Uau, que dia! O domingo no Palco Sunset foi dominado por um sentimento que transgrediu a música. No line-up, as mensagens de respeito e superação foram os fios condutores dos shows de ontem no Rock in Rio. Como destaque, Johnny Hooker protagonizou momentos históricos em sua apresentação que teve participação de Linikier e os Caramelows e Almério. Embalado pela representatividade, teve discurso político, beijão sem censura, purpurina e, claro, coro empoderado de quem acompanhou a performance. O domingo no Palco Sunset ainda foi temperado pela emocionante participação da cantora norte-americana Melody Gardot, que, depois de um acidente na juventude, perdeu a memória, os movimentos e a fala. No Rock in Rio, a artista se apresentou ao lado de Maria Rita. A programação ficou completa com o show dos portugueses da banda HMB, que convidaram Virgul e Carlão, e do guitarrista e compositor de hits Nile Rodgers.
Nile Rodgers & Chic
E é pela atração que fechou o fim de semana no Palco Sunset que vamos começar. Em uma apresentação repleta de hits, que passeiam por gerações e décadas da música internacional, Nile Rodgers empolgou o público do Rock in Rio. Até quem não conhecia o guitarrista e compositor, não resistiu a um “Freak Out” e “Like a Virgin”, uns de seus sucessos que ganharam o mundo na voz de outros artistas. Aliás, o palco de Nile Rodgers, que se apresentou ao lado da banda Chic, ficou lotado de outros nomes da nossa música nacional. No Rock in Rio para curtir o dia de festival, artistas como Toni Garrido, Fernanda Abreu, Lelezinha do Dream Team do Passinho e Iza foram alguns dos que invadiram – a convite do anfitrião – o Palco Sunset.
Em apresentação dedicada à amiga Lady Gaga, que teve que cancelar seu show no festival por causa do quadro de fibromialgia, Nile Rodgers agradeceu à Medicina por estar podendo viver aquele momento. Entre uma música e outra, o guitarrista lembrou de sua luta contra o câncer, que foi vencida graças ao avanço da ciência no mundo. “Eu me sinto o cara mais sortudo do mundo nesta noite porque eu estou aqui com a minha banda Chic no Rock in Rio e eu estou livre do câncer. Obrigada Deus por fazer os médicos mais inteligentes do que nós”, disse Nile.
Maria Rita convida Melody Gardot
Em um momento mais desacelerado e com a superação escrita nas entrelinhas, Maria Rita recebeu a norte-americana Melody Gardot para um lindo show no Palco Sunset. Por lá, a dupla interpretou grandes clássicos da música internacional, como “Somewhere Over The Rainbow”, além de sucessos nacionais, a exemplo de “Corcovado”, de Tom Jobim. “Ela é magnífica. Cantar com a Maria foi muito fácil. No palco, parecia que ela era a minha irmã”, contou Melody Gardot emocionada. “Do palco, eu senti um amor tão grande que não consigo explicar”, completou.
Apesar de esta ter sido a primeira participação no Rock in Rio, a cantora norte-americana contou que sua relação com o Rio de Janeiro e a arte brasileira já é antiga. Amante dos nossos ritmos e da cultura nacional, Melody Gardot destacou a força e a delicadeza dos brasileiros. “O Brasil para mim é um país muito importante e interessante. Somente aqui a gente tem todas as pessoas cantando com a gente em uma apresentação ao vivo. Isso não é visto em outros países. Aqui eu sinto que, de fato, música é vida”, disse a cantora que lembrou de seu primeiro contato com a nossa arte. “Eu namoro a música brasileira desde a primeira vez que escutei Caetano Veloso. E, sempre que um jornalista me perguntava sobre os artistas que eu gostava de ouvir, minha lista tinha Maria Rita. Então, essa é uma relação de amor que fui construindo à distância”, contou.
E Melody Gardot foi além da admiração pela melodia da música brasileira. Esta entrevista, por exemplo, foi toda em português, idioma que a cantora aprendeu a falar e admirar graças à arte. Outra experiência que estreitou os laços de Melody com o Brasil foi um clipe que gravou no Rio de Janeiro. Em “Mira”, a cantora veio a São Conrado, bairro da Zona Sul carioca, promover um conteúdo diferente para seu novo trabalho musical. “Eu estava muito interessada em fazer algo que envolvessem crianças. Para mim, não era interessante estar presa em um estúdio fazendo algo normal e gastando muito dinheiro sem que isso ajudasse ninguém. Por isso, eu preferi ir para São Conrado e ali plantar com os meninos, ajudando a criar um jardim e fazendo algo que tivesse uma importância social para alguém”, lembrou sobre uma de suas passagens anteriores pela urbe.
Mas, assim como Melody Gardot agrega generosidade a sua arte através de iniciativas como foi o clipe da música “Mira”, a cantora também tem a superação como mensagem complementar. Com um talento e uma delicadeza que encantam, Melody Gardot teve a arte como válvula de escape após um acidente. Na juventude, a norte-americana foi atingida por um carro enquanto andava de bicicleta e, com isso, perdeu a memória, os movimentos e a fala. Mas ela não desistiu. “A questão é a gente não olhar para o que nós não temos e, sim, para o que temos em nossas mãos. Quando a gente tem gratidão em nosso coração, você nunca fica triste. O pessimismo e a negatividade não tomam conta. A gente fica feliz quando o sol chega para mais um dia e pelo fato de estarmos vivo mais uma vez. Então, se a gente lembra que cada dia é um presente, nos alegramos para viver novas experiências. Seja grato sempre”, disse Melody sobre os ensinamentos e motivações que aprendeu desde a infância.
“Eu não venho de um lugar privilegiado. Quando eu era criança, trabalhava em três empregos diferentes só para conseguir pôr comida na mesa. Naquela época, a pobreza me ensinou ter medo de perder algo porque eu já não tinha quase nada. Porém, no momento em que eu soube que poderia perder a possibilidade de andar, eu não tive medo. Já que eu não ia poder andar, o meu pensamento foi que compraria uma cadeira de rodas bem chique”, contou a cantora Melody Gardot. De fato, a música vai muito além da harmonia de notas e palavras.
Johnny Hooker convida Linikier e os Caramelows e Almério
Este foi o momento mais especial do dia. Não pelo repertório ou pelo público que lotou o Palco Sunset. No Rock in Rio, com a visibilidade que o maior festival de música do mundo tem, três artistas se juntaram para um movimento político em forma de show. No palco, Johnny Hooker recebeu Linikier e Almério em uma mistura de resistência e representatividade. Como porta-vozes do movimento gay, trans, negro e nordestino, a performance foi o símbolo da diversidade destes três dias de Palco Sunset. “Esse show para mim foi a mistura de sonho com futuro. Em cima daquele palco, eu me permiti imaginar e idealizar um mundo melhor e me sentir em um ambiente de aceitação e afeto. Eu agradeço muito ter tido a voz para dar fala ao nordestino, ao gay e a tudo mais o que esse show representou”, disse Johnny Hooker.
Em cima do palco, eles pediram por respeito, aceitação e amor às diferenças. Com a música “Flutua” como trilha sonora – aquela em que Johnny e Linikier cantam “amar sem temer” –, os artistas protagonizaram um beijo que tinha o gosto de grito entalado na garganta. Depois de terem tido o single classificado apenas para maiores de 18 anos no Youtube e Facebook por causa da foto com os dois se beijando na capa, o cantor gay e a cantora trans repetiram o ato e foram ovacionados pelo público do festival. “Foi uma apresentação sem ego e individualidade. Os três se juntaram para dizer a dor de cada um e nós tivemos a alegria de sermos recebidos pelo público da melhor maneira possível”, disse. Neste sentido, Johnny ainda destacou a importância de os artistas aproveitarem o momento de transgressão para usarem suas vozes em prol de causas que acreditam. “O fato de a gente ser artista, muitas vezes nos coloca em um lugar muito fácil de conforto, em uma bolha. Mas, nem por um minuto, podemos deixar de esquecer da realidade que enfrentamos na rua. O Brasil continua sendo o país que mais mata LGBTs no mundo. É um a cada 25 horas. Nós não podemos ignorar isso no momento em que subimos em um palco e conquistamos voz”, argumentou Johnny Hooker.
Assim como o cantor pernambucano, seu parceiro de apresentação no Palco Sunset, Almério, comentou a importância deste manifesto em forma de show no Rock in Rio. “Não cabe mais ter um pensamento retrógrado e um comportamento de desrespeito com o próximo. Apesar de saber que o Brasil é um dos países mais preconceituosos do mundo, a gente precisa estar no palco falando sobre isso. Para mim, só o fato de estarmos no Rock in Rio levantando essas bandeiras já faz da nossa apresentação um ato extremamente político. É um ato de coragem. Afinal, o Brasil é um país extremamente violento”, disse Almério que garantiu não ter medo das consequências de suas atitudes em oportunidades como foi na tarde de ontem. “Quando eu subo, estou dizendo que resisto a tudo o que me cerca”, afirmou.
O fato é que, com Johnny Hooker, Linikier, Almério, Pabllo Vittar e outros tantos artistas que têm se posicionado nesta edição do Rock in Rio, o festival está traduzindo um grito social cada vez mais forte no comportamento do brasileiro. Neste ano, a maioria dos shows estão ganhando tom político quando, para além da música, outras questões contemporâneas também ganham espaço no repertório. “Não tem mais volta. As pessoas podem tentar girar a roda do mundo para trás. Mas, depois que ela foi posta para frente, não tem mais como mudar. Isso é a Pabllo com a Fergie, eu, Linikier e Almério e tantos outros artistas que estão mergulhando nisso. Esse é o sonho de uma geração”, destacou Johnny que, mais que da atual geração, também fala para pessoas mais velhas.
Na plateia do Palco Sunset, o cantor pernambucano teve a presença ilustre de sua avó, Dona Gilce. Aos 80 anos, ela foi aplaudida pelo público do neto quando, do alto do Palco Sunset, Johnny Hooker destacou a presença da animada senhora. Entre os jovens e debaixo do sol, Dona Gilce contou que sempre acompanha os shows do neto. “Desde pequenininho, quando ele começou a dizer que queria cantar, eu incentivo e vou com ele”, disse a vovó do artista que garantiu concordar com tudo o que Johnny defende na carreira. “Eu levanto com ele também. Tudo o que ele fala eu assino embaixo”, afirmou Dona Gilce que não escondeu a emoção ao ver o poder de seu neto com a geração da representatividade e resistência. “Eu estou muito feliz de estar aqui com o Johnny e todas essas pessoas aplaudindo o trabalho do meu neto”, completou.
HMB & Carlão & Virgul
Além de representatividade, hits e história de superação, o dia no Palco Sunset também foi marcado por uma gostosa surpresa direto de Portugal. No line-up de ontem, a banda lusitana HMB foi a responsável por iniciar os trabalhos no festival. Com um som não muito popular entre o público do Rock in Rio, apesar de terem fãs brasileiros por causa de uma parceria com Emicida, os portugueses conquistaram quem chegava para o terceiro dia de shows. Como estratégias, a banda HMB tinha o idioma e o ritmo para lá de animado e contagiante. “Era só a música ser um pouco mais dançante que o público já se animava mais. O Brasil é uma nação cheia de ritmos, boa disposição e felicidade e isso transmite para quem está em cima do palco”, disse Joel, baterista da HMB.
E o swing português deu liga com o molejo carioca. Com o passar das músicas, a banda HMB conquistou novos fãs que fizeram daquele momento no Palco Sunset uma experiência inesquecível para os portugueses. “Foi muito emocionante. Esta foi a primeira vez que tocamos do lado de cá do Atlântico. E, poder estrear na América do Sul e ainda ser em um evento da importância do Rock in Rio, é algo para comemorarmos muito. Foi uma experiência de oura dimensão”, definiu Joel que, com a estreia no festival, tem sonhos muito maiores para o futuro. “O que a gente gostaria de verdade é voltar daqui a dois anos e estar no Palco Mundo. Mas, só com esse show, nós já sabemos que estamos abrindo novas portas e oportunidades. A nossa estreia na América do Sul foi com o pé direito”, disse. Voltem mais vezes!
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