*Por Brunna Condini
Aos 48 anos, Alex Pereira Barbosa, o MV Bill, continuou fazendo na pandemia o que fez ao longo de uma vida: ressignificou a própria existência e repensou a realidade ao redor. E, deste mergulho profundo, revisitando a própria história ao longo de 30 anos de carreira, o rapper escreveu ‘A Vida Me Ensinou A Caminhar‘, que reúne crônicas sobre sua trajetória como um dos protagonistas da história do rap e dos movimentos sociais no Brasil. “Já tinha um projeto de escrever algumas memórias, mas ainda não tinha escolhido que histórias compartilhar. Talvez a escolha das que divido no livro fosse diferente se não estivéssemos nesse período pandêmico. Mas, como foi neste cenário, pensei que estávamos precisando de boas narrativas, de inspiração. São histórias de esperança, perseverança, de luta pelo melhor”, analisa.
Na obra, o músico resgata a sua história em primeira pessoa, que se mistura com o cotidiano do país, mantendo sua essência de eterno ‘cria’ da comunidade Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Com linguagem simples e certeira, ele ‘planta imagens’ que nos levam a refletir sobre a vida e o comportamento humano. Para Bill, que gosta de passear pela narrativa audiovisual, e é é um exímio contador de histórias, perguntamos: pode virar filme ou série? “Difícil dizer ainda, estou pensando no livro agora”. Mas se rolar, quem gostaria que vivesse você? “Olha, tem um ‘maluco’ aí muito bom, que acho que daria um bom Bill, o ator Raphael Logam, que faz a série ‘Impuros’. Acho ele ótimo”.
O escritor, ator, cineasta e ativista brasileiro revela que, além do livro, tem um disco pronto para lançar a qualquer momento, e está roteirizando um curta-metragem, que também pretende dirigir. Neste bate-papo, ele diz que a obra aborda a formação de um movimento social, os primeiros grupos de hip hop cariocas e a primeira apresentação artística na Cidade de Deus. E também, os shows mais importantes, a escalada ao sucesso, a fama, e os momentos marcantes. Mas, apesar disso, não considera o livro uma autobiografia. “Para ser uma, teria que ser algo mais profundo. Neste livro fui direto ao ponto de reflexão destas passagens da minha vida. Também escolhi histórias que não contam necessariamente as minhas glórias, o sucesso. Têm aprendizados. E quis também tornar as pessoas que me acompanham, que vão me ler, mais íntimas do meu trabalho, e mostrar o jeito que a vida me ensinou a caminhar”.
O artista também revela uma curiosidade das passagens dos 27 capítulos que escreveu. “Tem uma foto, que circula muito em época de eleições, de uma comitiva de artistas do rap nacional que foi recebida pelo Lula, no Palácio do Planalto, em 2002. O hip hop brasileiro ainda não tinha visibilidade e precisava. Pedimos essa reunião com o presidente, porque sabíamos que no dia seguinte isso estaria em todas as capas de jornais e seria uma forma de sermos vistos. Às vezes, essa foto aparece na internet, como se fosse apoio político. No livro conto o que tem por trás de tudo, que não tem a ver com apoio político. Queríamos fazer rap e ser reconhecidos, dizer para o país que existíamos, para fazer um trabalho maior. Foi a primeira vez que um chefe de estado recebeu uma comissão assim”.
Sem partidarismo
O cantor comenta ainda que sempre fez questão de não levantar bandeiras partidárias ou de políticos em particular. “Posso dizer que não votei neste presidente que está aí, e não votarei. Mas mesmo sabendo em quem não vou votar, não tenho orgulho de em quem votarei. Por isso, que por mais que eu queira tirar esse governo, não tenho orgulho de quem vai vir. Falta essa representatividade. Por isso, peço muito que outras pessoas se candidatem, para que a gente tenha a chance de sair dessa história dos nomes políticos de sempre. Precisamos de novos nomes, novas caras, novas pessoas, com realidades distintas, de históricos diferenciados, para literalmente mudar a cara da política”, analisa.
“Na música, prefiro não ter essa bandeira levantada para fazer algo isento. Infelizmente, como o Brasil é muito repetente, muitas composições minhas de diferentes épocas e governos, ainda são válidas hoje, e poderão ser no futuro. A graça de não me prender politicamente é essa: poder usar qualquer composição contra quem estiver fazendo merda, não importa a bandeira política”.
E segue sua linha de pensamento sobre o cenário político do Brasil. “Estamos passando pelo pior momento do país. Este final de pandemia, com a pior gestão que o Brasil já teve. Antes disso, acho que muitos brasileiros viviam em um mundo de fantasia, ilusão. Principalmente quando falavam sobre política. Tinha uma falta de interesse pelo assunto que fazia com que muitos estivessem ‘flutuando’, em um mundo que não existe. E aí, com a chegada deste governo, que é reacionário, separatista, que não gosta de preto, pobre, gays, lésbicas, indígenas, dentro de um momento de crise sanitária, pudemos perceber melhor o quão a política é importante. Quem não gosta de política está fadado a ser governado por quem ama política”, aponta o rapper.
“Mas como aprender a votar se não temos tantas referências para confiar? Algo que me dá mais esperança é que um desejo que tínhamos lá atrás, nos anos 1990, fazendo rap, era de ter mais pessoas votando, jovens se envolvendo com a política. E, hoje, vemos grandes astros da música, por exemplo, pedindo para a molecada tirar o título de eleitor, votar. Acho que isso vai fazer toda diferença. Estamos há muito tempo na política escolhendo o menos ruim. E, provavelmente, vamos ter que fazer isso esse ano. Mas para outros cargos, que não são majoritários, nas eleições municipais, já vimos mudanças. Entraram muitos vereadores, vereadoras, pretos, trans. Muitas destas pessoas estão sofrendo ameaças, principalmente mulheres pretas, mas estão resistindo. Estamos ocupando espaços e incomodando. Mas a mudança significativa que tanto precisamos, ainda está distante”.
Ativismo
MV Bill como é descrito, “derrubou muros e construiu pontes e ajudou a conduzir — através das suas próprias vivências — a realidade das comunidades para uma visibilidade nas grandes mídias, fomentando pautas e discussões relevantes”. Em um país em pautas sociais e humanitárias encontram uma jornada dura para se estabelecer, como driblar o cansaço que dá no caminho? “Vale a pena quando vejo o reconhecimento das pessoas. Já ouvi gente dizendo que educou filhos usando também músicas minhas. E gente que mudou a direção na vida, refletindo com as letras. Já vi formatura com música minha de fundo. Então, é saber que de uma forma ou de outra, o trabalho que faço inspira. Isso acaba sendo um combustível, é muito bom. Além de consumirem o meu trabalho, o que me rende também financeiramente, e mantém minha carreira viva”, avalia.
“Mas se eu for pensar, minuciosamente, sobre o quanto a gente lutou e o pouco que mudou, dá vontade de desistir, fazer uma outra coisa qualquer. Mas isso é impossível pra mim, então falo da boca pra fora (risos). É uma missão de vida. Inclusive ressignifiquei o meu nome, MV, vinha de Mensageiro da Verdade, desde quando era mais jovem. Agora virou abreviação de Missão de Vida. Quero continuar fazendo o que faço musicalmente, dando um toque para a juventude da favela, preta, de que o crime não leva à nada, leva à morte ou à cadeia, então é menos um, não é o que queremos. Mostrando também outros caminhos que podem ser seguidos, não necessariamente com alguma coisa tão panfletária. Às vezes, uma pessoa preta como eu, escrever um livro já aponta novos caminhos”.
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