* Por Carlos Lima Costa
Após um hiato de 38 anos, Sandra Pêra está de volta ao mercado fonográfico. A partir desta sexta-feira, dia 4, está disponível nas plataformas digitais o álbum Sandra Pêra em Belchior, no qual a atriz e cantora interpreta clássicos do compositor e cantor cearense, que morreu, aos 70 anos, em 2017. Esse é o segundo disco solo da também diretora e produtora. O primeiro, que levou seu nome, ela lançou pouco depois de deixar o sexteto As Frenéticas, um dos grupos de maior sucesso na segunda metade dos anos 70. Na época, o LP não rendeu o esperado e esse lado ficou adormecido, restrito à performances em espetáculos teatrais.
“Eu fazia parte de um grupo estourado de muito sucesso, já estava com a cabeça em outro lugar, engravidei, saí do grupo e estava escrevendo, compondo e vieram com muita sede ao pote. Acharam que eu ia lançar um disco e ia arrebentar. Mas era romântico, bem diferente do que eram As Frenéticas. No ano seguinte ainda gravei um compacto e aí depois fui fazer teatro sempre cantando, fui dirigindo, me virando”, recorda.
Esse retorno agora aconteceu sem muito planejamento. Ela estava jantando na casa de Kati de Almeida Braga, dona da gravadora Biscoito Fino, e enquanto ouviam a nova versão de Fagner para Mucuripe (parceria dele com Belchior), de seu novo álbum Serenata, Kati sugeriu que Sandra gravasse um álbum dedicado à obra do saudoso artista. “Quando recebi a proposta, meu coração veio na boca, fiquei pensando se ela ia lembrar disso no dia seguinte, tanto que liguei para confirmar se continuava de pé, que eu estava dentro”, lembra. E completa: “A importância do Belchior é imensa. Era um poeta de uma grande cultura”, pontua.
O primeiro single, A Palo Seco, já havia siso disponibilizado em 21 de maio. E agora, o público pode conferir as versões de Sandra para outros clássicos como Na hora do Almoço, Paralelas, Velha Roupa Colorida, Mucuripe e Medo de Avião. Esta última rende uma curiosa história que liga o nome da irmã de Marília Pêra (1943-2015) ao homenageado. Reza a lenda que Belchior compôs Medo de Avião para Sandra. “É uma história louca que eu adoro, que foi crescendo e eu nunca tive nada, absolutamente nada com Belchior, a não ser uma grande admiração”, afirma.
Era 1977, as cantoras de As Frenéticas estavam no mesmo voo que ele indo para Fortaleza, onde fariam um dos primeiros shows. “Tenho muito medo de avião, desço de mãos dadas com qualquer pessoa que estiver ao meu lado, choro, sou horrorosa em um voo. O avião estava sacudindo bastante e ele sentou ao meu lado, viemos conversando e dele disse: ‘Você sabe que eu fiz essa música (Medo de Avião) para você?’ Achei isso uma brincadeira, uma piada, porque a música já existia”, recorda. Anos depois, ao participar do programa de Silvia Poppovic, onde o tema que seria debatido era justamente o medo de avião, a jornalista reafirmou a história na abertura do programa. “Falei que não era verdade, porque parecia que eu tinha um caso, um romance com ele”, frisa Sandra.
Há uns seis anos, ouviu a mesma história ao esbarrar com a amiga, a atriz e jornalista Maria Lúcia Dahl. “Na época do auge das Frenéticas, a Maria foi o grande amor de Belchior. Era uma relação secreta, porque ele ainda estava casado. Não era público, mas os amigos sabiam. Ela virou pra mim e disse: ‘Já fiquei muito triste com você por causa do seu caso com o Belchior’. Nunca tive nada, parecia que eu tinha traído a minha amiga”, lembra. E completa: “Meus amigos falam que ele deve ter ouvido falar desse meu medo. A minha relação foi de uma mão dentro de um avião. Eu fico envaidecida, mas cheia de dúvida”, diverte-se. Depois do encontro nos ares, As Frenéticas gravaram com ele a música Corpos Terrestres, do disco Todos os Sentidos.
No dia seguinte à sugestão de Kati de gravar o álbum, Sandra já começou a ouvir os discos de Belchior e a pensar no repertório. “Já falei com o José Milton e tratei de não perder tempo”, conta, se referindo ao produtor musical que dividiu a função com a filha dela, Amora Pêra.
O álbum de Sandra conta com alguns convidados. Com Ney Matogrosso, ela fez dueto em Velha Roupa Colorida. “Fomos vizinhos de porta e de loucuras na época do começo das Frenéticas”, lembra. Com Zeca Baleiro divide a faixa Na Hora do Almoço; com Juliana Linhares canta Galos, Noites e Quintais. E tem ainda a participação do grupo Chicas, que, além da filha, Amora, conta com Paula Leal e Isadora Medella, na música Pequeno Mapa do Tempo. Elas fazem ainda o coro em Todo Sujo de Batom. “As Chicas são muito criativas”, diz. Zeca foi o único convidado com quem ela não gravou presencialmente.
Sandra gostou muito da rotina de ir para o estúdio gravar nos meses de novembro e dezembro e espera repetir a experiência em algum novo projeto. “Agora, já não tenho mais muito tempo para ter um hiato entre um trabalho e outro. Mas eu me vejo imortal. Não faço planos de morrer. Nem paro para pensar nisso, vou em frente, porque gosto de estar viva. E espero que todos ouçam o que eu tenho a cantar, porque esse disco é muito bem feito, estou cantando coisas lindas, com arranjos muito bem cuidados. Se essa nova etapa for bem, a tendência é que eu faça outros”, assegura. Entre os arranjadores, contou com nomes consagrados como Eduardo Souto Neto e Cristóvão Bastos.
Durante o processo de gravação deste projeto, Sandra soube que Ana Cañas havia feito também um álbum dedicado à obra de Belchior. O primeiro single, Coração Selvagem, foi lançado também em maio. O artista cearense recebeu outra homenagem no final de abril com o lançamento do livro Viver É Melhor Que Sonhar: Os Últimos Caminhos de Belchior, que deve virar um documentário realizado pela Urca Filmes com coprodução do Canal Brasil. “Acabei de ler o livro, é tristíssimo o que ele viveu, a loucura que mergulhou junto com a mulher até sumir e morrer. É um desperdício ele não estar vendo o que está acontecendo agora com a sua obra”, frisa.
Entre as músicas de seu disco está ainda Sujeito de Sorte: ‘Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro/Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro’, diz um trecho da letra. “Belchior disse lá atrás o que nós estamos gritando hoje no meio dessa loucura que a gente está vivendo”, frisa ela, ressaltando que Emicida gravou esse trecho da música, como pôde ser visto no documentário sobre o disco AmarElo.
Sandra viveu romance com o cantor Gonzaguinha (1945-1991), pai de sua filha Amora. Quando falavam sobre Medo de Avião, de Belchior, ela sempre brincava: “Meu compositor era outro”, diz, rindo. A obra dele tinha um forte cunho político. Sandra explica como encara a política atual do país no meio da pandemia. “Fiz muito panelaço (durante o pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro, na quarta-feira 2). Eu acho que quem tem bom senso, educação e bom caráter está de acordo. Estou morrendo de medo de 2022, não quero mais isso pra mim”.
Sandra tem acompanhado um pouco da CPI. “Gostaria de estar sentada assistindo mais longamente. Que mulher interessante (a infectologista Luana Araújo). Quando a pessoa se coloca todo mundo respeita. Ela estava dizendo o que todo mundo pensa. É estranho, porque o (Luiz Henrique) Mandetta e o Nelson Teich (os ex-Ministros da Saúde) saíram porque não acreditaram naquela loucura, não se venderam aquilo. Ela mesmo falou, que gostaria de ter servido ao país, mas não ía conseguir”, avalia ela.
Nos últimos quatro, cinco anos anteriores à pandemia, Sandra vinha mais próxima da música, fazendo um show com Duh Moraes, outra ex-integrante das Frenéticas, com repertório do grupo. Até gravaram o DVD, Duas Feras Perigosas. Ainda participaram do 70 – Doc Musical. E lembra do sucesso do grupo. “Foi um tempo de muito trabalho, loucura e muita droga também, mas nada que matasse. Muitas paixões. Quando a pessoa faz muito sucesso, não sei se fica mais sensual. O sucesso deixa a pessoa mais atraente. Lembro de uma vez em que acordei em um quarto de hotel, abri a porta e tinha uma pessoa dormindo do lado de fora, no chão. As Frenéticas nos colocou em um lugar muito sensual e um sucesso relâmpago, mas ninguém ganhou muito dinheiro para comprar apartamento. A única pessoa que comprou alguma coisa foi a Lidoka (1950-2016), que comprou o apartamento dela, mas pagou em quinze anos. Ganhamos para viver bem, mas não era o que um sucesso dá hoje. Mas foi um momento importante na minha vida”, reforça. Dancin’Days, O Preto Que Satisfaz e Perigosa foram alguns dos hits.
E Sandra relembra Gonzaguinha que se inspirou nela para criar algumas canções. “Na hora que eu estava entrando na sala de parto, ele pegou o toca fita e colocou no meu ouvido a gravação de Eu Apenas Queria Que Você Soubesse. E ouvi ‘Eu apenas queria que você soubesse/Que esta menina hoje é uma mulher/E que esta mulher é uma menina/Que colheu seu fruto, flor do seu carinho’. Se prestar atenção na letra…”, aponta. Logo depois quando foi registrar a Amora, ele ainda estava casado no papel com a Ângela Porto Carrero, e disseram que só ele podia registrar”, recorda. E prossegue: “Quando conheci o Gonzaga, fiquei louca por ele.” Por coincidência, também o conheceu em um avião. “Aí começamos uma história maravilhosa, mas não ali. A gente se encontrava, ele era sempre lisonjeiro. Era um cara que sabia seduzir muito bem, com elegância. Quando engravidei, ele me perguntava o que eu queria dele, eu dizia que não queria nada. Eu era tão loucamente apaixonada por ele, mas não queria virar a mulher dele, não queria aquele papel. Coisa de maluco que a gente não explica. Eu fui muito apaixonada e a gente teve uma história muito bonita e honesta. Acho que se ele estivesse vivo nós estaríamos eventualmente nos encontrando, porque nós nos encontrávamos eventualmente sempre. Foi uma história de uma grande paixão”, pontua. E ressalta: “Depois que a Amora nasceu, após um tempo, eu e a Ângela nos tornamos amigas. Nossas filhas viraram irmãs, ela trabalhou com a minha irmã fazendo divulgação, foi uma pessoa querida e ela faleceu meses depois dele. Ele morreu em abril e ela em outubro”, recorda.
E por falar em família, na última década, Sandra perdeu a mãe e a irmã, as atrizes Dinorah Marzullo (1919-2013) e Marília Pêra, vítima de um câncer de pulmão, em 2015. “Tínhamos um núcleo forte de amor. E depois delas, morreu a Lidoka (em 2016, que também não resistiu a um câncer). Foram três mortes próximas, perdas imensas. Demorou para deixar de ser dor. Doeu muito. Agora é só saudade. A morte é algo muito estranho”, reflete.
E avalia o empoderamento feminino tendo como exemplo a família. “É estranho quando eu vejo uma mulher subjugada, fazendo loucuras, sendo tratada de qualquer jeito. Quando você está muito distante disso, desde minha avó. Não teve uma mulher na minha família que fosse uma boa dona de casa, todo mundo cozinha mal. Todo mundo saía para trabalhar junto com o homem, todas sem exceção. A minha avó, Laura Pêra, a mãe do meu pai, o marido, José, foi embora para Portugal, largou ela aqui no Sul com as crianças e ela se vestia de cigana pra ganhar dinheiro. Soube agora, em Portugal, que ela arranjou um amor, uma paixão aqui e ele foi embora revoltado e casou com a irmã dela, tendo filhos com as duas irmãs. E ela ficou aqui vestida de cigana, sobrevivendo para alimentar os filhos. Minha outra avó, Antônia Marzullo (1894-1969), mãe da minha mãe, era atriz, então, essa coisa da mulher subjugada, quando eu vejo, fico muito irritada de como se submetem a isso. Isso tem muito a ver com atitude”, finaliza.
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