Elza Soares não é a mulher do fim do mundo apenas. Mas também responsável por sua recriação e transformações pelas quais atravessa em um movimento constante e perturbador. Elza, mulher, é Deus, como sentencia no nome de seu mais recente trabalho, em que equipara o poder feminino ao do criador do universo. “Deus é mulher”, garante, buscando desconstruir o conceito secular da imagem do homem como o pai maior das forças que regem o planeta.
Levada pelo samba e por todos os gêneros dele decorrestes, Elza entrará em estúdio para gravar o 82º álbum da sua carreira. Também se prepara para uma turnê internacional. Mas, amanhã, vai sacudir a orla de Copacabana, cartão postal da cidade, ao ser coroada madrinha do bloco Alegria Sem Ressaca, que desfilará, a partir das 9h, com a missão de alertar os foliões sobre a dependência química. É um bloco de perspectiva sociopolitizada, cuja causa foi abraçada pela artista que, casada com Garrincha viveu o horror do alcoolismo do marido e mergulhou no mundo das drogas após a morte do filho, conforme revelou na biografia recentemente lançada por Zeca Camargo. “Eu subi o morro, cheirei cocaína, eu estava sem saída”, relatou Elza ao jornalista, tornando público, pela primeira vez, o seu drama como ex-usuária de drogas.
Quando o Carnaval passar, Elza Soares, que estará na Sapucaí como destaque da Mocidade Independente de Padre Miguel, escola do coração fundara no bairro em que viveu, vai percorrer palcos da América Latina com a certeza absoluta de seu lugar no mundo. “A carne mais barata do mercado já foi a carne negra, não é mais. Quando canto “A carne negra” estou falando por mim e por uma etnia. Por que tem que ser a mais barata?”, questiona a cantora, para logo em seguida completar: “Todas as carnes negras têm que ter consciência disso. Vejo todo mundo falando ‘sou negro, sou negro’, mas não tem que ser assim. Vai à luta, vai estudar, buscar os seus direitos. E se vive no chão, viva com dignidade. É isso o que nós, negros, temos que fazer. Não tem mais tempo para ficar chorando. Acabou, abre caminho e segue”.
As questões complexas, Elza Soares busca simplificar sem, no entanto, deixar de polemizar e impressionar, pois que o destino não lhe fora tão generoso. “Eu nunca precisei levar uma vida feminista. Eu nasci mulher, negra e pobre. Eu só tive que lutar pelos meus direitos naturais de vida. Eu sempre pensei: ‘Não mereço ter uma vida ideal e digna só por que sou mulher e negra?’ Batalhei muito por esses direitos que me pertencem. A minha lei sou eu quem faço, mostrando e afirmando quem sou”, afirma Elza.
A intérprete avalia que o tempo cíclico sempre denotou-se espinhoso, apesar da suposta leveza e democratização apregoada pela modernidade. “Não há época mais antiga ou mais conservadora. Está tudo a mesma coisa. Homofobia para todo lado, racismo, violência escancarada, ideias reacionárias. Eu não vi nada mudar, muito pelo contrário”, analisa. Para ela, o importante é continuar debatendo, mostrando, sem brigar, sem ofender, apenas evidenciar que temos o direito de ser quem somos. “O meu país é o meu lugar de fala’, então eu estou falando, só isso”, assinala a diva.
Elza está em perfeita sintonia com o bloco de que será madrinha e com a folia. Afinal, são 81 carnavais, todos vividos com coragem e liberdade. E sobre a festa, é enfática: “O Carnaval faz parte da democracia. É uma coisa maravilhosa do Brasil. É o momento em que você se liberta, alivia as suas dores e angústias vividas durante o resto do ano. É quando se desliga dos ‘nãos’ da vida. Não, não, não e no Carnaval é sim. É quando a carne se mostra viva”, finaliza.
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