‘Eu vou tirar você desse lugar/Eu vou levar você pra ficar comigo/E não me interessa o que os outros vão pensar’. O refrão da música ‘Vou tirar você desse lugar’, de Odair José, é um dos eternos clássicos do cantor e vendeu 1 milhão de cópias em 1972. Foi assim também com ‘Pare de tomar a pílula’, refrão de ‘Uma vida só’. O cantor está comemorando 50 anos de carreira e relembra momentos importantes de sua trajetória durante a live ‘Sonora Coletiva‘, como o período tenebroso em que suas canções foram censuradas na década de 70, além de comparar com o momento atual e a esquizofrenia digital. “Eu tenho pena das pessoas que vivem hoje em dia, porque, na minha época, era melhor. Fora das telas era muito melhor! Eu sabia que haveria a (r)evolução da tecnologia, mas não imaginava o retrocesso do ser humano, a piora em sua essência, principalmente nas suas relações interpessoais e com total falta empatia. Você está em um restaurante e as pessoas não param de olhar a tela do celular. Hoje está muito assim, a pessoa não estuda, não vai atrás das informações. Ele clica lá no Google, e acha que de lá vai encontrar a solução dos problemas. Acaba esquecendo de viver”, enfatiza.
O cantor, nascido em Morrinhos, interior de Goiás, está com 73 anos, começou a trabalhar na adolescência como cronner e se tornou um dos mais conhecidos nacionalmente com os seus sucessos populares. “Toda vez que a gente ligava o rádio, escutava ‘Eu vou tirar você desse lugar’. Podia ser em qualquer canto do Brasil. Estava na Bahia e a CBS estava me procurando para um programa de TV, porque a música alcançou primeiro lugar nas paradas. Quando voltei ao Rio, recebi uma carta me intimando a ir ao Departamento de Censura. O censor disse que a música não estava notificada, mas que era de péssimo tom cantá-la naquele momento e que todo o meu trabalho estava sendo analisado. Olhei para ele e falei que ‘Vou tirar você desse lugar’ não era uma referência política, mas, sim, a uma garota de programa. Ele disse: ‘pior ainda! A partir daí, eu só tive problema”, recorda.
Para os padrões da época, Odair quebrou barreiras e tabus com suas canções, sendo considerando um cronista social. Suas inspirações vinham de observações do cotidiano e de pessoas socialmente excluídas. Seu mais recente trabalho foi lançado em 2019, o ‘Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio’, pela gravadora Monstro Discos, e eleito um dos 25 melhores álbuns brasileiros pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Odair já estava com o pé na estrada quando a pandemia do coronavírus começou a se alastrar pelo país. “A ideia é que as canções fossem plugadas uma na outra. Na minha visão, o mundo já estava muito ruim. Gosto dessa história de ser um cronista social, porque, na verdade, eu faço um tipo de reportagem em minhas músicas. Estava com vários shows confirmados, porque conheço esse país mais que a palma da minha mão”, conta. O título ‘Hibernar‘ foi considerado quase que profético com tudo o que estamos atravessando nesse período de um ano e seis meses. “O mundo não estava legal de uma maneira geral e meu olhar estava muito pessimista com o futuro. E foi uma forma de dizer às pessoas: ‘vamos hibernar”, observa.
O compositor segue pontuando que o ‘Hibernar‘ reflete “um turbilhão de assuntos da atualidade sob várias óticas, como as dificuldades da imigração, como vemos nas fronteiras dos países, ou como você pode ser um imigrante dentro do seu próprio universo, na sua rua, em suas próprias relações, porque ficou tudo ‘um contra o outro’ e você pode ser considerado ‘o diferente’. O disco é um convite meu a uma desobediência à hipocrisia estabelecida. Dentro da ‘casa das moças’ tudo é liberado, desde que combinado”, enfatiza.
Revivendo os primeiros passos nas gravações marcantes, o compositor lembra o início de tudo. “Gravei a música ‘Uma Lágrima’, em 1969, depois veio ‘Minhas Coisas’, que integrou o LP ‘As 14 mais’. A letra de ‘Minhas Coisas’ é muito legal, porque conta com metáforas boas. Até hoje a canto nos shows e o público gosta muito. Depois, participei de mais um ‘As 14 Mais’, em 1971, com a música ‘Vou Morar com Ela’. A gente falando esta frase é super normal hoje, mas naquele período não era. O cara tinha que namorar, e casar. Havia todo um ritual a ser cumprido”, lembra.
Um dos refrãos mais lembrados da carreira de Odair até hoje é, sem dúvida, o trecho ‘pare de tomar a pílula, porque ela não deixa o nosso filho nascer’, da música ‘Uma Vida Só’, de 1973, que questionava o uso de anticoncepcionais e que também foi alvo da censurada pelo Regime Militar. “Eu tinha muito problema com a censura. A ‘pílula’ não podia ser tocada em lugar nenhum, mas eu ia para o palco e cantava. De dez shows que eu fazia, em três pelo menos havia um Jeep verde parado em frente à casa de shows para me levar e assinar um papel dizendo que ‘sabia que tinha feito algo errado’”, recorda.
O disco ‘O Filho de José e Maria’, gravado em 1977, foi um dos mais emblemáticos na carreira de Odair José. O protagonista era uma espécie de Jesus Cristo, mas que se envolve com drogas e coloca em dúvida sua opção sexual, vivendo longos anos na solidão e sofrimento com a rejeição social. “É o Cristo, é o Jesus? Literalmente sim, teoricamente não, mas pode ser qualquer um, inclusive eu. Esse disco foi odiado e vetado”. Foi nesta ocasião que o músico foi excomungado pela Igreja Católica e admite ter se desencontrado da vida e dos projetos artísticos. “Quando bateram tanto nesse disco, me perguntaram: ‘você foi excomungado?’ E eu respondia: ‘disseram que sim’. Mas, hoje em dia, observando, acho até que eu devo ter sido mesmo, porque depois de 1978 a minha vida deu uma enrolada, eu fiquei em um baixo astral, me perdi musicalmente, vivia na noite, comecei a beber muito e comecei a usar muita droga: maconha, cocaína”, revela.
Já em 1979, Odair volta aos holofotes com a música ‘Até parece um sonho‘, parte da trilha sonora da novela ‘Cabocla’, da TV Globo, e continua com seu olhar de cronista, gravando canções com a temática de sexo, drogas e prostituição, bem como protestos contra as mazelas sociais do Brasil. Em 2014, ele causou mais uma polemica aos dizer que que seus álbuns lançados pela EMI eram ‘uma merda por culpa minha. Eu só queria saber de beber e fumar maconha”. Seu reconhecimento do mercado musical veio em 2006, ao ganhar um tributo que reuniu os principais grupos da nova música pop-rock brasileira, como Paulo Miklos, Zeca Baleiro, Pato Fu, Mombojó e Mundo Livre S/A, entre outros. Os convidados fizeram releituras de vários dos sucessos do artista, resultando no álbum ‘Vou tirar você deste lugar’, lançado pelo Allegro Discos.
Já em 2006, o artista lançou ‘Só pode ser amor o que sinto’, que continha a faixa ‘Bebo e Choro’, um sucesso que foi parar nas trilhas sonoras do filme ‘Trair e coçar é só começar’ e da novela ‘Bicho do Mato’, da Record. Depois de um hiato de seis anos, o cantor voltou com ‘Praça Tiradentes’, 2012, com Zeca Baleiro assinando a produção musical. O disco ‘Gatos e Ratos’, 2015, concorreu ao Melhor Álbum, na categoria Canção Popular, no Prêmio da Música Brasileira de 2017. Na mesma edição foi vencedor na categoria Melhor Cantor. Ainda, a revista Rolling Stone Brasil o elegeu o 20º melhor álbum brasileiro de 2016, afirmando a grandiosidade desse grande cronista brasileiro do cotidiano que embala muitos corações e sacode multidões.
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