*Por Brunna Condini
É através da música que a cantora Rafaela Villella vem ressignificando a sua vida. A transsexual, ex-backing vocal de Pabllo Vittar e de Luísa Sonza, se lança na carreira solo com o single ‘Eu só sei brilhar‘, em um clipe dirigido pela amiga Cleo, e segue trabalhando no EP que promete emocionar: “As músicas vão contar a minha história. Desde a igreja, que frequentei e cantava, passando pela prostituição e, depois, a superação. Vai ser um trabalho íntimo, não vou esconder nada, quero que as pessoas enxerguem quem sou”.
Aos 30 anos, a carioca nascida em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, filha de pais evangélicos, viveu muitas dificuldades antes de se dedicar à música nos últimos anos, mas deu a volta por cima e foi atrás do seu sonho, com determinação e o auxílio luxuoso de amigos que ela chama de aliados, como Cleo. “Sai da casa dos meus pais quando tinha 20 anos, porque não me aceitavam na época. Precisei me prostituir pra viver, até que me apaixonei por um cliente e nos casamos. Mas acabamos nos separando e fiquei numa deprê muito grande. Não queria voltar a fazer programas, então foi o impulso que eu precisava para começar a postar minhas músicas na internet e acabar conhecendo as pessoas que trabalho hoje. Foi um momento crucial que resolvi investir tudo e pensei: é agora ou nunca”, recorda. “Quando comecei a trabalhar com a galera da música, entrei em turnê com a Pabllo (Vittar), a Luísa (Sonza), e aí conheci a Cleo. Fui convidada para produzir os vocais do EP que ela estava trabalhando na época e nos tornamos inseparáveis. Ela me apoia em tudo”.
O clipe do primeiro single foi gravado na casa da família Pires Morais, em Brasília: “No início da pandemia, como meus pais estavam seguros aqui no Rio, Cleo me convidou para passar um tempo com a família dela lá. Convivemos praticamente 2020 todo juntos. Foi uma experiência única passar esse tempo com essa família que me ensinou tanto. Fui recebida como filha. Foi uma honra”.
E faz questão de frisar: “A Cleo é uma profissional completa, é atriz, cantora, diretora, o toque dela no meu clipe é a coisa cinematográfica da narrativa, da estética. Ela é extremamente perfeccionista e exigente, mas de uma forma amorosa. E me orienta fora dos sets também, na vida. Contribui muito para a minha carreira e tem me mostrado um empoderamento muito diferente do que eu estava acostumada. Me deu suporte para eu ter orgulho de ser trans, principalmente neste meio artístico que é tão cruel”.
Vida feita de encontros
Nos últimos anos, a carioca começou a trabalhar na produção musical de projetos com grandes nomes artísticos, como Iza e Dilsinho e Pabllo Vittar. Após um ano de turnê com Pabllo, Rafa também entrou para o time de Luísa Sonza, como backing vocal, participando da ‘Pandora Tour’, turnê de estreia do primeiro álbum da cantora. Sobre o encontro com Pabllo, ela recorda emocionada. “Trabalhar com esta galera foi muito importante porque foi um momento em que eu estava saindo da prostituição e começar a trabalhar na música, de forma profissional, me deu uma bagagem muito grande de palco, de postura, produção, tudo. A minha virada começou durante uma live do Diego Timbó, produtor da Pabllo Vittar. Ele me chamou para participar, eu cantei e ele se encantou com a minha voz. Fiz um teste e em seguida, fui trabalhar com a Pabllo, fiz uma turnê mundial. Este momento foi muito especial, ela abriu muitas portas pra mim. Chorei muito quando conheci a Pabllo. Porque quando eu era garota de programa ainda, ela já tinha estourado e servia de inspiração para muitas meninas. Mesmo ela não sendo trans, sendo drag, ver uma de nós, da nossa sigla LGBTQIA+ no mainstream, significa muito”.
E revela: “A Pabllo me chama de ‘Mariah Carey brasileira’, pela minha estética e forma de cantar. Ela é extremamente simples, muito mais do que se imagina. Muitas vezes fazíamos shows que terminavam as 4 h e a Pabllo comia cachorro quente na rua com a gente. Ela é muito doce, querida, zero estrelismo. É um outro presente que ganhei na vida. Uma artista maravilhosa, que come na rua com a equipe e ao mesmo tempo está lá toda montada no palco, uma rainha. Não perdeu a essência dela, mesmo com toda fama e sucesso”.
Ser amiga de alguns artistas com sucesso tem ajudado a construir seu caminho? “Evidente que vários dos meus amigos famosos ajudam a abrir portas. As pessoas estão acostumadas a ver notícias ruins em relação às pessoas trans, aí ver uma cantora trans se lançando, ainda mais com apoio de famosos, se torna muito importante para a causa, mas mesmo assim ainda encontramos muita resistência. Então, por isso digo que esses amigos precisam ser também aliados, porque acabam tendo que se colocar na frente da causa. Graças a Deus os que tenho ao meu lado são e se posicionam, já que é uma questão muito séria. É muito triste pensar que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, e ao mesmo tempo, é o lugar onde se consome mais pornografia trans no mundo. Infelizmente, a nossa sociedade é hipócrita e muito falha. As pessoas que nos odeiam são aquelas que buscam a gente à noite”.
Outro aliado e amigo que a cantora encontrou no caminho foi o humorista Whindersson Nunes. Rafa conta que o elo da amizade entre os dois foi a fé. “Estava cantando com a Luiza (Sonza) em turnê e fui para São Paulo, onde eles moravam na época, quando eram casados. Fiquei hospedada com eles uns dias. Na época, o Whindersson estava passando por um período de depressão, que ele chegou a dividir com o público. Trocamos muito. Falei da minha experiência de ser uma pessoa trans no Brasil, ele me contou a história dele em detalhes, saindo lá do Nordeste, com a família. E eu falei pra ele que independente de instituições, o que me sustentava era a minha fé. É a minha base, a minha rocha. Mesmo eu tendo saído da religião, minha fé sempre foi inabalável. Levei isso como escudo na vida, foi o que me manteve viva. Senti que isso despertou algo lindo nele”, lembra.
“Sou cristã, então mostrei Jesus para ele como eu vejo, como uma transexual vê, independente de dogma e do que as pessoas falam. O Whindersson diz que eu ajudei a recuperar a fé dele. Isso foi um presente, foi gratificante, faz todo o rolê valer a pena. Somos muito amigos. Ele ajudou a fazer a live para arrecadar fundos para a Casa Nem, que auxilia pessoas trans em vulnerabilidade”.
‘Eu só sei brilhar’
“Não me iludo com nada no meio artístico. Tenho algo maior, que é levar uma mensagem. Sei que não vou agradar a todos, que o preconceito existe, mas estou cascuda para o que vier. Pessoas cisgêneros batalham por seu objetivos, pessoas trans precisam chegar arrombando portas, porque geralmente elas são muito mais fechadas. Espero conquistar o público, romper preconceitos com a minha arte”, reflete Rafaela.
“Meu maior sonho é ser bem-sucedida no que faço. Ainda tenho o fantasma da prostituição. A Cleo até brinca que enquanto ela estiver viva isso nunca acontecerá (risos). Acho carinhoso. Mas tenho esse trauma, fico pensando em como vou viver se nada der certo. Quero ser reconhecida para ter um futuro melhor, dar uma vida melhor para os meus pais, hoje nos damos muito bem e eles entendem a importância do apoio familiar. Também desejo dar oportunidades para outras pessoas trans. Engajar um movimento de mudança com oportunidades para outras meninas brilharem também”.
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