*Por João Ker
Você precisa escolher aquilo que você é. É isso que a sociedade cobra de todos o tempo todo, repetidamente, desde que o mundo é mundo: aos 17 anos, precisa escolher uma carreira para o resto da vida (“Vai terminar o ensino médio e ainda não sabe o que quer fazer?); precisa escolher uma religião (“É católico? É crente? Como assim não tem religião?), uma posição política, uma tribo urbana, um estilo, precisa se encaixar em algum molde pré-estabelecido para ser levado a sério e conseguir ser traduzido em uma linguagem que o resto do mundo entenda.
É lidando com a escolha da identidade – e a imposição social que se dá partir dela – que se pode resumir o grande embate da peça “COCK – Briga de Galo”, em cartaz no Teatro Poeira, em Botafogo, de terça a quinta-feira. No texto original de Mike Bartlett, Felipe Lima interpreta John, um rapaz homossexual – a princípio – vivendo um relacionamento à beira de um colapso com M (Marcio Machado). Após muita discução, John larga M e, quando resolve voltar depois de algumas semanas, conta que está apaixonado por uma mulher, para o desespero do parceiro. Ao longo da peça, M e W (a nada masculina ragazza interpretada por Debora Lamm) seguem disputando, entre insultos e súplicas, o amor de John.
John poderia ser facilmente confundido como mais um cara babaca, daqueles que ficam em cima do muro e não conseguem escolher entre uma pessoa e outra, machucando as duas ao mesmo tempo ao longo do processo. Mas com ele, o buraco é bem mais embaixo. Depois de passar sete anos com um sujeito que só sabe menosprezá-lo e diminuí-lo, John se surpreende ao encontrar uma pessoa que o ache inteligente, engraçado, bonito e até bem vestido, independente do sexo. Portanto, ele fica até surpreso quando essa pessoa aparece na figura de uma mulher, algo que ele nunca havia cogitado durante sua vida gay, mas nada que possa impedi-lo de mudar de rumo e escolha. E, no final das contas, a luta travada acaba transcendendo mesmo as questões de gênero, sendo um embate entre duas personalidades, independentes do sexo: de um lado, M e todo o seu dinheiro, obsessão, status e sua depreciação pela figura de John; do outro, a persona tranquila, de espírito livre, bem-humorada e incentivadora de W. E, entre ambos, John, covarde e indeciso.
Sob direção precisa de Inez Viana e mantendo o minimalismo cenográfico da montagem original, o texto flui de forma ágil e dinâmica, compensando a falta dos artifícios de som ou de iluminação. A gravidade emocional dos diálogos desbocados consegue ser disfarçada com leve pitada de humor, alternado entre os chiliques de M e os lampejos de W. O palco acaba se tornando um ringue para a tal briga de galos do nome da peça, com os atores se posicionando pelas extremidades enquanto mudam de cena em segundos. Não há troca de figurino, iluminação ou cenografia – na verdade, nem existe cenário.
No fim das contas, não importa com quem John escolheu ficar. Na verdade, seria melhor que ele não ficasse com ninguém, já que ele não sabe o que quer e não tem coragem de escolher. Em uma sociedade onde as pessoas podem esvaziar uma sala de cinema porque o filme contém cenas de sexo gay, John certamente será massacrado por ter feito uma escolha ao contrário daquela que estigmatizou sua identidade, qualquer que seja a opção. E, em um país onde diferenças são tratadas eventualmente como doenças, você não pode simplesmente dizer que não sabe se gosta de homem ou mulher, que está indeciso entre duas pessoas de sexos diferentes, que acredita na alma acima da genitália. Não, você não pode ser isso e aquilo, você deve escolher entre um ou outro. Você precisa ser sempre “ou”, nunca “e”. Pior: sem poder agregar, deve sempre reduzir. Você precisa definitivamente escolher aquilo que você é, mesmo que não faça ideia do que se trata.
Fotos: André Nicolau | Divulgação
SERVIÇO:
Horários:.21h (de terça à quinta)
Preço: R$ 40,00 (terças e quartas) / R$ 50,00 (quinta)
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