto que conduz a banda e público ao nirvana durante seus 20 anos de sucesso e mais de 5 milhões de cópias vendidas de seus nove álbuns e quatro DVDs.
Fotos: Divulgação
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