*Por Rafael Moura
“O primeiro Festival Internacional a gente nunca esquece”. Foi assim que, diretamente de Nova York, a cantora Luciane Dom abriu o papo com o site HT para contar tudo sobre a apresentação que fará hoje (dia 23), no maior Festival de Música Brasileira, em Nova York, o Brasil Summerfest. “Se eu falar que estou tranquila é mentira! Durante a semana de preparação para o show, eu estive muito nervosa, porque a gente sempre quer dar o melhor para o público. E surge uma mistura de excitação e ansiedade. Ao vivo é sempre uma incógnita”, ressalta.
Essa carioca, da Zona Norte do Rio, com uma voz doce, mas com letras fortes acredita que “levar a sua música para o mundo é uma necessidade real, porque estamos escrevendo e narrando o nosso tempo. E minhas ancestrais fizeram isso com nenhum recurso. Como eu hoje tenho possibilidade de narrar o que vivemos, quero deixar essa voz ecoar, para contagiar outras pessoas a falarem sobre si, pois nenhuma história é única. Se antes eu não me reconhecia, hoje vou eu lá e me represento e levo o bonde todo junto”, frisa a cantora e compositora.
Luciane Dom sempre perguntou aos pais qual era a nação que seus ancestrais tinham vindo da África. Na ausência de respostas, encontrou na música um caminho para resgatar sua origem, sua história, e sua saudade, mesmo estando tão longe daquele continente de suas perguntas. “Sempre gostei de cantar desde pequena, e minha mãe fala que, às vezes, ela gentilmente pedia para eu parar de cantar um pouco, porque eram de fato horas e horas. Sempre tive na música um lugar seguro no qual podia ir quando tivesse triste, ou até mesmo feliz. Eu sempre criava uma melodia para os meus momentos especiais. Talvez eu já tivesse convicção desde criança, quando pedi, aos seis anos, para minha mãe comprar um microfone”, reflete.
Uma outra novidade às vésperas dessa apresentação que promete ser histórica e inesquecível para os amantes da música brasileira: é o lançamento do single e do clipe ‘Some‘, rodado em Nova York durante o processo de preparação e ensaios pré-show. “Essa letra é uma parceria com Davidson Ilarindo, e surgiu de uma conversa nossa, em Santa Tereza, sobre relacionamento abusivo, namoros tóxicos, e o quanto as pessoas acabam se sujeitando a esses percalços, por entender que quando um homem ou uma mulher tem ciúme agride verbalmente ou emocionalmente, te prende. Isso é amor?”, dispara Dom. E acresenta: “Na verdade, é demonstração de posse, de propriedade! Nem sempre conseguimos perceber essas situações claramente, mas acho que é um tema que precisa ser discutido, porque está intimamente ligado com os altos índices de feminicídio, por exemplo”.
Além da letra que provoca a reflexão, a música ainda ganhou um vídeo com direção e roteiro de Alexandre Maciel. “Gravar em Nova York foi mágico! Essa é minha segunda turnê pelos Estados Unidos, e Nova York, especificamente, é o local mais cosmopolita do mundo. Como estava e estou in love com a cidade, quis gravar um clipe com essa tonalidade do urbano que ela traz, chamei um parceiro de longa data, o Alexandre Maciel, ‘geniozinho’, para dirigir o clipe”, elogia Dom. Essa parceria rendeu um vídeo muito sensível com imagens, cores, texturas. “Eu tinha pouco tempo para gravar, então, ele por estar morando na cidade, mapeou os lugares que poderíamos ter as cenas e para que tivéssemos o resultado em pouco tempo. Para atuar no clipe e auxiliar nas gravações, contei com uns amigos atores daqui – Nadia Johnson, London Bryant, Luss, Jason Dossett – que toparam de cara fazer essa loucura de gravar em dois dias, num frio absurdo e à noite. Adorei trabalhar com todos, porque além de uma vibe boa, o conteúdo ficou fino”.
Seu primeiro disco que foi lançado em 2018, ‘Liberte esse banzo‘, fala sobre banzo (saudade, melancolia em relação à terra nata), afeto, e a necessidade de se libertar das amarras do racismo. “É uma tentativa de entender o protagonismo da nossa história, o negro no Brasil, e uma maneira de convocar o público a libertar o banzo nos ritmos de África. O álbum é extremamente diverso, traz elementos muito brasileiros como ijexá e MPB, passeia muito bem pelo soul, pelo jazz e pelo rock. “Eu falo muito sobre mim, sobre meus amigos, aspectos do cotidiano, sou muito sensível ao que eu vejo na rua. Isso acabou me fazendo perceber que eu poderia começar minha carreira, pois é algo natural em mim”, revela a carioca.
Lu questiona ‘essa chancela internacional’ que muitos artistas precisam para fazer sucesso no Brasil. “Acho complexo. Eu gostaria que o Brasil enxergasse a gente, investisse nessa cultura musical que tem uma estrada longa, mas acaba que é necessário muito investimento para que sua música chegue em todos os cantos do Brasil. Ser uma artista, sem empresário, como a maioria dos artistas de MPB contemporânea, significa trabalhar de dia, noite e madrugada para ser visto, e, mesmo assim, ter pouco reconhecimento”, pontua. E compara: “Outros países já perceberam que existe no Brasil uma infinidade de artistas talentosos, fazendo a carreira acontecer sozinhos. Esses produtores nos dão mais visibilidade, afinal de contas, estão olhando para música e para arte. Espero que esse movimento de esperar a chancela dos grandes canais de comunicação mude, mas enquanto não muda, vou para onde me chamam. Próxima parada é um outro festival e no Chile”, comemora.
Dom falou muito sobre suas inspirações, influências e o que não sai da sua playlist. “Eu ouço muito Sampa the great (já ouviu? Essa mulher é fantástica!) Erykah Badu, Victor Mus, Daymé Arocena (outra fantástica!) Liniker, Kemba, entre muitos outros”. Luciane é uma cantora que já nasceu no mercado digital e acredita muito na força dos streamings como alavanca para novos talentos. “O mercado musical mudou bastante, e estamos nessa adaptação, nessa integração de estar atualizadas e atentas em todas as redes. Se o mercado está se movendo, os artistas também precisam se adaptar, não podemos ficar ultrapassados”, enfatiza. Lu conta com a parceria do diretor artístico, o Davidson Ilarindo que além de fazer ‘essa direção’, gere sua carreira e o planejamento de conteúdo. “Ele faz muitos cursos, vai a muitas feiras de business, cria muitas estratégias que vêm dando certo, até para me deixar mais livre pra fazer música”, pontua. “A música literalmente está sem fronteiras. Ano passado, quando eu tocava em Baltimore, ouvi uma pessoa gritar ‘Lucianeeeee’, com sotaque americano. Depois do show, vieram algumas pessoas falar comigo que me conheciam, pois eu tinha gravado um clipe em plano sequência (que é a música Seu Bem) que elas tinham amado, e, depois disso, passaram a me seguir no Spotify. Assim, Baltimore é super longe, gente, e minha música tá por aí! (risos)”, comemora.
No fim da nossa live, Luciane nos atenta sobre como os temas diversidade e pluralidade tem sido muito debatidos em todos os âmbitos culturais no Brasil. E que esse movimento é uma grande força de mudança para a sociedade. “O Brasil é plural, tem mulher, homem, índio, negro, branco, gay, cis, bi , trans, e não dá mais para criar narrativas apenas de uma maioria política e privilegiada. Não faz sentido só ouvir músicas que falam de casais héteros, ou músicas que falam sobre as mulheres brancas, sobre cabelo liso e tal. A classe artística no Brasil precisa entender que existe um universo de gente, de cores, de opções sexuais que precisam ser respeitada e representada nas músicas, e na arte em geral, até porque finalmente estamos vendo essa mudança começar a acontecer na TV, no rádio, na internet. Agora é o tempo, né! Ainda tem muito a se fazer, mas a mudança está vindo, e pelo povo”, conclui.
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