*Com Bell Magalhães
MV Bill nos leva para um voo rasante pelas comunidades do Rio para que possamos ver com uma grande lupa a imensidão dos problemas sócio-políticos que se agravaram na pandemia. O rapper está prestes a fazer história mais uma vez com o lançamento hoje do 12º álbum da carreira batizado ‘Voando Baixo’. A capa, assinada pelo grupo de designers gráficos da Pomo Estúdio, mostra a perspectiva aérea de uma comunidade, o avião sobrevoando o local e Bill sinalizando com o dedo as verdades que serão explicitadas nas músicas. O simbolismo da tipografia do nome do artista evidencia a street art que permeia os ambientes urbanos e conversa com as raízes do músico, nascido e criado na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio.
Completamos mais de um ano de pandemia e Bill, através de sua música, coloca um holofote direcionado ao sentimento de indignação coletiva ao longo de 12 faixas de uma forma visceral. “Há muito tempo eu venho trabalhando ouvindo as ruas. E o que vejo nesse momento é a falta de coordenação política ganhar força para contornarmos o cenário que estamos vivendo. Assim, eu proponho no álbum uma reflexão sobre os problemas que estamos sentindo na pele no país”. E o rapper faz um paralelo com os trabalhos anteriores: “Esse trabalho ficou mais político do que os outros. Apesar de os mais antigos falarem sobre o social, este tem mais ênfase na política partidária. Em mostrar que a realidade só será modificada se todos participarem ativamente da ação política e não pedir constantemente para outras pessoas as representarem”.
Em um mundo no qual os artistas têm lançado mais singles do que álbuns completos pautados no consumo imediatista de determinado público e que, muitas vezes, se torna efêmero, Bill, com muita identidade e atitude, ouviu a voz de outra parcela dessa balança. Atento, o artista percebeu também a necessidade criar um álbum para os fãs ouvirem integralmente e refletirem sobre uma narrativa alinhavada por completo: “Com a pandemia, passei a olhar ainda mais nas redes sociais e fui percebendo que as pessoas queriam um álbum completo. Eu sempre fui muito fã de ouvir um disco de ‘ponta a ponta’, e hoje temos uma cultura onde cada um cria a própria playlist, o que não é ruim, mas impede a compreensão de uma obra completa. Os assuntos, a forma com que eu abordei detalhadamente… tudo foi pensando nessa dinâmica de ouvir um álbum do início até o fim”.
A produção musical, mixagem e masterização são assinadas por DJ Caique, com exceção de ‘Milicítico’, a cargo do produtor musical Tibery. A produção executiva e fonográfica da MV Bill Produções Artísticas. A faixa ‘Nóiz Mermo’ ganhou a parceria do grupo de rap ADL (Além da loucura). O convite foi feito após a participação de Bill na música do grupo batizada ‘Cordão de Ouro‘. Na nova colaboração, eles propõem uma revisão dos dois últimos anos no nosso país. “O ‘luto’ virar ‘luta”’ e “era para acabar com a mamata, não com a mata” são frases fortes e que evidenciam a denúncia das desigualdades sociais, econômicas e ambientais que assolam o Brasil e ficaram mais latentes durante o último ano, justamente quando o novo coronavírus tomou conta do mundo. “Essa é uma das músicas que eu curto muito pela conexão com a galera mais nova da ADL. A turma consegue enxergar de perto a indignação coletiva, os problemas sociais e raciais e a importância de nós mesmos sermos a saída para tantos problemas que também geramos. Devemos parar de esperar uma solução do outro e começar a apostar em nós mesmos”, ressalta mais uma vez o rapper.
Além dos rapazes da ADL, o disco conta com a participação de Bob do Contra, Filiph Neo, Cristina, Marrom, ex-vocalista do RZO, Kmila CDD, irmã de Bill, Stefanie, DJ Luciano e Nocivo Shomon. Segundo o cantor, a escolha dos artistas foi pensada para que dialogassem com o momento no qual o álbum foi escrito. “Pensei muito nas possibilidades que tenho hoje de ter contato direto com pessoas que são muito conhecidas, mas para esse trabalho eu não queria isso. Esse disco é tão específico que optei por um time que tivesse a ver comigo e, ao mesmo tempo, com um olhar novo para esse momento no qual o álbum foi concebido”.
Kmila CDD, irmã de Bill, divide com a paulista Stefanie e o cantor a faixa ‘Nossa Lei’. No passado, muitas mulheres precisaram enfrentar o machismo para serem aceitas e respeitadas pelos homens, maioria no universo do rap. E Kmila integra o grupo de mulheres pioneiras no rap que conquistaram o espaço de poder expressar a feminilidade sem medo de julgamentos. “Para meninas retintas é difícil ser ídolo de alguém. A Kmila foi uma das pioneiras nesse caminho e sei que as mulheres de hoje lutam para largar as amarras por causa dela. Falar sobre o que querem sem regra e nem seguir uma cartilha. Sei que a minha irmã foi uma figura importante para levantar essa bandeira da militância feminina, principalmente a do feminismo negro”, conta o músico.
Acompanhando-a sempre, Bill reconhece o machismo que existia na indústria e revela que já adotou posturas erradas na tentativa de protegê-la do assédio: “Eu queria vestir a minha irmã de homem, de ‘menino’, porque eu achava que essa era a única forma de ela representar o rap. Até o dia que ela me mostrou que consegue, sim, passar a mesma mensagem usando brinco, salto alto, maquiagem e a roupa que quiser. Nesse momento, me conscientizei da real representatividade e a mensagem que ela passa”.
Sobre o cenário atual em relação ao racismo ainda latente, Bill acredita que no Brasil ainda falta uma organização ainda maior para o combate ao racismo, e cita o movimento ‘Black Lives Matter’ (Vidas Negras Importam) como exemplo de cobrança de pautas recentes: “Precisamos começar a nos articular, os pretos e os antirracistas. Os movimentos orquestrados trazem mudanças, como foi no Oscar e na condenação do policial que matou o George Floyd, por exemplo. Isso não foi por acaso, pois os Estados Unidos nunca condenaram esse tipo de crime cometido por um policial. No Brasil precisamos fazer o mesmo para termos respostas aos crimes de injúria racial, na vida e na ficção”, frisa, acrescentando: “Temos que ocupar espaços na música, no cinema, não só na política. Não queremos ser apenas atores na novela. Queremos ser diretores, roteiristas e mudar o caminho das nossas histórias para um lugar de protagonismo pleno”, afirma.
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