“Passo pela vida sem levar buzinada”: Stepan Nercessian fala sobre sua genial incorporação de Chacrinha no teatro!


Roda e avisa! Astro absoluto do musical de Pedro Bial dirigido por Andrucha Waddignton, ator conta ao HT que vem para confundir, sem explicar como consegue fazer o público acreditar que o Velho Guerreiro está de pé novamente!

“Chacrinha me domina, Chacrinha me alucina, agora é hora, é hora, é hora da buzina, o programa que acaba quando termina…” O público de todas as idades – até de gente da mais nova que não pegou a atração nem quando era criança – vem abaixo e acompanha, cantando e batendo palmas, quando este e outros manjadíssimos refrões do Velho Guerreiro são entoados no palco, transformando a experiência de assistir “Chacrinha o musical”, em cartaz no Teatro João Caetano, Rio, num daqueles casos em que a parede invisível que isola o proscênio da plateia cai por terra, virando extensão do cenário que contempla o ambiente do programa de auditório. Fenômeno.

Naturalmente, a intenção do autores Pedro Bial e Rodrigo Nogueira e do diretor Andrucha Waddington já era esta, mas, se não, possivelmente isso ocorreria da mesma forma, dada a capacidade de envolvimento dessa lendária criatura da rádio e da TV que, por sorte, muitos daqueles presentes entre o público tiveram o prazer de conviver aos sábados à tarde, quando sintonizavam suas televisões na atração vespertina da Rede Globo nos anos oitenta, o “Cassino do Chacrinha”. Ou bem antes disso, já que o apresentador circulou praticamente por todos os canais que fizeram história desde meados dos anos 1950: Tupi, Rio, Excelsior e Bandeirantes também foram suas casas, além da Globo nos anos 1960, antes de ser demitido por José Bonifácio Sobrinho, o Boni, por fazer o que bem entendia. Mas, diga-se de passagem, entendia como ninguém.

"Cassino do Chacrinha": em sua volta à Rede Globo  (1982), a fusão de seus programas "Discoteca do Chacrinha" e "Buzina do Chacrinha"

“Cassino do Chacrinha”: em sua volta à Rede Globo (1982), a fusão de seus programas “Discoteca do Chacrinha” e “Buzina do Chacrinha” (Foto: Reprodução)

“Quem quereeeeeer bacalhaaaaau?”, dizia ele, atirando peças inteiras para aqueles presentes no estúdio e alavancando vendas fabulosas do produto até então encalhado nas prateleiras das Casas da Banha. “Vamos recebeeeeeeeer De-javaaaaaan”, dizia ele antes do cantor alagoano entrar no palco, acrescentando um  ‘E” em seu “D” mudo. “Quem vai quereeeeeeer a mandioca da Maria Bethania?” ou ainda “Monique Evaaaans está com um pau entre as pernas”, entoou em cena o velho palhaço, antes da sua antológica briga com a musa nacional que era sua jurada, se referindo com duplo sentido ao fato de ela ter sentado na mesa do júri justamente com o pé da mesa entre as suas deliciosas pernas.

Histórias são inúmeras e o texto dá cabo de muitas delas, mas, obviamente, nem todas, tanto que várias dessas citadas neste artigo não comparecem no roteiro e existem apenas na memória deste jornalista. Deliciosamente, os autores costuram as cenas com muitas delas, e, além do registro biográfico vertido em espetáculo – como convém a uma figura dessa importância –, seu grande mérito é estender a compreensão desta genial figura que transcende a própria existência e estabelecer a ponte entre José Aberlado Barbosa de Menezes (1917-1988) – menino de família humilde que nasceu no interior de Pernambuco, fascinado por palhaços de circos tão itinerantes quanto mambembes – e seu alter ego Chacrinha, sucesso absoluto da TV e comunicador capaz de vender o que bem quisesse.

Como Charles Chaplin e seu Carlitos, é praticamente impossível traçar uma diferença entre criador e criatura, com a caracterização de clown escolhida pelo apresentador sendo não o único, mas um dos muitos fatores. E, por mais que o próprio personagem em vida tivesse lá suas dúvidas, a linha que separa um do outro é menos que tênue e, óbvio, define tanto um quanto outro. Como observa Nercessian: “Conhecia ele, mas era amigo de seu irmão (Jarbas Barbosa), que era produtor de cinema. Quando caí no trabalho e me aprofundei, vi sua angústia, seu medo de tudo dar errado, suas dores de barriga homéricas e seu preciosismo em produzir meticulosamente seu programa para depois anarquizar com tudo em cena. Aí, pude ter amplitude de sua humanidade por trás daquela máscara de palhaço”.

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De fato, a abordagem da sua trajetória na peça é um acerto, já que o Chacrinha jovem, vivido por Leo Bahia (estupendo!) e o maduro incorporado por Stepan Nercessian contracenam em muitas cenas, funcionando um como contraponto do outro e impregnando o todo da sua devida dimensão humana. “Não faço muito teatro, sou mais do cinema e da televisão, ser contemplado com um papel desse calibre é momento de glória”, comenta Stepan Nercessian em entrevista exclusiva com HT.

Chacrinha em dois tempos: com Nercessian e Leo Bahia se revezando no papel do protagonista, a opção dramatúrgica de Pedro Bial se revela acertada, com cada um fazendo as vezes da consciência do outro e, provando que, no fundo, criador e criatura eram um só

Chacrinha em dois tempos: com Nercessian e Leo Bahia se revezando no papel do protagonista, a opção dramatúrgica de Pedro Bial se revela acertada, com cada um fazendo as vezes da consciência do outro e, provando que, no fundo, criador e criatura eram um só (Foto: Divulgação)

Cronologicamente, o roteiro segue sua história desde Surubim (PE) até o Rio, passando por Campina Grande (PA) e Recife, e a direção esperta de Andrucha Waddington colabora nesse percurso, misturando o ritmo frenético dos espetáculos musicais (com até uma pitadinha do vaudeville determinado pela presença das chacretes e repaginado pela estética de cordel) com a delirante agilidade das comédias de Hollywood, com situações que beiram as gags encontradas na cinematografia de bambas como Blake Edwards. Como na cena em que o artista vai parar no xilindró após bater boca com a temida Dona Solange, censora na época da ditadura. O resultado é um primor e praticamente puro cinema ao vivo, com o trecho podendo perfeitamente se encaixar em longas como “A Pantera Cor-de-Rosa” e “Victor/Victoria”. Ponto para a produção, já que a história de Chacrinha daria um bom filme e é curioso perceber que a maneira como o diretor costura o espetáculo tem um tantinho da cabeça de que pensa em cortes bruscos e fades.

A carreira de Andrucha construída nas telas faz com que a encenação do texto gere um material que facilmente possa ser vertido futuramente em Sétima Arte e a peça, por sua vez, flui como um longa-metragem. Fácil, fácil de imaginar a história transformada em película, contada da forma que Pedro Bial concebeu e Waddington realizou no palco. “Imaginei dois longos planos-sequência, o primeiro e o segundo atos”, comenta ele, com o mesmo entusiasmo que leva uma criança a amar o efervescente universo do apresentador-bufão.

Para o diretor, “Chacrinha é um ícone pop único, sem herdeiros, uma persona atemporal. Tanto que meus filhos, de 20 e 22 anos, conhecem a criatura”. Andrucha comenta que cair direto no palco, em sua primeira empreitada teatral, dá aquele friozinho na barriga – talvez similar às dores de barriga que  próprio personagem costumava sentir – em dois momentos: “Tive uma fissura enorme antes dos ensaios para montar o circo todo de pé. Depois, a coisa acalmou quando eles se iniciaram e tudo começou a fluir. Foram 10 semanas de ensaios no Calouste e outras quatro aqui no João Caetano. Mas, na véspera do ensaio aberto, quando a gente vê que está tudo dando certo e vê o todo, é outro momento de coração fazendo toc-toc-toc”.

Outro aspecto positivo do espetáculo é o uso, ao invés de trilha sonora original, de standards que o Velho Guerreiro ajudou a catapultar nas rádios, com astros do gogó circulando em cena, divertidamente caracterizados pelos atores-cantores-bailarinos. Uma imensa festa ploc toma conta do teatro, com a plateia cantando junto em uma catarse daquelas difíceis de ser vistas hoje em dia no show bizz. Pela peça dá expediente praticamente todo mundo, seja em interpretações-relâmpago ou simplesmente através de suas canções, o que contribui para o caráter popular da obra: Roberto Carlos, Odair José, Ney Matogrosso, Rosanah, Ritchie, Lilian, Gretchen, Waldick Soriano, Gilberto Gil, Wando, Barão Vermelho, Cazuza, Gal Costa, Sidney Magal, Fábio Jr., Caetano Veloso, Frenéticas, Byafra, Clara Nunes, Ultraje a Rigor, Lady Zu, Titãs, Dorival Caymmi, Wanderléa e uma infinidade de talentos, sejam daquele escalão que se tornou a consagrada MPB ou daquela turma que conquistava as empregadinhas, mas também contagiava em off as patroas.

Reprodução de uma era: alavancador de carreiras, Chacrinha recebe Fábio Jr. no palco em cena da peça  (Foto: Divulgação)

Reprodução de uma era: alavancador de carreiras, Chacrinha recebe Fábio Jr. no palco em cena da peça (Foto: Divulgação)

Além de registro de uma era, estas participações ainda conferem mais uma dose cavalar de autêntico bom humor à encenação e é surpreendente constatar o quanto elas se tornam homenagens e, , ao mesmo tempo, possibilitam ao público ver esses mitos de pertinho, destituídos do seu status estelar para ganharem seu devido quinhão de humanidade, já que inteligentemente o roteiro os faz contracenar com o velho palhaço, revelando certas particularidades de suas simpáticas figuras.

A música ao vivo cumprem bem sua função, com Délia Fischer se superando na direção musical. O elenco inteiro está afinado, e surpreendem, entrem tantos talentos, a presença de Mariana Gallindo como uma esfuziante Elke Maravilha, Saulo Rodrigues na pele de um ótimo Boni e o jovem Mateus Ribeiro em múltiplos papeis, um primor, ainda que em algumas passagens ele dê pouquinho mais de vazão ao over do que deveria. Mas, ainda assim, o artista – que já havia chamado certa atenção no corpo de baile de “Cabaret” e “Crazy For You – O Musical” – é  fantástico de se ver atuando. Pequenininho, vira gigante em cena com sua agradável e saltitante presença, cabelos devidamente modelados com gel a emoldurar sua máscara facial.

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Coube à Claudia Kopke , companheira do diretor em 15 anos de cinema, a hercúlea tarefa de confeccionar uma quantidade sem número de figurinos para tantos personagens que irrompem no palco quadro após quadro, auxiliada por ótimo visagismo. As perucas de Martín Macías são de cair o queixo, assim como a cartela de cores do conjunto de modelitos. “Geralmente, a gente gosta de trabalhar com a mesma equipe filme após filme, mas como agora é teatro, tive que lidar com outra leva de profissionais. A Claudia e o mexicano Martín, dois profissionais de mão cheia, me acompanharam nessa jornada”, ressalta Andrucha, completando: “50% é a escalação do time”.

No geral, a direção de arte de Gringo Cardia opta com um contraste bastante interessante entre o primeiro ato – passado num Nordeste empoeirado e englobando a chegada do personagem ao Rio, terroso como uma antiga foto em sépia, bem desbotada – e o segundo, coloridamente kitsch como se espera do visual technicolor de Chacrinha e sua parafernália cênica. “Ninguém imagina o personagem sem cor. Mesmo na época da TV em preto & branco, o seu programa já tinha gamas muito intensas ao vivo, tanto que usaram ele como boi de piranha quando começaram a fazer testes no Brasil para a televisão a cores”, revela Andrucha Waddington.

Essa escolha – amplificada pelas telas chinesas e inúmeras projeções em 2D sobre tapadeiras que entram e saem do palco, mais os objetos gigantes que reproduzem a lisergia féerica da cenografia televisiva –, é outra prova de que o conjunto da obra deu muito certo e, claro, não há o que falar da iluminação sempre irretocável de Paulo César Medeiros.

"Chacrinha', o musical": espetáculo afinado, com produção fabulosa e cenografia delirante, jamais levaria buzinada do comunicador

“Chacrinha’, o musical”: féerico e afinado, o espetáculo com produção fabulosa e cenografia delirante jamais levaria buzinada do comunicador (Foto: Divulgação)

Mas, entre todas as qualidades, é impossível não destacar a presença magnética de Stepan Nercessian, que dá vida ao Velho Guerreiro com intensa vitalidade. A semelhança física e de atitude é impressionante e perguntas surgem no ar: incorporação mediúnica? Possessão demoníaca? Exercício absoluto de observação de um ator tarimbado? Sensibilidade intuitiva? Bom, dificílimo responder, quem sabe tudo isso junto e misturado.

O próprio ator dá a dica: “Como ele mesmo diz em uma passagem da peça, ‘com licença da demagogia’: eu não podia atrapalhar o Chacrinha, tinha que agir sem interferir demais. A sua presença é proeminente por si só, ele tem vida própria e muita gente boa o imita. Eu não sou um ator de imitações, tenho pavor disso. Mas, no final, acho que passo pela vida sem levar uma buzinada dele”, brinca.

Ele, que completa 61 anos em dezembro, concorda com o olhar cinematográfico do musical e ressalta que está feliz em interpretar um personagem tão querido que sobrevive ao tempo. Sobre a passagem deste, aliás, ele – que começou a vida ainda moleque, com o pé direito no cinema em papeis que destacavam a postura liberal da nova juventude pós-revolução sexual, protagonizando longas como “Pra quem fica… Tchau!” (de Reginaldo Faria, 1970), “Marcelo Zona Sul” (de Xavier de Oliveira, 1970), “André, a cara e a coragem” (de Xavier de Oliveira, 1971), “Como é boa a nossa empregada” (de Victor Di Melo, 1973) e ainda chegou a pegar Xica da Silva no filme homônimo de Cacá Diegues (1976) ­– já interpretou tudo na telona e na telinha e, agora, é categórico quanto ao avançar dos anos: “Fazer Chacrinha é uma dádiva!”