*Por João Ker
A humanidade sempre teve medo do desconhecido e do diferente. Civilizações já foram dizimadas, monstros criados, mitos perpetuados e etnias perseguidas por pessoas que, frente ao desconhecido, não sabem como agir – ou reagir. Na cultura pop o esquema não é diferente. Sempre que alguma proposta nova consegue surgir em meio ao emaranhado de segmentos pré-existentes e já estabilizados, o público, a mídia e a maioria dos próprios artistas encaram com desconfiança. Isso aconteceu com Madonna, David Bowie, Prince, Lady Gaga, Lana Del Rey e, agora, a mais nova a se juntar ao time é Viktoria Modesta, a “primeira popstar biônica” do mundo.
Não se sinta mal caso você não conheça esse nome. Viktoria Modesta é um fenômeno do século 21, fruto do mundo globalizado e conectado pela internet. Isso significa que sua ascensão foi rápida, seu nome se alastrou pelos quatro cantos do universo online e, antes que as pessoas se dessem conta (ou até ela mesma), a garota já havia se transformado em um viral. “Biônico” significa que a garota de 26 anos, a qual nasceu com uma má formação na perna e decidiu amputá-la aos 20, usa próteses super tecnológicas e cheias de fios, mecanismos e luzes. Mas, quando foi tudo isso? Há exatos quatro dias, quando o canal britânico Channel 4 postou o videoclipe de Viktoria para a música “Prototype”, anunciando-a como “um novo tipo de artista pop”.
Vídeo oficial de “Prototype”
O clipe, crianças, pode ser considerado como o grande responsável pelo nome de Viktoria ter se alastrado entre os jovens durante este último fim de semana. Dirigido por Saam Farahmand, que havia assinado apenas alguns curtas alternativos e propagandas para as grifes Alexander McQueen e Absolut, o vídeo mostra a artista como uma espécie de líder para uma revolução contra a sociedade vigente. Enquanto canta coisas como “Estamos brincando de Deus e agora é a hora/ Não temos limites, não estamos confinados / Esse é o nosso futuro”, ela vai desfilando com uma perna biônica, cheia de fios e luzes expostas. Há também as cenas mais picantes, nas quais ela aparece em um ménage à trois na cama, com o joelho amputado exposto. Mais tarde, uma menina assiste a uma versão da popstar em cartoon na TV e quebra a perna de sua boneca em um ato de imitação e idolatria. Viktoria é capturada por uma espécia de exército que deseja impedir essa revolta coletiva dos “desajustados” a qualquer custo. Ao final, sua prótese aparece como uma espécie de finca e, enquanto ela faz uma dança impressionante, o vídeo se encerra com as frases: “Alguns de nós nasceram para ser diferentes. Alguns de nós nasceram para se arriscar”.
A simbologia é forte e, para muitos, pode soar arrogante. Mas tudo ali faz referência a alguma parte da história de Viktoria. A referência ao exército diz respeito à origem da garota, que nasceu na Letônia (na época, parte da URSS) e foi ainda jovem para a Inglaterra. A perna em formato de garra veio de um sonho da própria e o figurino extravagante, incluindo seu vestido Vivienne Westwood, mostram o lado fashionista da menina, que já se apresentou pela Semana de Moda de Milão e sabe fazer bonito pelos eventos e tapetes vermelhos por onde passa. Sophie de Oliveira Barata, parte do The Alternative Limb Project, é a responsável por criar as próteses atípicas. “Eu precisava encontrar alguém que estiveste disposto a experimentar e brincar [com os novos modelos]. Então achei Viktoria Modesta, que se juntou ao projeto bem no início”, ela conta no vídeo de making of.
O making of de “Prototype”
A produção de “Prototype” faz parte da campanha “#BornRisky” do Channel 4, que tem como objetivo dar visibilidade a “vozes alternativas”, como atletas homossexuais, atores surdos etc. Claro que, no caso de Viktoria, o investimento foi alto. A emissora pagou £200.000 para veicular o vídeo durante a final do X Factor britânico neste domingo (14/12), o que rendeu uma audiência espontânea de 10 milhões de espectadores para a popstar. Mas, antes disso, o link postado pelo canal no Facebook já havia atingido a marca de 9 milhões de visualizações, o que já gerou fan pages, discussões e uma certa atenção da mídia intrigada pelo fenômeno. Executivos do Channel 4 já declararam que o projeto é “uma resposta às popstars dolorosamente estúpidas e manufaturadas, uma alternativa ao mundo homogeneizado do pop”.
Vídeo da campanha #BornRisky em solidariedade aos atletas gays que participaram dos Jogos Olímpicos de Inverno na Rússia
Claro que, pelo que você já leu e ouviu, é impossível não fazer certas comparações – que já começaram tanto nas redes sociais quanto na própria mídia, que vem fazendo um paralelo de Viktoria Modesta a uma espécie de “nova Lady Gaga” (leia abaixo o que ela pensa sobre isso). Sim, há algumas semelhanças gritantes que vão muito além do estilo extravagante. Assim como Gaga, que começou cantando jazz em barzinhos de Nova York, Viktoria já vem seguindo uma carreira low profile há pelo menos cinco anos, se apresentando em casas noturnas e desfiles, além de atacar esporadicamente como DJ. E, assim como sua antecessora, ela também entra para a indústria cultural com fortes críticas à mesma. Mas, ainda que “Prototype” tenha alguma coisa de “Paparazzi” em suas cenas, é muito difícil dizer que as duas artistas são similares, ainda mais pelo som: Gaga está em uma fase onde o jazz é sua vertente sonora principal (apesar de provavelmente voltar ao pop em breve) e Modesta aposta em uma fusão de eletrônica com urbano, que é uma ótima e natural pedida para pistas de dança.
É preciso ressaltar que essa não é a primeira grande aparição de Modesta na mídia. Em 2012, ela participou da cerimônia de encerramento das Paraolimpíadas, dançando ao som de Coldplay. No Youtube, é possível encontrar singles e performances anteriores da cantora, atendendo a uma certa curiosidade do público que devorava os links sobre Lana Del Rey ou sobre a própria Lady Gaga no início de suas carreiras. E, apesar de não redefinir o som que toca hoje em dia nas rádios, Viktoria Modesta já conseguiu fazer o que há de mais difícil nesse sistema: encontrar uma brecha. Afinal, nenhuma popstar ficou famosa por redefinir os padrões musicais com sua primeira música. Ao invés disso, elas começaram criando uma identidade visual para si, que as fez se destacar no imaginário coletivo: Britney com o uniforme de colegial safada; Gaga como a amante de Bowie e festeira incontrolável; Lana como a depressiva dos vídeos amadores; Beyoncé com sua pose de gangster; Nicki Minaj e sua peruca rosa; Katy Perry como a pin-up insinuadamente lésbica; e por aí vai.
Viktoria Modesta no encerramento das Paraolimpíadas de 2012
Ainda não se sabe se Viktoria será apenas um viral efêmero do mundo online ou se terá uma carreira duradoura. Mas, por enquanto, ela já levanta questões importantes não só para a própria cultura pop, mas para um mundo que a) precisa dar mais atenção real às diferenças, ao invés de ficar no blábláblá, pregando modelos de representatividade que não se associam à realidade de todos; e b) ainda tenta entender como lidar com o incontrolável avanço tecnológico que vem invadindo a própria pele do ser humano através de “dispositivos vestíveis” e outras coisas que parecem saídas de um episódio dos Jetsons.
Viktoria Modesta está ciente de todo esse debate e tem uma opinião bem formada a respeito. Na entrevista abaixo, você confere o que ela acha das comparações com Gaga, esses avanços tecnológicos irrefreáveis e a dificuldade de se transformar na primeira popstar deficiente do mundo:
HT: Quando você decidiu que queria ser uma popstar? É algo que você sempre tentou? E você já achou que não conseguiria seguir essa carreira por causa da sua condição?
VM: Eu me vejo como uma artista. Uma artista que quer trabalhar na cultura popular. Popstars focam em conseguir hits no número um das paradas e viver constantemente sob os holofotes. Eu realmente gostaria que minha jornada criativa fosse duradoura. Eu gostaria que toda essa atenção ao meu redor pudesse viabilizar mais colaborações com outros artistas. Isso me deixaria muito feliz. Sempre acreditei que deveria seguir meu instinto e simplesmente fazer o que eu gosto. Para mim, tem funcionado manter esse tipo de atitude.
HT: Você se apresentou para o mundo como “a primeira popstar deficiente”. Como se sentiu por não ter alguém que a representasse na cultura pop e como você acha que sua carreira pode impactar meninas jovens que passam pela mesma condição e, eventualmente, verão em você uma espécie de “heroína” ou “modelo a ser seguido”? É isso o que você quer dizer quando canta que é o “protótipo”?
VM: O vídeo é parte de uma campanha para o Channel 4 e não é meu videoclipe de divulgação. É um clipe/filme colaborativo que eu fiz com a emissora e o diretor Saam Farahmand como parte da campanha #BornRisky . Foi o próprio canal quem fez a curadoria para esse projeto. O vídeo é a expressão pessoal da minha jornada como uma mulher jovem e uma artista. Eu gostaria de promover confiança, auto segurança e auto aceitação. Não estou representando todas as pessoas deficientes, é apenas a minha história. Mas se alguma pessoa sente que minha atitude livre lhe dá esperança ou faz com que se sinta melhor sobre si mesma, então é um bom começo.
O significado por trás de “Protoype” é muito parecido com a definição do dicionário. Eu fui o primeiro projeto musical de um canal e gostaria de pensar que sou o protótipo da nova evolução de humanos, onde todos nós acabaríamos sendo mais e mais ajudados pela tecnologia artificial. No meu caso é um membro artificial que me ajuda a ter uma vida plena.
HT: O que se passou pela cabeça quando você decidiu transformar uma “fraqueza” no seu grande diferencial? Quando você percebeu que ao se reafirmar e dar poder a sua perna amputada, você poderia atingir um tipo diferente de público para as quais popstars comuns não prestam muita atenção?
VM: Na época da minha decisão – a qual levou cinco anos para convencer o médico de que não era algo apenas para a minha carreira -, eu só queria melhorar minha vida e meu corpo.
HT: Quais artistas a influenciaram, seja pela aparência, pela mensagem ou pelo som?
VM: Muitos artistas cult e filmes que eu procuro para inspiração na subcultura.
HT: Alguns fãs já estão comparando você com Lady Gaga ou colocando uma contra a outra. O que você sente sobre ela? Estaria disposta a fazer uma colaboração?
VM: Eu tenho muito respeito por qualquer artista que consiga manter uma carreira bem sucedida. Não acredito em rivalidade, acho que todas nós somos indivíduos diferentes.
HT: Ouvi uma de suas mixtapes no Mixcloud e parece que você gosta bastante de hip hop. Ao mesmo tempo, no seu blog tem uma foto de você com o Frankmusik, dizendo que vocês dois estão colaborando juntos em alguma coisa. O que você quer fazer para o seu primeiro álbum, em questões sonoras? Pretende investir mais em um som urbano ou eletrônico? E como sua carreira de DJ influencia nessa decisão?
VM: Eu gosto de hip hop, dance music e músicas mais emotivas. Gostaria de tentar muitas coisas, musicalmente falando. Acho que gostaria de ser mais diversificada. O importante é trabalhar com artistas que sejam realmente apaixonados por aquilo que fazem e produzem músicas que soam verdadeiras para eles. Espero continuar surpreendendo eu mesma e o público. Meu gosto como DJ é normalmente diferente daquilo que eu costumo aprovar no estúdio. São duas coisas diferentes para mim.
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