“Não é vergonha nenhuma a gente se sentir fraco e triste e demonstrar isso”, diz Gabriel O Pensador


Em tempo de pandemia, artista mistura rap e xote na música “Aglomeração a 2”, que tem participação de Ivete Sangalo, fala da saudade do pai, morto em abril em consequência de enfisema pulmonar, e dos planos para um novo disco. “Minhas músicas não são muito racionais”, confessa.

*Por Simone Gondim

A pandemia causada pelo novo coronavírus tem sido um período de reflexão e muito trabalho para Gabriel O Pensador. Ainda aprendendo a lidar com a ausência do pai, o médico Miguel Contino, morto no fim de abril em consequência de enfisema pulmonar, o artista não parou de produzir. Além de “Aglomeração a 2”, mistura de rap e xote na qual divide o microfone com Ivete Sangalo, que chegou às plataformas digitais no fim de julho, Gabriel tem postado vídeos declamando poemas em seu canal no YouTube e se prepara para lançar dois livros infantis pela Editora Melhoramentos. Ele também promoveu três lives e fez um show no estilo Drive-in na Barra da Tijuca, com transmissão ao vivo pela internet. “Minhas músicas não são muito racionais. O processo é meio intuitivo, sempre. ‘Aglomeração a 2’ veio em um momento importante, porque eu tinha perdido meu pai e ela fala de amor, de força”, conta.

Como exemplo, Gabriel destaca o trecho da letra que diz: “Quando o bem-te-vi cantar eu quero aplaudir de pé/E outra vez vou respirar, para o pulmão se encher de ar e o coração de fé”. Ele garante que os versos são um recado de otimismo para si próprio. “Lá em casa tem os bem-te-vis que cantam todo dia de manhã, normalmente quando estou indo dormir. Foi uma música para trazer positividade para as pessoas e para mim”, observa. “Fiz um post outro dia, mesmo em um momento de tristeza, de saudade do meu pai. Um pouco antes do Dia dos Pais, eu tirei uma foto da minha lágrima e depois fiz outra sorrindo, com o sol nascendo. Desabafei um pouquinho para lembrar aos meus seguidores que a tristeza é normal e não é vergonha nenhuma a gente se sentir fraco e triste e demonstrar isso”, afirma.

“Faço tudo por instinto”, diz Gabriel (Foto: Reprodução Instagram)

Sem produzir um álbum completo desde “Sem crise”, de 2012, Gabriel acha que está chegando a hora de mudar isso. “A ideia ainda não está definida, mas o novo disco deve sair aos poucos, com três ou quatro músicas em um EP, anunciando que fazem parte de algo maior. Depois, lanço mais uma parte ou duas, completando o álbum até o fim do ano”, revela. “O excesso de material e até de tempo que eu tive para mexer nisso é que me despertou essa vontade de lançar um álbum”, acredita.

O artista ressalta que tanto tempo sem um disco não é sinônimo de ter se afastado do mercado: saíram vários singles nesses oito anos. “Foram músicas importantes, das quais eu gosto bastante. “Chega”, “Fé na luta”, “Tô feliz (Matei o presidente) 2”, “Deixa queimar”, “Um só” (com a banda Maneva) e “Sobrevivente”, que foi a última do ano passado, gosto bastante dela”, lista. “Este ano, além da canção com a Ivete, teve “A cura está no coração”, com a Cynthia Luz, e “Vamo aí”, com a Gabz e o Ponto de Equilíbrio, falando de racismo e resistência, com letra e clipe bem fortes”, acrescenta. Os fãs também puderam conferir participações de Gabriel em projetos de outras bandas, como é o caso de “Cacimba de mágoa”, junto com o grupo de forró Falamansa.

Gabriel com o pai, o médico Miguel Contino (Foto: Reprodução Instagram)

Ainda sobre “Aglomeração a 2”, Gabriel explica que o xote veio naturalmente, assim como a ideia de convidar Ivete Sangalo para cantar junto. Embora ele já tivesse feito participações em shows da baiana, sempre no improviso, foi a primeira vez que os dois trabalharam em parceria na gravação de uma faixa e de um clipe. “Foi uma honra fazer com ela, que é uma amiga querida, que eu admiro”, derrete-se. “Dessa vez, a gente teve que superar esse obstáculo da distância. Ivete foi muito atenciosa, conseguiu gravar as coisas e me mandar, primeiro as vozes, depois as imagens”, recorda.

Para o clipe, Gabriel escolheu o diretor Rodrigo Rossi, de São Paulo. O artista confessa que a solução para juntar os dois personagens de uma forma criativa veio nos últimos dias. “Já na reta final, tive essa ideia de usar as telas de um escritório. E salvou o clipe, porque acabaria sendo uma coisa meio manjada, dividir a tela e fazer algo quase de animação. A gente estava indo meio às cegas por esse caminho, sem saber muito bem como seria”, lembra. “O resultado ficou bem interessante. Acaba passando, também, uma outra interpretação para quem vê. Dá a ideia do casal que não está junto no momento, mas que se mantém unido, um fortalecendo o outro, mesmo na distância”, comenta.

Gabriel criou uma playlist com poemas de sua autoria e postou no YouTube (Foto: Reprodução Instagram)

Por falar em distância, o isolamento social imposto pela pandemia é outro tema que mexe com Gabriel. “É o momento, sim, de amores, amigos e parentes se unirem virtualmente ou virem o outro de verdade. Algumas vezes, a gente consegue conversar mais a fundo, mais verdadeiramente, por meio da internet do que em uma mesa de bar barulhento, dando risada e falando coisas superficiais”, pondera. “É a hora de as pessoas se abrirem. Tenho amigos que estão sofrendo, psicologicamente não estão muito bem, ou, na verdade, estão bem mal, e demoram a abrir o jogo e demonstrar isso. Tenho passado esse recado para as pessoas não esconderem isso, porque é normal sentir tristeza, angústia, medo, tudo que a gente está sentindo, especialmente agora”, enfatiza.

No quesito desabafo, Gabriel usou um de seus poemas para desafogar um pouco a dor de ver o pai sofrendo e, depois, partindo. O primeiro poema da playlist “Sente a poesia”, criada no canal do YouTube do artista, se chama “Poema da minha morte”. “Foi um desabafo necessário e que me trouxe de volta muitas mensagens positivas. Meu pai ainda estava vivo, mas os médicos já tinham avisado que ele não iria sair daquele estado. Na reta final, a gente estava se preparando para isso da melhor forma”, resume. “Peguei um poema muito extenso que eu já tinha, era um texto inacabado sobre a vida e a morte, uma viagem diferente. Fui mexer naquilo e desabafei também sobre o pai, uma reflexão final sobre a morte. O poema ficou pronto e eu achei que não era para guardar na gaveta, como faço com tantos outros. Aí, veio essa ideia de declamar em vídeo. Foi por isso que nasceu a playlist”, completa.

Para a surpresa do artista, o poema agradou. “Gostei da interação com as pessoas e me surpreendi com o resultado, o pessoal curte poesia bem mais do que eu pensava. Passei a declamar outros poemas em vídeo, durante a pandemia. Tenho mais alguns que eu até já gravei os vídeos e ainda não coloquei no YouTube. Faço tudo por instinto. Não tem uma programação, sou bem desorganizado e impulsivo. Mas vou continuar fazendo”, assegura.

“É o momento de amores, amigos e parentes se unirem virtualmente ou virem o outro de verdade”, acredita Gabriel (Foto: Reprodução Instagram)

Ainda no campo literário, Gabriel comemora o contrato com a Editora Melhoramentos. O primeiro passo foi relançar o bem-sucedido livro infantil “Um garoto chamado Rorbeto”, que recebeu o Prêmio Jabuti, foi adotado em diversas escolas e virou peça de teatro, com direção de Sura Berditchevsky. A versão audiobook pode ser encontrada no Spotify e o e-book também está disponível. “Há mais dois livros para criança prontos, já saindo do forno. Um se chama ‘Bagunça’ e o outro se chama ‘Gualin’, que é língua ao contrário, com as sílabas trocadas, que é justamente a gualin, uma língua que virou música. Esses livros vêm com músicas no QR Code”, adianta o artista.

Gabriel tem consciência de que, em um mundo ameaçado pela Covid-19, ele é um privilegiado. “Existe uma preocupação em reorganizar a carreira, claro. Reinventar algumas coisas, se adaptar. Mas, ainda assim, a primeira preocupação é manter a saúde mental e espiritual. Para isso, a calma é fundamental. Não adianta ficar desesperado querendo saber quando o nosso mercado vai voltar, isso ou aquilo vai acontecer. Estou aproveitando o tempo que sobrou para fazer o que é possível e agradecer pela saúde”, reconhece. “Passei pelo luto do meu pai. Ainda é duro, tem saudade e tristeza. É um amadurecimento. Muitos estão em situações gravíssimas, como algumas pessoas que foram morar na rua pela primeira vez, porque viviam sozinhas e não têm para onde correr, não conseguem mais pagar seu quartinho, sua casinha”, lamenta. “Além do corpo e do Covid, é uma luta contra a ansiedade, contra essa pressa que a gente está acostumado a ter em tudo na vida”, teoriza.

(Foto: Reprodução Instagram)

Mas será que é possível controlar a ansiedade e conservar a saúde em meio à quarentena? “No início, comecei a fazer exercício físico. Um pouquinho mais do que eu fazia, porque não costumo me exercitar muito em casa. Tive problemas que, milagrosamente, deram uma melhorada depois da última live, consegui aliviar a insônia”, diz. “Meu sono é muito desregulado, mas estava sofrendo mais do que o normal com isso. Tentei levar numa boa, mas é uma coisa que atrapalha bastante, deixa você cansado, debilitado, com imunidade baixa”, explica. “Ficava preocupado, agora dei uma regularizada nisso. Quando você vai ver, nem tem certeza se o motivo da insônia é um medo, uma coisa muito específica, mas sabe que é por tudo. Todas as dúvidas e preocupações que nos rodeiam agora, além das de sempre”, ressalta.

Em relação à crise pela qual passa o Brasil, Gabriel acredita em recuperação, mas isso não é sinônimo de tranquilidade. “É muito triste ver o país fechando portas, virando as costas para a cultura e a educação. Um tema que me preocupa é o meio ambiente, essencial para nós e as futuras gerações. O Brasil tem um histórico de pouco cuidado com os índios, com a terra, o mar, os rios. Nos últimos anos só vem piorando. Desde Rio Doce, Brumadinho e por aí vai”, opina.