“Não é cirurgia que eu fiz de redesignação sexual que me define como mulher. Sou desde que nasci”, diz A Maia


A modelo e atriz trans que tem no currículo participação no filme Mulher Maravilha, e este ano iniciou carreira de cantora, acaba de lançar seu segundo single: Se Assuma. “Faço comigo mesma um exercício diário para tentar atrair pessoas que não sejam tóxicas. Namorei bastante, tive muitos relacionamentos. Nenhum deles chegou a agressão física, mas verbal, psicológica e eu não consegui me reconhecer nisso. Hoje, me vejo como uma mulher que consegue se libertar dessas armadilhas, dessas relações. Então, falo sobre essa insatisfação. Quero que Se Assuma seja um hino. Que toda menina ao ouvir se identifique e fale ‘basta cara, sou mais do que isso, não preciso estar nessa situação’”, pontua

* Por Carlos Lima Costa

Transformar o sofrimento em música. Esta é uma fórmula que já rendeu inúmeros sucessos. Um dos casos mais emblemáticos é o do cantor Sam Smith. Inspirado por um amor não correspondido, In The Lonely Hour, seu álbum de estreia, venceu quatro categorias do Grammy. Modelo, atriz e escritora, a artista trans A Maia (antes ela assinava o nome artístico como Marcella Maia), que este ano encarou nova vertente artística, a de cantora, aposta neste caminho ao lançar seu segundo single, Se Assuma, que chegou aos streamings, no último dia 30.

“A gente vive em uma sociedade tóxica. Faço comigo mesma um exercício diário para tentar atrair pessoas que não sejam tóxicas. Namorei bastante, tive muitos relacionamentos assim. Nenhum deles chegou a agressão física, mas verbal, psicológica e eu não consegui me reconhecer nisso. Hoje, me vejo como uma mulher que consegue reconhecer e se libertar dessas armadilhas, dessas relações. Então, falo sobre essa insatisfação. Se Assuma surgiu do meu último envolvimento. Sou muito franca, a partir do momento que a pessoa me conhece, não vejo problema nenhum em contar a minha história, porque falo com orgulho. Os três primeiros meses foram incríveis. Mas mudou de comportamento quando fomos conhecer os pais dele. A gente nunca conhece quem está do nosso lado, isso é muito louco. Começou a querer que eu anulasse a minha existência, a minha história por conta da vergonha dele. Não queria que eu contasse que era trans. Isso foi se transformando em uma bola de neve até que falei ‘basta’. Não preciso disso na minha vida”, esclarece ela, que traz no currículo participação no filme Mulher Maravilha e no clipe da música Like It Ain’t Nuttin’, da cantora americana Fergie.

A Maia no clipe da canção Se Assuma (Foto: Rui Palma)

Sobre o tema, ela prossegue: “Já aceitei situações assim, porque a construção dos relacionamentos afetivos de uma mulher trans é sempre de muitas escolhas. Mas, hoje, sei quem eu sou e aonde quero estar. Não aceito mais isso, então, é um desabafo por conta de toda essa hipocrisia. Essa história aconteceu na quarentena, começamos a brigar e ele usava muito o meu psicológico. Sou uma mulher bem sensível, expresso isso muito claro na minha arte. Então, isso começou a me assustar, a dar um bug na mente. Então, falei ‘vaza, sai da minha vida’”, reforça.

O lado positivo foi justamente a inspiração para transformar a tristeza em poesia e melodia. “Isso que é legal. É sempre esse laboratório, de trazer a nossa dor. A minha verdade nos relacionamentos é o que me fez chegar até aqui. Quis fazer Se Assuma para que seja um hino. Que toda menina ao ouvir se identifique e fale ‘basta cara, sou mais do que isso, não preciso estar nessa situação’”, frisa ela, cujo primeiro single, Pra Dá Dolce Bacana, foi lançado em agosto. Em sua música mistura referências pops com flow. “É um mix, um som muito atual. Ainda não consegui identificar algo parecido com o que eu faço, meu som é muito único”, afirma ela que tem como maiores referências nomes como Michael Jackson, Britney Spears, Madonna e Jennifer Lopez. “São mulheres e artistas que me inspiraram a fazer o que eu faço hoje.”

A Maia conta que desde muito nova tem esta veia artística. Ela começou cantando no coral da Igreja Batista. “Sempre tive essa voz muito feminina, nunca impostei ou mudei o meu tom. Então, como vivi em um corpo que não era meu, que era imposto pelos papéis da sociedade, minha voz se calou. Hoje, me reconheço, posso falar. Eu nunca fui um menino. Não importa o que está em um documento, porque não é uma pepeca, um par de seios, nem a cirurgia que eu fiz, essa redesignação sexual, que me define como mulher. Eu já era mulher desde quando nasci. E quando você é diferente, você paga um preço caro na sociedade. Então, a arte veio com essa vertente de salvar a minha vida. Quando entendi, estudei e estreei no teatro. Costumo até dizer que o teatro é que me fez atriz. Ali cresci muito, tive um embasamento grande de troca humana, verbal, de olho no olho, de entender que errar é humano. Errou, levanta e bola pra frente, continua acreditando em você, no seu poder, que uma hora a coisa vai. Eu sou a prova disso”, afirma categórica.

A modelo e também atriz esteve no filme Mulher Maravilha (Foto: Rui Palma)

A modelo e também atriz esteve no filme Mulher Maravilha (Foto: Rui Palma)

Quando se é criança, existe uma inocência. Então, quando você se deu conta de que estava em um corpo errado? “Como fui criada na igreja Evangélica, o primeiro contato que eu tive com o mundo LGBTQIA+ plus foi com as travestis, com as manas na rua, quando, escondida dos meus pais, fui a uma balada, aos 13 anos. Levei três tapas na cara e me falaram ‘tá batizada’. Aquilo tudo me assustava, mas ao mesmo tempo me fascinava, porque era o único lugar que eu conseguia me sentir parte de algo”, recorda. E ressalta que não queria para ela o estigma da marginalização. “Foi tudo muito difícil, eu neguei, neguei, neguei muito isso. Mas desde os meus 11 anos, passava na minha cabeça o pensamento ‘ah, podia tanto ter nascido uma menina’. É como se tivesse uma tristeza no meu olhar, sabe, era um olhar perdido”, conta.

A Maia ressalta que sua vida dá um livro. Tanto que está escrevendo a obra Translúcida, Transante e Transparente, dividida em três atos, que deve ser lançada em 2021. “Estou concluindo o Transparente, sobre o que estou vivendo agora, um sonho onde tudo está se realizando. Tudo pelo qual lutei nesses dez anos de carreira”, conta. A cantora começou trabalhando nos sinais. Um olheiro da Mega a viu e a chamou para trabalhar na agência. Lá começou a se comunicar e trabalhou como booker e produtora até ir para Juiz de Fora participar de um concurso de drag. Queria começar também a se apresentar. “Em um evento, conheci uma pessoa que me vendeu uma proposta de ser artista em Londres. Quando chegamos lá, pegou meu passaporte e fui obrigada a me prostituir. Durou três meses tudo isso. Conseguir sair, eles me colocaram no avião de volta só com a roupa do corpo. Saí, mas não ilesa, e sim com cicatrizes profundas. Depois que fui traficada para o exterior, fiquei arrasada. É uma das cicatrizes mais marcantes da minha vida. Aí logo depois, em um ano eu decidi: “Preciso renascer no corpo que eu sempre me senti, senão eu não consigo mais prosseguir, não consigo mais viver. Foi quando fui para Bangcoc, capital da Tailândia, fiz minha redesignação sexual, coloquei um belo par de seios e voltei linda. Não tem dor que não seja suportável quando você tem a glória e a alegria de ser quem você é de verdade. Eu faria tudo de novo. Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Somente quatro meses depois da cirurgia, tive a minha primeira vez”, explica.

A artista trans mora em Lisboa, Portugal (Foto: Rodolfo Magalhães)

A artista trans mora em Lisboa, Portugal (Foto: Rodolfo Magalhães)

E A Maia está feliz com a repercussão de seu trabalho. “Pelos números do Spotify,  sou muito escutada nos Estados Unidos, depois vem Europa e o Brasil. Como trabalho de forma global, tenho agente não só aqui, mas que me representa no mundo todo. Aqui estou tendo uma aceitação boa. Meu primeiro single saiu com destaque na Rolling Stones. Em todos os veículos estão falando muito bem, me respeitando. Com meu primeiro clipe, por exemplo, quando foi lançado eu consegui alcançar mais de meio milhão de views. Então, estou indo, passo a passo, colhendo os frutos do meu trabalho, porque trabalho muito e tudo que eu faço é com suor e dedicação para entregar a minha verdade”, conta ela, que recentemente gravou cinco músicas novas com a cantora luso-brasileira Blaya. “Anitta e Madonna gravaram uma música dela”, conta. Por enquanto, vai lançando os singles, sempre a música acompanhada do clipe. Depois, pretende reunir tudo em um álbum, que se chamará Poliglota Sem Ir na Escola. Mas não tem data certa para lançar. “É tão difícil falar essas coisas, porque tudo pode mudar, minha agenda está uma loucura! Agora, estou focada em outros projetos, sobre os quais não posso falar, mas é por isso que eu estou, no momento, aqui no Brasil. Eu já tenho coisas para lançar até 2022”, diz. Além da música, ela roteirizou uma série e tem ainda um filme. Os dois projetos são relacionados a sua história. “Sou muito chata com tudo que eu faço. Quando se tem uma qualidade, um senso estético, não é da noite para o dia que os projetos ficam prontos”, aponta. E conta que também está envolvida com um filme brasileiro. “Não tenho privilégios. Tudo que tenho foi a base de muita conquista. Sabe, a gente não vê uma mulher trans trabalhando na farmácia, no mercado, as pessoas não dão emprego. Então, a prostituição sempre é o lugar mais baixo e que elas encontram para poder sobreviver. E é muito louco, porque o Brasil é o número um em assistir pornô trans e o número um também em matar travesti, ou seja, o cara vai lá, bate na mana na rua, mata, chega em casa, assiste um vídeo”, frisa.

Após tantos sobressaltos, atualmente a vida é mais tranquila para você? “Sim, consigo me manter com a minha arte. Trabalho desde publicidade, cinema, TV, construí uma imagem que me dá um leque para trabalhar. E por me assumir uma mulher trans, que na metade da minha carreira ninguém sabia, não achava necessário, porque queria até mesmo provar pra mim mesma que não ia ser uma politicagem, que eu não estaria ali por ser trans. E consegui provar. Aí pensei: ‘Não faz sentido fazer arte e não defender o meu corpo, a minha história.’ Hoje, bato nessa pauta, porque me motiva. Eu sou de 90, então, nunca vi uma mulher trans conquistar tantos lugares assim. Todo papel que eu via era estereotipado, caricato ou marginalizado. Então, assim, sou referência que eu sonhei construir. Isso é gratificante. Não falo só do ser trans, mas de poder trabalhar em uma indústria, que para qualquer pessoa seja trans, hetero, o que for, é difícil se destacar. Você tem que ter talento, tem que ter verdade. E isso eu tenho”, assegura. E completa: “A música está me levando para lugares de empoderamento muito grande. É gratificante, é mágico, mas amo atuar também. Aos poucos estou construindo minha carreira”, pontua ela, que em 2020 completou 30 anos de idade. “Por conta da pandemia, eu não comemorei. Então, parece que isso não aconteceu, que ainda estou nos 29. Nos últimos anos, confrontei todos os meus fantasmas, todas as minhas dores, para ser a mulher que eu sou hoje. Passei por um inferno astral forte, mas depois que atravessei este portal, me sinto mais jovem do que nunca. Foi uma virada de ciclo memorável, me sinto ótima”, garante ela, que integra o elenco do seriado Todx Nós, da HBO.

E é sem um amor que vai curtindo o sucesso de seu trabalho. “Estou solteira e vou ficar por um bom tempo. Quer dizer, solteira sim, sozinha nunca. Uma pessoa para estar comigo tem que ser muito bem resolvida. E deixo claro novamente. Nunca nenhum homem levantou a mão pra mim, porque nunca deixei. Primeiro, porque venho de uma realidade de violência doméstica muito grande. Meu pai agredia a minha mãe. Então, prometi para mim mesma que nunca deixarei um homem encostar a mão em mim e em nenhuma outra mulher que estiver perto de mim”, avisa.

E lembra de triste passagem, quando a mãe abandonou seu pai e ela, pequena, foi morar na casa de uma tia. “Fui viver em um barraco. Eu lembro como se fosse hoje. Tinha mais de oito primos e todos dormiam em colchões espalhados pela sala, então, não tinha muita voz. Eu estava abalada, minha mãe tinha acabado de me abandonar e aí os flashes que eu tenho são de agressões muito profundas. Dois anos depois ela voltou para me buscar, mas esses dois anos foram traumáticos. O sexo me foi introduzido de forma brutal e forçada. Por muito tempo eu não conseguia tocar o meu corpo, sentia culpa por tudo aquilo. Até entender que não tinha culpa daquilo foi muita terapia. Hoje, consigo falar, mas com muita dor ainda”, desabafa.

Em 2021, A Maia planeja lançar livro sobre sua história (Foto: Rodolfo Magalhães)

Em 2021, A Maia planeja lançar livro sobre sua história (Foto: Rodolfo Magalhães)

Mudando da água para o vinho, A Maia revela um desejo. “Eu sempre sonhei ser mãe, tenho um instinto materno muito grande. Agora, eu não teria tempo, porque meu trabalho me consome muito. Mas é o meu sonho ter uma casinha, uma família, um monte de criança correndo pela casa. Mas não será possível pelo menos pelos próximos cinco, dez anos, até que eu consiga parar para ter um relacionamento onde consiga projetar essas coisas”, conta e diz que foi noiva quatro vezes, mas nunca casou. Que tipo de homem a seduz? “Eu sou muito peculiar. Às vezes, me atento mais nos detalhes, no como aquela pessoa me trata, em como temos sintonia, conexão. E o olhar é tudo. No olhar está toda verdade e quando bate, bate. Quando olho para uma pessoa que me atrai e o olhar cruza e rola aquela conexão, eu falo ‘esse daí é meu número’.”

A Mia sonha em ser mãe (Foto: Rui Palma)

A Maia sonha em ser mãe (Foto: Rui Palma)

Desde pequena, desde quando ainda estava no corpo de menino, você lidou com bullying, pessoas usaram seu corpo sem você querer. Hoje, como está a sua cabeça, superou tudo de ruim que passou, é feliz, bem resolvida, como é A Maia, a Marcella Maia? “Ah, sou muito feliz. Acordar todos os dias e ser quem eu sou, me olhar no espelho e conseguir ter essa confidência com o meu corpo, com quem me tornei é mágico. Eu não conseguiria descrever em palavras tamanha alegria do meu ser assim. Não trocaria a minha vivência trans por nenhuma outra, porque tudo que eu vivi, por mais doloroso que tenha sido, me possibilitou ter força para estar aonde estou hoje, aonde sempre sonhei estar. Meu grande sonho era ser artista, era poder viver da minha arte e mesmo em tempos difíceis, onde milhares de colegas meus de trabalho estão parados, não estão fazendo nada, eu sou chamada para fazer as coisas. As cicatrizes vão estar sempre aqui. Mas fiz as pazes com elas, com o meu passado. Eu cheguei até a perdoar o meu pai que me deu uma surra de enxada. Então, consegui me afastar de toda escuridão. Hoje, não me coloco como a vítima. Hoje, sou uma mulher bem resolvida, falo de todos os assuntos que você quiser e sei quem eu sou e aonde eu quero chegar”, analisa. E mesmo quando realizou a cirurgia, não houve um susto com a mudança? “Não. É até curioso, porque nunca tive disforia nenhuma com o meu órgão genital, o falecido. Mas eu precisava. A cirurgia foi muito mais realização pessoal do que para o externo. É muito triste, às vezes, tudo se pautar por uma mulher trans que não é operada. Ela não é menos mulher do que eu porque ela não é operada. Ela só não tem condições, porque operar é muito caro. Eu costumo falar que no meu corpo tem uma Lamborghini, um Mini Cooper e uma Ferrari, porque o que eu já investi em mim não está no gibi e não me arrependo”, finaliza ela, que atualmente mora em Lisboa, Portugal, mas tem casa também, em Milão, na Itália.